Em 2003, moradores de rua são assassinados em série na cidade de São Paulo. No mesmo período, um documentário com uma proposta ousada é lançado: À margem da imagem, do dramaturgo e jornalista Evaldo Mocarzel, aproxima do público os mesmos que ele rotineiramente ignora nas ruas, parte do grupo que foi vítima dos extermínios. Sua proposta não é resolver esse problema social, mas questionar a estetização da imagem desses sujeitos, procurados para servir de personagens de fotografias ou produtos audiovisuais, como suportes de um consumo posterior.
Logo que inicia a obra, um dos indivíduos filmados relata o seu sentimento após ele e outros sujeitos em situação de rua serem abordados pelo fotógrafo Sebastião Salgado: “Daqui a pouco aquelas fotos dele… Ele vai ganhar muito dinheiro e a gente? Vai ficar sempre ali embaixo, vai estar sempre ali necessitando…”. Será mesmo um jogo puramente comercial? Como forma de desnudar o seu trabalho documentarista, Mocarzel revela ao espectador as negociações feitas com os entrevistados antes da coleta de seus relatos: o pagamento de um valor simbólico e a assinatura da autorização de uso da imagem.
Dali em diante, os personagens assumem o protagonismo da obra, revelando suas rotinas de sobrevivência, estilo de vida, cultura e posicionamento político. E, contrariando todos os estigmas que a sociedade lhes impôs, o que se vê são opiniões consistentes, posicionamentos firmes e repletos de sabedoria – um conhecimento de mundo que talvez, somente eles, que vivem à margem e que conseguem enxergar além, pode ter.
O olhar do documentarista é revelado desde o momento em que negocia com os personagens, passando por questionamentos que faz durante as entrevistas e chegando ao momento em que ele literalmente o coloca à prova: após a montagem, Mocarzel convida os sujeitos filmados a assistirem e criticarem a produção. Nesse momento, outro olhar, muitas vezes relegado, entra em ação: o olhar do próprio personagem, sobre si mesmo e sobre a construção que se faz dele, do seu mundo. Dentre as percepções relatadas, uma chama a atenção: “Hoje estou aqui, na tela, mas amanhã volto a ser o mendigo que a madame evita atender no portão; você deveria mostrar isso”. Mais uma vez, a crítica à espetacularização da miséria humana.
Mas afinal: a que serve o documentário? Será mesmo sua função resolver problemas como esse ou apenas apresentá-los ao espectador? O problema talvez esteja na crença de que se tem que solucionar problemas. Como afirma Porter (2005): “as imagens do outro são fascinantes porque nos dizem quem somos”. É nisso que reside o diferencial do fazer documentário: incitarmos o medo, o medo de duvidar, de colocar nossas próprias condutas e concepções à prova. O encontro com o outro não é apenas o do documentarista com o sujeito filmado, mas também uma aproximação de nós, espectadores, com aquele que se coloca diante da câmera. Será que estamos prontos para encarar essa aproximação e descobrir muito mais de nós do que deles mesmos? Aí está o convite ao nosso olhar. Basta aceitarmos entrar no jogo entendendo que não sairemos os mesmos depois dele.
O que transborda, na visão do crítico/espectador
Um encontro que, certamente, deixa rastros. Não há como passar ileso de “À margem da imagem” depois de conhecer os personagens da obra e entrar em seu universo. Há muito mais conhecimento e lucidez que se imagina. Os comentários políticos que tecem são repletos de consciência cidadã e de identidade – as mesmas que a sociedade muitas vezes lhes rouba. Também somos convidados a conhecer a realidade das pessoas que batalham para oferecer qualidade de vida a esses sujeitos, onde não se falta coragem e boa vontade. As críticas finais proferidas pelos personagens nos mostram que colocar o espectador em situação de conforto não faz a obra “transbordar”. É pelo desconforto, pela quebra de expectativas e pelo risco que conseguimos transcender o nosso tempo e o nosso lugar, quebrando os estigmas e, finalmente, enxergando além.
Assista o documentário aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Dhg7UYd998c
Por Tatiana Vieira
[quickshare]
Comentar