- Artista: Rincon Sapiência
- Álbum: Galanga Livre
- Data de lançamento: 2017
- Gênero: Hip-Hop/Rap
- Categorias: Indústria e Narrativa
Por Clara Carvalho
Em 2017 o rapper Rincon Sapiência lançou seu segundo álbum de estúdio, Galanga Livre. Santos (2019) explica a relevância do disco se dá, em parte, por apresentar aspectos da herança cultural africana, como o ritmo, a religiosidade, a valorização da ancestralidade e pelas menções a acontecimentos históricos e atuais da trajetória do povo preto no Brasil. Como pontua o autor,
Dentre os temas nas narrativas das canções de Sapiência, estão as agruras sofridas pelo negro e pela classe trabalhadora periférica do país; a valorização das africanidades que tanto contribuíram para nossa formação cultural; como também, o despertar da autoestima da gente preta brasileira, em vistas a valorizar e sentir orgulho da cor da sua pele, de seu cabelo encaracolado, da alegria de seu povo. (SANTOS, 2019, p.11)
Nesse contexto, uma das músicas que se destacam é “A Volta Pra Casa”. Nela, Rincon homenageia a classe trabalhadora, expondo problemas sociais vivenciados pela população periférica, como a perseguição da polícia a homens e mulheres pretas e o medo que as mulheres, principalmente, enfrentam no cotidiano.
O videoclipe de “A Volta Pra Casa”, dirigido por Kill The Buddha, foi lançado no mesmo ano que o álbum. O elenco é composto pela cantora Luedji Luna, o artista Loïc Koutana e o próprio Sapiência. O clipe, que reforça a letra da música, utiliza-se de elementos históricos que marcaram o movimento negro e explora as diferentes possibilidades artísticas dos atores. Além disso, encarrega-se de construir uma identidade visual que representa a classe trabalhadora dependente de serviços públicos precários, como transporte e segurança.
A ambientação do videoclipe dialoga diretamente com a letra. É através dos cenários que se sustenta a proposta visual da música, composta por uma ala e um corredor hospitalar, uma sala de aula, o interior de um ônibus, o interior de uma casa e as ruas da cidade à noite. A partir deles, é possível acompanhar a trajetória de volta para casa de dois personagens principais, observando como eles enfrentam as provações e os riscos do caminho de volta, ao passo que compartilha-se também o sentimento de felicidade e satisfação ao reencontrarem suas famílias.
A maioria dos elementos do vídeo, tanto os personagens quanto os cenários, remete à década de 1960. Figurinos, objetos e até o próprio ônibus – que pode ser uma simbologia na intertextualidade – resgatam elementos essenciais para a composição da estética. Essa, que retrata o tema de forma atemporal um problema social, se torna um dos pontos principais do vídeo.
A fotografia é demarcada por iluminação e por utilização de cores. O clipe é construído majoritariamente por tons de azul e amarelo. Presentes em todas as cenas, as cores alternam entre a composição do ambiente como cor principal – iluminação e cenário -, e cor secundária – o figurino dos personagens.
As cores frias aparecem logo na primeira cena – que mostra o corpo sem vida de uma mulher preta e se repetem ao longo do vídeo nas cenas dentro do ônibus. Sendo o segundo o cenário principal da narrativa, por essa se tratar da volta para casa do trabalhador no “busão lotado”, o azul se torna símbolo da tensão, do cansaço, do medo e da ansiedade.
Em oposição, o amarelo e a iluminação forte representam alívio e felicidade, como em momentos que a família da personagem principal está em casa, os momentos em sala de aula e nas performances que acontecem ao longo do clipe. No geral, o modo que as duas cores se misturam constantemente é justificado pelos sentimentos das personagens retratados em cada momento do vídeo.
Durante os créditos, uma televisão ligada ao fundo mostra uma filmagem de Rincon Sapiência em um de seus shows. Essa é única parte do vídeo que possui algum efeito sonoro externo à música gravada para o álbum. O vídeo é construído de modo que as imagens acompanhem sistematicamente a letra, portanto, não há barulhos, efeitos ou falas que não estão na gravação original.
Essa construção é a principal característica da edição. Soares (2013, p. 76) diz que “[… ] o videoclipe, nas suas condições de produção, é constituído pelo sentido relacional entre os sistemas produtivos da indústria fonográfica e as configurações plásticas entre canções e imagens associadas”. Em outras palavras, para analisarmos um videoclipe não podemos nem conseguimos separar o “ver” do “ouvir”. No caso de “A Volta Pra Casa”, essa relação som-imagem é ainda mais forte, pois a edição se configura no que o autor chama de “imagem colada”, que define o que acontece quando a parte visual está em sincronia com a música.
Por isso, quando fala-se em efeito sonoro, o vídeo dispensa onomatopéias. As cenas são encaixadas em momentos muito específicos cantados por Rincon como, por exemplo, quando o trecho diz: “A madruga é tensa, quando um estouro canta, a mãe já pensa coisas, dá um nó na garganta, oh. Perigo em todos os lados.” No momento do “oh”, o personagem interpretado por Loïc Koutana, no meio de uma performance, se encurva e coloca as mãos na barriga, como se sentisse dor. Assim como quando as palavras “asas” e voar” aparecem na música, paralelamente gestos de asas são feitos pelos atores. Por ser um recurso utilizado do início ao fim, a edição se torna um aspecto fundamental para o compreendimento do produto audiovisual. Quanto à narrativa, apesar de não ser linear na edição, a montagem é estruturada de forma que exista continuidade dos fatos.
O tema do videoclipe de Rincon é apresentado nos primeiros versos da canção, quanto o artista diz “eis aqui mais uma canção dedicada a toda classe trabalhadora, tão cansativa quanto a rotina do trabalho é aquele longo trajeto de ir e vir”. A música trata de uma realidade vivida por muitos brasileiros e de um problema social que afeta, principalmente, os moradores de periferias que passam a maior parte do seu dia deslocando-se entre trabalho, faculdade e casa. Além disso, o rapper expõe a precariedade do transporte, o cansaço do trabalhador, a violência nas cidades e o medo que homens e mulheres negras sentem ao voltar para casa à noite. No clipe, essa exposição é adaptada em duas histórias: a de uma trabalhadora da área de saúde, protagonizada por Luedji Luna e a de um trabalhador/estudante, personagem de Loïc Koutana.
No início, a personagem de Luedji encontra-se em uma ala hospitalar em frente ao corpo de uma mulher preta que não pode mais voltar para casa. Ao sair do trabalho a personagem corre para alcançar o ônibus que está passando. Ao entrar e perceber que está lotado, seu cansaço se torna explícito – ao mesmo tempo que a letra da música questiona a falta de asas do trabalhador para poder voltar para casa. Após descer do transporte, preocupada e aflita, a personagem precisa caminhar por uma rua deserta e escura. Enfim, a personagem chega em sua casa e reencontra sua família, que se mostra aliviada.
A segunda história conta a vida do personagem de Loïc, que trabalha nas ruas e estuda à noite. Com menos cenas, o trabalhador mostra-se apreensivo ao andar nas ruas à noite e muita dificuldade em se manter acordado durante as aulas.
Como já mencionado, a intertextualidade pode ser observada no uso de elementos da década de 1960. A referência presente faz alusão à época marcada pela luta dos direitos civis. Nos Estados Unidos, principalmente, o movimento marcou o fim da segregação racial e um momento histórico dessa luta, que antecedeu o acontecimento de seu objetivo, foi o boicote aos ônibus de Montgomery. O uso de um ônibus parecido no videoclipe pode ser simbólico quando o analisamos junto à letra, pois, afinal, foi graças ao cansaço e revolta de Rosa Parks, uma mulher preta, que o movimento ganhou mais força.
Sabendo-se que Rincon canta sobre uma sociedade atual, que ainda é racista, machista, violenta e desvaloriza o trabalhador, a menção ao passado da luta racial histórica traz múltiplas camadas interpretativas. A vida de uma mulher preta está sempre em ameaça, principalmente quando essa depende de serviços precários, como expõe a canção.
Além da primeira cena carregar uma forte simbologia ao mostrar o corpo preto em uma maca, o videoclipe aborda e quebra muitos estereótipos que aparecem recorrentemente na história do audiovisual. Nos momentos iniciais já sabemos que os personagens – protagonistas e figurantes, são majoritariamente negros, uma representação que não ocorre com frequência em produções de grande circulação. Além disso, os papéis exercidos pelos personagens também merecem menção quando pensamos em estereótipos: uma mulher negra como profissional da saúde e um homem negro como professor – cargos pouco ocupados por pessoas pretas nos conteúdos audiovisuais.
Outro detalhe que deve ser notado é o uso do pente-garfo – objeto símbolo de resistência do movimento negro – na cena em que a mãe da protagonista arruma o cabelo da neta. Assim, a narrativa, junto com a direção de arte, caracteriza a ruptura com os estereótipos das minorias retratas.
A inovação do clipe pode ser atribuída ao uso da dança como quebra da narrativa e expressão de sentimentos. Ao longo do vídeo, são inseridas cenas performáticas dos dois atores principais no meio de momentos mais tensos e cansativos. Assim, a utilização da arte corporal, em uma história que fala sobre o desgaste físico e mental do trabalhador, traz um contraste positivo em relação às outras cenas e aflora um lado mais pessoal dos personagens.
Por possuir uma narração em terceira pessoa, outra inovação observada foi o fato de o cantor estar presente em todos os cenários como narrador heterodiegético, ou seja, o rapper canta uma história da qual não faz parte – por isso, aparece somente para o telespectador.
Como já pontuado, o resgate a uma década passada pode ter intuito de relembrar um momento histórico do movimento negro. Mas, além disso, “A Volta Pra Casa” se torna também um clipe original por mostrar que se passa em dias atuais apesar dos elementos vintage – por causa dos automóveis que aparecem em alguns cortes, a dúvida quanto à temporalidade é esclarecida. Tendo em mente a problemática do tema, o contraste das duas épocas e tudo que é vivido pela população preta e periférica até hoje, a letra de Rincon se torna um item de representação e identificação para muitos trabalhadores, independentemente da idade.
No mais, o universo construído em “A Volta Pra Casa” pode ser caracterizado como uma obra singular no que tange à qualidade artística. Através da narrativa, da construção dos personagens e dos cenários, os versos se adequam para gerar reflexão sobre um problema social que permeia uma população muitas vezes ignorada e marginalizada pelas mídias. Por isso e considerando que o meio midiático se encarrega parcialmente de funções como informar, promover identificações e atingir diferentes públicos, Rincon Sapiência cumpre o que promete ao declarar, em seu Facebook, que “presta a sua homenagem à classe trabalhadora, […] qualquer semelhança com histórias de vida anônimas vividas pelos trabalhadores e trabalhadoras de todo o Brasil não é mera coincidência”.
Referências
SOARES, T. A Estética do Videoclipe. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.
SANTOS, W. A. Africanidades em Três Letras de Rap de Rincon Sapiência. Tese (Mestrado em Letras) – Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória. 2019.
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