Observatório da Qualidade no Audiovisual

Aceita

Por Ana Luiza Pires

  • Artista: Anitta
  • Álbum: Funk Generation
  • Data de lançamento: 2024
  • Gênero: Pop/Funk
  • Categorias: Margem e Narrativa/Performance 

Larissa de Macedo Machado, mais conhecida pelo nome artístico Anitta, é uma das figuras mais proeminentes da música pop e funk no Brasil atualmente. Destaca-se por seu estilo musical eclético, que engloba funk carioca, pop, reggaeton e outros gêneros. Além de sua carreira nacional, Anitta tem conquistado sucesso internacional com projetos e colaborações em diversas línguas, solidificando sua posição como uma das cantoras e compositoras mais renomadas do país. A carreira de Anitta ganhou destaque em 2013 com o sucesso do single “Show das Poderosas”. Antes disso, ela já se preparava para a carreira artística desde 2009, postando vídeos de suas performances on-line e se apresentando em eventos locais. O reconhecimento veio com a ajuda de uma equipe de produção que possibilitou o lançamento do primeiro EP, fazendo com que a cantora alcançasse o estrelato.  

O single Aceita é parte integrante do álbum Funk Generation, lançado em 2024. Esse disco trilíngue apresenta músicas em português, espanhol e inglês, contando com um total de 15 faixas. Ele nasceu com a expectativa de ser o primeiro álbum de Anitta dedicado exclusivamente ao funk brasileiro. Lançado em maio de 2024, o clipe Aceita, produção da GINGA Pictures, gerou polêmica desde o anúncio. Ao publicar sobre o álbum em suas redes sociais, a cantora suscitou uma série de questões e debates sobre a intolerância religiosa no país. Segundo Pinotti (2024), assim que o videoclipe foi anunciado a cantora perdeu mais de 200 mil seguidores em menos de duas horas, nas suas redes sociais.  

Todo o videoclipe é ambientado em um terreiro de candomblé, localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro (O Globo, 2024). O candomblé é uma religião afro-brasileira, que se formou na Bahia, “[…] quando o tráfico trouxe do continente africano um número significativo de escravos originários de várias cidades iorubas: Queto, Ijexá, Efã, entre outras. No Brasil, estas acabaram emprestando o nome aos terreiros de sua influência”. (Mattos, 2007, p. 161-162). 

No videoclipe, embora a cantora esteja em foco em diversos momentos, a contemplação do terreiro, da religião e dos rituais da mesma se mostram de forma significativa. Diferentes espaços do terreiro são destacados, realçando a ambientação e proporcionando ao espectador uma visão contemplativa da religião. É possível observar também um diálogo entre a apresentação do ambiente com a construção da fotografia. O primeiro elemento de destaque é a estética em preto e branco, que permanece no videoclipe do início ao fim. Esse recurso cria uma sensação de unidade nas imagens apresentadas.

O videoclipe se destaca pela liberdade na variação de planos e ângulos, um dos elementos mais notáveis do trabalho. Planos mais fechados são usados para detalhar elementos, objetos e expressões das pessoas no terreiro, enquanto planos mais abertos predominam nas performances de Anitta e nos momentos ritualísticos. Durante Aceita é possível observar uma constante inter-relação entres os planos, isto é, uma imagem em plano geral e, posteriormente, planos mais fechados, que detalham e evidenciam as ações.

O primeiro plano mostra a cantora de pés descalços, em contato direto com o chão de terra do terreiro, evidenciando uma conexão com o elemento terra. 

Outros elementos naturais, como água e fogo, também são destacados ao longo do vídeo. A água surge em dois momentos significativos, sendo o primeiro a chuva. 

É fundamental destacar o forte significado que a natureza tem para essa religião. Assim como destaca Mãe Lúcia (2019) sobre o candomblé: A nossa força vem da natureza, vem da terra. O que a gente precisa é ficar com os pés assentes nessa terra. Vem da água do mar, da água dos rios, vem de toda a natureza em si e vem também da natureza mais complexa que a gente cuida, que é a natureza humana” (YouTube, 2019, On-line). O segundo momento que a água surge traz grande significado para o videoclipe, mostrando o banho de abô, um banho ritualístico recebido pela cantora.

O videoclipe traz diversas referências à religião a todo momento, e o banho é um ritual de suma importância dentro do candomblé. Em entrevista à Revista Veja, o Pai de Santo Thalles d’Oxoguian traz uma explicação para o banho explícito na obra. 

Para nós do Candomblé, o corpo em si é sagrado, assim como a cabeça, que também deve ser cuidada. […] Durante o ritual, o sagrado está presente, e não há julgamento em relação ao corpo despido. No Candomblé, ninguém se auto inicia;  precisamos de alguém mais experiente para nos conceder o axé e realizar o ritual. Apenas aqueles que já receberam podem conceder, essa é a regra do Candomblé. Se você já recebeu um banho ritualístico de um mais velho, então está apto para passar esse banho para outros. Independentemente se aquele que está recebendo o banho tem pouco ou muito tempo de santo, é considerado como um bebê, pois é um momento de desconexão do mundo, em que nos permitimos ser cuidados” (d’Oxoguian, 2024, On-line). 

Já o elemento fogo, é visto nas velas acesas e que se apagam, além de uma fogueira em um ritual. 

As intertextualidades do clipe são múltiplas e vão para além da ambientação, também estando presente nas vestimentas, objetos de cena e demais. Por exemplo, na roupa de palha utilizada pela cantora durante o vídeo. Segundo Assumpção (2024), esta vestimenta é uma referência ao orixá Obaluaê, ou Omolu, considerado como o senhor da cura e das doenças (Assumpção, 2024, On-line)

Outra referência significativa em Aceita é o Jogo de Búzios. O videoclipe exibe uma Mãe de Santo realizando esse oráculo sagrado do Candomblé, que é utilizado para aconselhar e orientar as decisões. Também é importante ressaltar a simbologia do baralho cigano que, embora não tenha conexão direta com a religião, é um elemento de grande popularidade no Brasil. 

Deste modo, as intertextualidades vão além do Candomblé, incluindo elementos do catolicismo e das religiões evangélicas. Um dos planos do videoclipe exibe um altar católico, repleto de imagens de santos e também destaca a figura de um pastor em um culto. A cantora ressaltou em suas redes sociais essa diversidade de crenças em seu trabalho. “Meu novo clipe traz imagens de vários tipos de crenças. Tenho uma paixão profunda por diferentes manifestações da fé, diferentes formas de me conectar com o espírito” (Anitta, 2024, On-line). 

A edição do videoclipe não é linear e se destaca pela sua dinâmica e fluidez entre os cortes. Acompanhando o ritmo da música com cortes rápidos e uma sequência de planos curtos que se alternam ao longo do vídeo. As variações de planos e ângulos são habilmente intercaladas ao longo do videoclipe, mantendo a dinâmica e a sincronia com o ritmo da canção. 

Os efeitos sonoros são compostos principalmente pela música da cantora, no entanto, o videoclipe se inicia ao som de um Atabaque, tocado pelo Ogã no terreiro. O efeito é incorporado ao clipe de maneira diegética, isto é, a origem do som é vista pelo espectador e está inserida no universo do videoclipe. Manuela (2008, Online) destaca que os Atabaques “ […] são de origem africana, usados em quase todos rituais, típicos do Candomblé. De uso tradicional na música ritual e religiosa, são utilizados para convocar os Orixás”. A intertextualidade se destaca novamente nesse aspecto, por ressaltar o Ogã. O Ogã é uma figura essencial na religião, e desempenha um papel fundamental nos rituais e cerimônias. Como sacerdote e servidor, o Ogã é responsável por tocar os atabaques, conduzir cânticos e assegurar que os rituais sejam realizados com precisão. 

O tema da identidade no videoclipe é cuidadosamente explorado, com destaque para a conexão da cantora com a religião representada, que é um dos focos principais do vídeo. Além disso, a afirmação da sua própria identidade é evidente ao longo do clipe, com o apoio da letra da canção. Anitta reforça o empoderamento feminino e sua própria autenticidade, destacando sua trajetória desde a origem humilde e a influência que exerce em diversos lugares do mundo atualmente. 

Considerando a conexão da cantora com a religião, é notável como as minorias são cuidadosamente representadas no videoclipe e de forma respeitosa. Mulheres, mães de santo, pais de santo e outras pessoas são destacadas no terreiro e nos rituais. Um exemplo disso é o pai de santo Sérgio Pina de Oxóssi, que estava presente no clipe trazendo uma representação autêntica de si mesmo. Ademais, é preciso ressaltar a (re)afirmação da ancestralidade no trabalho, quando em um plano final Anitta é vista entre duas mulheres pretas, mães de santo no candomblé. 

O storyline de Aceita não segue uma estrutura linear, alternando entre os principais arcos e imagens de Anitta performando a canção. Nesse sentido, o storyline pode ser dividido em cinco momentos distintos: a apresentação do terreiro, o banho de abô recebido pela cantora, o ritual com seu Pai de Santo, o ritual na fogueira e a performance na chuva, com a participação de todas as pessoas presentes no videoclipe.

A inovação do videoclipe se destaca em três aspectos principais: a ambientação, as referências a múltiplas religiões e a letra da canção, que inclui trechos em espanhol, inglês e português. Esses elementos evidenciam a grande expansão cultural da artista, a versatilidade de seu trabalho e seu compromisso com a diversidade em diversos aspectos. Além disso, o gênero da canção, que mistura elementos de pop e funk, reforça ainda mais essa amplitude, evidenciando a capacidade da artista de transitar por diferentes estilos musicais e ampliar seu alcance cultural e global. Combinados, esses elementos conferem ao videoclipe um caráter original e único.

A qualidade artística reforça o discurso autêntico de empoderamento de Anitta, tanto através do videoclipe e suas ricas intertextualidades com o candomblé, quanto na letra da canção que acompanha a performance, e na valorização do gênero funk. Assim como ressalta a cantora, o clipe “tem a ver com a minha religião, mas também com a cultura funk, né? Que nada mais é também que cultura afro, que é a mistura e também a quebra de preconceitos religiosos que eu sempre gosto de fazer no meu trabalho, na minha vida”. (Mendes, 2024, Online). Dessa forma, pode-se afirmar que as raízes culturais de Anitta são evidenciadas na produção e sua arte serve como uma plataforma para promover a diversidade. Além disso, a interseção entre tradições e inovação é celebrada, permitindo observar uma ampliação dos nossos horizontes culturais por meio do videoclipe da cantora.

Referências

ANITTA – Aceita. YouTube: [s. n.], 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oyhlZhUjaeQ&ab_channel=AnittaVEVO. Acesso em: 28 jul. 2024.

ASSUMPÇÃO, Gustavo. Obaluaê, ancestralidade, pastores neopentecostais: As referências do clipe de ‘Aceita’, lançado por Anitta. Revista Marie Claire [S. l.], 14 maio 2024. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/cultura/noticia/2024/05/as-referencias-do-clipe-de-aceita-lancado-por-anitta.ghtml. Acesso em: 1 jun. 2024.

FRAGUITO, G. A explicação de pai de santo para nudez de Anitta em clipe: Pai Thalles d’Oxoguian, do candomblé, fala sobre o ritual exibido por cantora. Veja [S. l.], 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/a-explicacao-de-pai-de-santo-para-nudez-de-anitta-em-clipe. Acesso em: 10 jul. 2024.

BORGES, G. A qualidade na televisão pública portuguesa. Análise dos programas do canal 2. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2014

HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016. 

MANUELA. Os Toques no Candomblé. In: Os Toques no Candomblé. [S. l.], 2008. Disponível em: https://ocandomble.com/2008/08/20/os-toques-no-candomble/. Acesso em: 16 jul. 2024.

MATTOS, R. A. de. História e Cultura Afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2007.

MENDES, Maria Clara. No terreiro! Anitta exalta candomblé e sofre ataques por intolerância religiosa. [S. l.], 14 maio 2024. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/gente/no-terreiro-anitta-exalta-candomble-e-sofre-ataques-por-intolerancia-religiosa,cf49b9ebc281d3ca287de889b29fd63awydxan18.html#:~:text=No%20%C3%BAltimo%20m%C3%AAs%2C%20em%20uma,na%20minha%20vida%22%2C%20disse. Acesso em: 10 ago. 2024 

PINOTTI, Fernanda. Anitta lança clipe de “Aceita”: “Cheio de significado pra mim”; veja. In: CNN. 14 maio 2024. Disponível em:                                https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/anitta-lanca-clipe-de-aceita-cheio-de-significado-pra-mim-veja/. Acesso em: 10 ago. 2024.

VOCÊ CONHECE o CANDOMBLÉ? – Canal Àwúre. Direção: Canal Àwúre. YouTube: [s. n.], 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_J971OTZsQ8&ab_channel=Canal%C3%80w%C3%BAre. Acesso em: 8 jul. 2024.

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