Por Luma Perobeli
Personagem de animação digital português que estreou nas redes em 2008 e na televisão em 2009, Bruno Aleixo é um homem de personalidade forte, ranzinza, sincero, que se irrita facilmente e tem caráter duvidoso. Criado numa linguagem rudimentar, feita por um software que só anima bocas e olhos, Aleixo se assemelha a um cachorro e vive num mundo perfeitamente normal com outros seres que também têm aparência estranha. Dos criadores João Moreira, Pedro Santos e João Pombeiro (Guionistas e Argumentistas Não-Alinhados – GANA), o universo ficcional Aleixo é extenso e tramita por diferentes plataformas, como web, TV, cinema, rádio e redes sociais.
História derivada do Programa do Aleixo (conteúdo exibido na televisão portuguesa em novembro de 2008), Aleixo no Hospital traz sete episódios para representar a saga de Bruno na descoberta, tratamento e cura do mal que o atinge: pedras na vesícula. O objetivo da série é ampliar os horizontes narrativos do público ao dar a ele a oportunidade de conhecer um pouco mais da vida do protagonista, cuja figura é central para o desenrolar de todas as outras tramas do universo ficcional de Bruno Aleixo. Com episódios que variam entre 4 e 5 minutos cada, aproximadamente, os vídeos foram criados para o YouTube em 2009, têm assinatura da SAPO Vídeos, e podem ser vistos no site da plataforma.
No que se refere aos códigos visuais, do plano da expressão, as imagens que compõem os vídeos são estáticas, o ponto de vista é sempre objetivo, e os cortes são, na maioria do tempo, secos. O ângulo é quase o tempo todo normal (visão frontal), a iluminação é naturalista e o plano médio é o principal. Em Aleixo no Hospital não há a presença de personagens humanos, e a maioria dos que aparecem (com exceção da enfermeira), já são conhecidos do espectador do universo Aleixo devido às outras produções, inclusive Dr. Ribeiro, médico invisível amigo de Bruno.
Quanto à ambientação da narrativa, a série se desenvolve em um único lugar: o hospital em que Bruno Aleixo foi operado, na forma de apenas dois cenários, que são credíveis ao espectador e corroboram com a linguagem simples característica do universo: a sala do médico Rui Manoel Ribeiro, amigo que vai tratar de Bruno; e o quarto em que o personagem está antes e após a cirurgia.
Comum em produções audiovisuais, em que a intenção é situar o espectador sobre onde a cena seguinte se passará, nesta série há o recurso de mostrar a frente do prédio do hospital, em câmera levemente contra-plongée (câmera baixa, voltada para cima) com suave aproximação, antes de mostrar a cena que vai se seguir depois. A imagem é estática, consoante à linguagem comunicativa adotada pela série, e é acompanhada de ruídos ao fundo, como o canto de pássaros e barulhos de carros. São nestes poucos segundos, inclusive, que os códigos sonoros têm destaque.
No que se refere aos códigos sintáticos, a edição é linear, mostrando desde o momento da consulta de Bruno com o médico para se queixar dos sintomas, passando pelo pré-operatório e visitas, até o dia em que o paciente recebe alta do hospital, depois de 30 dias afirmando que ainda não estaria bem, só para poder ficar mais tempo ali. Dos códigos gráficos, há vinheta final e de abertura. Simples, aparecem sob a forma de radiografias, acompanhadas de um som instrumental calmo e sereno. Na abertura, a vinheta apresenta o nome da série e o de quem o produz, além do número do episódio e o título dado a ele. Ao final, a palavra “fim.”, o nome GANA, e o ano de produção.
Com relação ao plano do conteúdo, Aleixo no Hospital faz uso da oportunidade por pautar a sua narrativa em assuntos cotidianos e elementos do dia a dia. Temas e referências da sociedade portuguesa são trazidos à tona em meio aos diálogos, enfatizando a intertextualidade que é expressa por meio da menção às marcas, como Multibanco, Nokia, Alcatel, MEO e outros como jogo da serpente, e a rede social Hi5. Esses usos nos levam a refletir sobre outros dois indicadores: ampliação do horizonte do público e estereótipo, intimamente ligados com a capacidade interpretativa e interativa do espectador com a série.
É muito pelo uso da oportunidade e da intertextualidade adotadas na trama que pode ser gerada no espectador alguma identificação segundo o viés sincero e corajoso do personagem, que fala o que pensa e não tem papas na língua (afinal, quem nunca quis falar tudo o que passa pela cabeça, sem pensar nas complicações que isso poderia causar?). Entretanto, ao mesmo tempo em que pode haver identificação pelo jeito, pode ser que haja também alguma repulsa pelo o que é dito.
Isso é o que esperamos que aconteça com o espectador quando ele acompanha no episódio um, por exemplo, Bruno convencer o médico a cobrar na conta de uma paciente idosa qualquer o exame que ele deveria fazer, simplesmente pelo fato de que ela nem perceberia o valor a mais; ou no segundo episódio, em que Bruno culpa um médico do passado pela doença que está agora (pedras na vesícula); ou quando no episódio três o protagonista propõe que a enfermeira tire sangue dele não através de uma agulha, mas por uma hemorragia no nariz.
Mas, num contexto de crise ética e social em que a normalização da barbárie e a naturalização de absurdos são recorrentes e determinantes em uma sociedade (como é o caso do Brasil hoje, por exemplo), esse tipo de discurso adotado por Bruno pode gerar identificação por completo à figura construída do personagem, tanto pelo jeito sincero, quanto pelas falas absurdas, o que pode manipular positivamente as emoções de quem assiste e estimular o reforço de estereótipos.
Isso pode acontecer, por exemplo, quando Bruno insinua que a conduta de um médico é de acordo com as circunstâncias da sua vida (desvalorizando o conhecimento científico deste profissional); ou quando, na trama, o médico Ribeiro se mostra não ser uma pessoa tão idônea assim (corroborando com Bruno quando ele acusa a categoria médica de possuir um caráter duvidoso); ou quando o protagonista diz que depressão não é doença, reforçando esse estereótipo que faz com que tantas pessoas ignorem uma patologia que se tornou um problema na sociedade atual.
Sobre a diversidade, não podemos afirmar que há relevância desse indicador. O número de personagens é reduzido, majoritariamente masculino (com exceção da enfermeira), e quase todos pertencem ao círculo de amizade do personagem principal, envolvidos em conflitos que giram ao redor dele e em soluções que perpassam por sua personalidade duvidosa e manipuladora. A diversidade temática é inexistente, visto que os sete episódios se dedicam à solução da doença de Bruno, que está com pedras na vesícula. Nesta série, somente a diversidade geográfica é observada, com citações a países como Brasil, Espanha, Nigéria e República Checa. Essa diversidade é, inclusive, recorrente também em outras produções do universo ficcional do Aleixo, o que reflete o caráter integrador e internacional de Portugal, país do continente europeu que criou este universo ficcional.
Em Aleixo no Hospital, originalidade e criatividade estão presentes pelo mesmo motivo observado em todos os outros conteúdos do universo: as produções são feitas por uma estética de animação rudimentar. E apesar de parecer que isso nada tem de criativo, a originalidade existe porque no contexto das grandes produções audiovisuais, possibilitadas pelas modernas tecnologias, insistir em uma técnica inusual de animação, que só anima bocas e olhos, torna-se diferente e inovador.
Neste sentido, todo o universo ficcional de Bruno Aleixo apresenta um formato bem organizado, com uma estrutura narrativa que não apresenta alterações e se repete ao longo das emissões, permitindo que o público reconheça todos os códigos do plano da expressão do produto audiovisual, contribuindo, assim, para a clareza da proposta dos vídeos desta análise.
Quanto à mensagem audiovisual, solicitação da participação ativa do público e diálogo com/entre plataformas são parâmetros observados de forma indireta através da presença dos outros personagens da série, amigos de Bruno, que se envolvem com ele de alguma forma enquanto está no hospital. Seja dando o tratamento, como faz o médico Ribeiro, ou visitando o personagem, como faz Nelson e Homem do Bussaco, estas aparições fazem referência às outras narrativas e plataformas do universo, podendo gerar curiosidade e maior participação do público.
E esses indicadores, que se limitam ao convite indireto para que o espectador tenha uma maior imersão nos outros conteúdos, leva-nos a pensar sobre as setas chamativas presentes, que também não garantem uma interação direta com os episódios por não solicitarem grandes manobras de raciocínio para a compreensão. A série é apresentada de maneira linear e condizente linguística e esteticamente com o universo de produções a que pertence, e somente no episódio quatro, quando há um recurso de storytelling, que o espectador pode ficar um pouco confuso sobre o que vê, já que só no último momento do vídeo que ele percebe que a história que se passou naquele episódio foi, na verdade, um sonho do protagonista.
No geral, a construção narrativa em Aleixo no Hospital (como vem sendo observada em outras produções do universo ficcional), concorre para a produção de um estado de aversão associado às personalidades mostradas. Pode ser que haja identificação pelas situações apresentadas e, por vezes, por algumas atitudes tomadas pelos personagens, entretanto, o maior sentimento produzido parece estar ligado ao despertar de repulsa e reprovação a alguns comportamentos apresentados, principalmente dos que partem do protagonista. E é aí que está a brecha para que o espectador se contraponha aos valores transmitidos e, talvez, reflita sobre o que assiste.
“Talvez” porque, na verdade, essa é uma das possibilidades quando refletimos sobre a recepção e interação do público com a produção. Posto que, como vimos, essa estratégia adotada pelo universo ficcional do Bruno Aleixo pode ser arriscada por prever duas atitudes cognitivas: a legitimação na vida real de um discurso desrespeitoso e preconceituoso; ou a desconstrução de estigmas e estereótipos, esse sim com poder para gerar horizontes mais ajustados com os direitos humanos.
* Todas as imagens usadas nesta análise são capturas de tela.
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