Por: José Duarte e Hugo Rocha
Luís Buñuel foi um cineasta espanhol (naturalizado mexicano), reconhecido como “o pai do surrealismo cinematográfico”. Ao frequentar a Universidade de Madrid, conhece o pintor Salvador Dalí, com quem acaba por formar amizade e que o convida a realizar “O Cão Andaluz” (Un Chien Andalou) em 1929, curta-metragem de estreia de Buñuel – com argumento de Dali e Buñuel – e que se viria a tornar um marco na história do cinema. Buñuel é conhecido pela sua abordagem subversiva ao cinema, explorando temas como o inconsciente, a religião, a sociedade e a política, através da desconstrução do real, das convenções narrativas e do que se entende como trivial ou mundano, suscitando reflexões profundas sobre a natureza humana e a sociedade.
Entre o fantástico, o absurdo, o onírico e o descabido, munindo-se da sátira e comédia para contar histórias, Buñuel constrói uma filmografia que inspira realizadores como Wes Anderson, Pedro Almodóvar, Gaspar Noé, Miguel Gomes, Jonathan Glazer, Aki Kaurismaki (Winfrey, 2017), entre muitos outros, sendo mais que notável a sua irreverência e a forma como acabou por revolucionar a Sétima Arte. Entre os filmes realizados pelo espano-mexicano destacam-se “A Bela de Dia” (1967), “O Charme Discreto da Burguesia” (1972), “O Anjo Exterminador” (1962), “Este Obscuro Objecto do Desejo” (1977), “A Idade de Ouro” (1930) e, claro está, “O Fantasma da Liberdade” (1974).
Através de uma sucessão de vinhetas, quase classificadas como anedotas visuais, que, maioritariamente, nem estão estritamente interligadas, Luís Buñuel usa o surrealismo para refletir sobre o conceito de liberdade e demonstrar o quão frágil este é em contexto civilizacional. O próprio título impele que a liberdade não existe ou que não passa de uma farsa (tratando-se de um fantasma), devido às inescapáveis convenções sociais que temos em nós. Daqui surge a nossa pergunta de investigação:
Após a visualização da longa-metragem, decidiu-se selecionar três vinhetas que, no nosso entender, contribuíssem da melhor forma para o nosso estudo. Apesar de na película não ser feita uma divisão explícita entre as vinhetas, é possível identificarem-se 14 capítulos que vão transitando sempre com personagens diferentes. Escolhemos então a vinheta a que demos o nome de “O Parque” – aproximadamente entre os minutos 5:15 e 16:30 -, “O Hotel” – dos 18:50 aos 47:05 – e por fim a “Cena do Jantar” – do minuto 55:30 ao minuto 1:00:12 -, este que é, o momento mais mediático e reconhecível do filme. De cada um destes capítulos, escolhemos uma cena para analisar semioticamente, consoante o contexto que lhe rodeia.
Por fim, findada a análise descritiva dos objetos de estudo, é tempo de fazer uma análise semiótica segundo a ótica de Charles Sanders Peirce (1839 – 1914), explorando as tríades de Peirce com a intenção de esclarecer como ocorre a construção de significado na análise da narrativa visual. A ideia é entender como os signos e símbolos utilizados no filme O Fantasma da Liberdade desvendam a constante existência de pré-conceitos e convenções sociais que temos na vida em sociedade.
Escolha de cenas em O Fantasma da Liberdade
O surrealismo foi um movimento artístico e literário que surgiu no início do século XX, principalmente nas décadas de 1920 e 1930. Destaca-se pelo ênfase que dá na expressão criativa do subconsciente e na libertação das restrições racionais e lógicas. Como escreve Mirian Tavares (2016): “O surrealismo, como movimento de vanguarda, surge então no momento de explosão da forma vigente de se apresentar o mundo através da arte” (Tavares, 2016, p. 26). Foi influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, que exploravam o papel do subconsciente na formação do comportamento humano. Os artistas e escritores surrealistas procuravam representar os impulsos e imagens do inconsciente, muitas vezes em um estilo altamente figurativo e irracional. Nomes como André Breton – considerado o criador deste movimento após a publicação do “Manifesto Surrealista” (1924) -, Salvador Dalí, Joan Miró, Max Ernst ou René Magritte, são exemplos de artistas que marcaram o surrealismo. Sendo o expoente máximo da sua representação no cinema, Luís Buñuel.
O Fantasma da Liberdade foi o penúltimo filme de Buñuel e segundo este, perfaz o termo de um tríptico com as suas obras “A Via Láctea” (1969) e “O Charme Discreto da Burguesia” (1972), afirmando que nos três filmes, os temas são consistentes, apresentando-se ocasionalmente com as mesmas expressões, abordando a busca pela verdade, esta que se torna uma fuga assim que se acredita em tê-la alcançado, além do rigoroso ritual social. Exploram a influência do acaso, a moral pessoal e o mistério que merece ser preservado (Buñuel, 1982). Quanto ao título, Buñuel ainda indica:
“Este novo título, já presente numa frase de A Via Láctea (“a vossa liberdade não passa de um fantasma”), pretendia ser uma discreta homenagem a Karl Marx, àquele “espectro que percorre a Europa e se chama o comunismo”, no início do Manifesto. A liberdade, que na primeira cena do filme é uma liberdade política e social (esta cena é baseada em acontecimento reais, o povo espanhol gritava de facto “Viva os grilhões” a favor do regresso dos Bourbons, por ódio às ideias liberais introduzidas por Napoleão), essa liberdade adquire rapidamente um novo sentido, a liberdade do artista e do criador, tão ilusória quanto a anterior.”
O Parque
Decidimos chamar a esta vinheta de “O Parque” pois é mesmo aí que ela começa. Com uma transição da primeira para a segunda vinheta (atual), vemos duas mulheres sentadas num banco, onde uma delas lia em voz alta os acontecimentos da primeira cena. De seguida, duas meninas chegam de bicicleta. A senhora que contava a história pergunta onde estas estiveram, ao que estas respondem que estavam a pedalar numa ponte perto de onde estão. Logo em seguida, dizem que vão ao escorrega do parque. A senhora mais velha diz que já passará por lá para as ir buscar, então estas arrancam para o local.
Vemos as duas miúdas a caminho, ficando cada vez mais distantes da câmera. Logo após um corte rápido, é feito um plano de cima para baixo do escorrega. Vemos duas outras meninas a descer em contraplano e um homem que as observa de forma atenta. Este senhor, de casaco comprido, chapéu e óculos, parado no meio do parque parece ser uma forma de colocar o espectador desconfortável. Entretanto, as meninas que seguíamos, chegam ao local, descem das suas bicicletas e dirigem-se ao escorrega.
Após descerem, as duas são confrontadas por este indivíduo. Neste momento, os nossos alarmes soam. Um homem mais velho aborda duas crianças num parque. A conversa começa com um elogio desconcertante às meninas – “Desceram tão bem”. Começado o diálogo, o homem pergunta os nomes das meninas, Veronique e Valérie – respondem. O homem, diz que as duas são gentis e por isso, tem um presente maravilhoso para as duas. Logo após dizê-lo, o mesmo agarra os ombros das meninas e diz para o seguirem. Elas apontam para onde estão as bicicletas e para a rocha onde estão encostadas. O homem leva-as até ao local e, ao chegar perto das bicicletas, senta-se, acaricia a cara das duas crianças e diz que lhes vai mostrar imagens muito bonitas. Este anúncio vem com um aviso: elas não as devem mostrar aos adultos. Após tirar as fotos de um envelope que traz, o mesmo mostra as imagens às meninas. Até agora, o espectador não teve oportunidade de ver essas fotos e apenas pode especular, vendo a reação das meninas e um sorriso “malicioso” do homem. Após mostrar as fotos, ele reúne-as no envelope, e coloca-as no bolso de uma das meninas dizendo para mostrar a todas as suas amigas, mas avisa mais uma vez: Nada de mostrar aos adultos.
A cena corta para as duas senhoras que estavam sentadas no banco, a chegarem ao local que tudo isto decorre. Um plano afastado mostra-as a caminharem em direção aos 3 (homem e meninas). As duas não esboçam nenhuma reação a esta cena, simplesmente aceitam um cumprimento formal do homem, que tira o seu chapéu, e responde de acordo.
Num corte rápido, passamos para um grande plano de uma aranha, embalsamada e dentro de uma moldura. Logo a seguir, a câmera afasta-se, e mostra o ambiente onde se passa o momento atual. Uma casa, bem mobiliada, aparentemente de alguém de boas posses. A câmera enquadra-se num homem, bem-apresentado, penteado, de fato e gravata, que exclama, antes mesmo de agarrar na moldura com a aranha: “Estou farto de simetria”.
Ele leva-a para cima da lareira onde se encontram, em cima da sua estrutura de mármore, dois candelabros e um relógio. Esse mesmo relógio é afastado para dar espaço para a moldura ser colocada. O homem afasta-se para o que parece, analisar o posicionamento dos objetos. De olhar analítico e mãos na cintura, o homem fita o local por breves instantes, antes de ser interrompido por uma mulher. A mesma chama-o pelo nome: Henri. Henri pergunta-lhe se já chegou, ao que esta responde que nunca saiu de casa para começar. Henri mostra-se confuso. A mulher pergunta se está tudo bem ao que ele responde – “Não sei o que se passa, estou cansado, no limite”. Ambos se sentam no sofá, e a mulher diz que reparou nesse cansaço dele nos últimos tempos. A mulher diz que Veronique (uma das duas meninas do início da cena) estará de breve em férias, e que estes deviam aproveitar para ir fazer uma viagem pelo mar.
A partir daqui, com esta menção a uma das meninas, e a proximidade que demonstram, estabelece-se que este é um casal, e que pelo menos, Veronique será sua filha. Num corte para a porta da casa, vemos Veronique a chegar junto de uma das senhoras que as acompanhavam. Esta abraça a mulher do casal e diz – “Olá mãe”. Veronique no segundo seguinte, retira o envelope que lhe foi dado pelo homem suspeito, e diz à mãe para ver o que alguém lhe tinha dado. A mãe simplesmente pega no envelope, senta-se no sofá e continua a conversa com o seu marido – “Passei por ti ontem na rua, nem me reconheceste”. O homem responde que não tem dormido muito bem, e que tem passado a maior parte das noites em branco. A mulher diz que Henri deveria fazer um “check-up”. Henri rebate – “não uses esse termo, existe um termo próprio em francês, «examen général»”. A mulher queixa-se de o termo ser extenso e complicado, dizendo que Check-up é mais rápido e simples, ao que Henri responde – “Qual é a pressa?”.
Enquanto falavam, a mulher ia lentamente abrindo o envelope e revelando os seus conteúdos. Após o fim desta conversa, ela dá o primeiro olhar às fotografias que tinha agora nas mãos. Vemos a expressão neutra e casual da mulher lentamente a escalar para um olhar horrorizado. Rapidamente ela levanta-se, chama e dirige-se para a divisão onde está a mulher que acompanhava Veronique no seu passeio. Ela pergunta como é que ela tinha deixado o desconhecido dar algo à sua filha. A mesma responde que não viu nada disso a acontecer, e que o senhor era muito simpático, até lhes ofereceu doces – de salientar que os doces foram oferecidos às mulheres que acompanhavam as meninas.
A mulher volta para a sala onde o marido ainda se encontra, aparentemente distanciado com um olhar vazio. Ao se sentar novamente no sofá, a mesma exclama – “Que desgraça!”. Ela pergunta se isto é possível, visivelmente melindrada com os conteúdos das fotos. Henri simplesmente responde – “Nojento, mas o que é que se pode fazer?”. A mulher queixa-se de “estar no limite da sua inteligência” e diz que é impossível vigiar constantemente a sua filha. Henri, após um olhar atento às fotos, puxa a sua mulher suavemente pela mão para perto de si.
Ambos, próximos, olham para as fotos e começam a relembrar-se de um momento romântico em Milão. A conversa toma um curso mais íntimo e aos poucos ambos vão se agarrando, culminando num beijo carregado de paixão. Henri de seguida coloca uma das fotos na mesa à sua frente, e finalmente a primeira imagem é revelada ao espetador. Contrariando qualquer construção feita na nossa mente com todos os factos e reações em volta destas fotos, na sua revelação, vemos apenas uma paisagem com um pôr do sol. De seguida vemos os dois, em contraplano, a olhar as fotos uma a uma, dizendo coisas como, “revoltante” e “nojento”. No entanto, todas as outras fotos mostram apenas fotos de paisagens. Uma das fotos desperta a atenção de Henri que exclama – “Esta não!”. A mulher pede para ver e Henri recusa. Enquanto esta pede uma justificação, o marido rasga a foto em dois. A mulher tira as duas metades da sua mão, e ao juntá-las, a foto mostra apenas um mosteiro. A mulher confirma – “Realmente, isto é demais” e rasga mais uma vez a foto. De seguida, a mulher chama pela criada da casa, a mulher que acompanhou Veronique. Depois volta a insistir com o marido – “Devias mesmo ir a um médico”.
Veronique entra na sala e dirige-se ao pai, que, sentado no sofá, devolve as fotos à menina. A mesma pergunta se pode trocá-las por imagens de aranhas e o pai responde de forma breve que sim. A criada chega ao local e Henri informa-a que está despedida pelo acontecimento inicial da cena. Henri despacha-se para sair e mais uma vez mostra- se desligado de tudo, simplesmente dizendo à criada que lhe implora pelo seu emprego – “Resolva isso com a minha mulher”. Enquanto essa situação é tratada, Pai e filha vão olhando para um livro com vários desenhos de aranhas, e apontando os seus nomes.
A cena corta para um grande plano de um relógio, e vemos Henri a colocar um despertador para o dia seguinte. Henri, que fuma um cigarro, apaga-o, desliga a luz da cabeceira, e deita-se. A partir daqui é interessante olharmos o relógio. No momento que Henri coloca o despertador, o relógio marca 22:39. Após se deitar, pelo que para nós parecem apenas alguns segundos, Henri acorda para beber um copo de água e repara que já é 1:00 da manhã. Confuso, Henri agarra no relógio, e, de repente, ao olhar para a frente, vê um galo a andar pelo seu quarto. Mais uma vez, estes acontecimentos passam em apenas alguns segundos, mas quando Henri pousa o relógio, este já marca 2:04 da manhã. Henri fica reflexivo, e tenta entender o que se passa.
A cena corta para uma mulher a entrar dentro do quarto com uma vela e um relógio de bolso. A mulher aponta esse mesmo relógio ao casal, e apaga a vela que traz. Mais uma vez, o foco volta ao relógio, que já marca 3:01 da manhã. Mais uma vez, a cena corta, e vemos um carteiro, que chega de bicicleta ao quarto do casal, a sair da bicicleta, e a deixar uma carta para Henri. Neste momento o relógio marca 4:01 da manhã. Mais uma vez a cena corta e vemos uma avestruz (tema transversal à temática do filme) a andar pelo quarto. Durante todo este segmento, os sons ensurdecedores do relógio e sons de sinos trazem um tom misterioso e até macabro a toda a cena. Henri simplesmente olha para ela estupefato, e após dar uma pequena volta, a avestruz abandona o quarto.
A cena corta para uma sala, e um homem diz – “Já ouvi o suficiente”. Vemos que Henri está consigo na sala. É possível depreender que Henri contou a sua experiência noturna a este homem. O mesmo lamenta não ser a sua especialidade. Ele diz que nada de físico está mal com Henri e aconselha-o a buscar a ajuda de um psicanalista. Henri diz que nada daquilo foi um sonho, e mostra a carta que o carteiro lhe deixou ao doutor. Este abre a carta e prepara para a ler, mas é interrompido pela sua assistente.
A mesma diz que precisa de falar com ele urgentemente. Ambos se dirigem para a sala ao lado, deixando Henri à espera. A assistente diz que o seu pai está bastante doente, e que precisa de o ver. O doutor diz que ambos têm muito trabalho no consultório. A assistente diz que apenas estaria fora um dia ou dois, e então o doutor dá- lhe a permissão para ir ver o seu pai. A partir daqui a cena corta para a assistente a conduzir e aqui damos no nosso entender, por terminado a cena do parque. As vinhetas deste filme transacionam suavemente desta forma entre si, avançando a narrativa.
O Hotel
A vinheta do Hotel começa exatamente na transição final da vinheta do Parque. Seguimos a assistente do médico na sua viagem de carro até ao seu pai doente. A cena começa com ela a andar por uma estrada num meio rural, uma floresta. A câmera salta de um grande plano da assistente ao volante, a um plano mais panorâmico para mostrar o carro a percorrer a distância e voltando para dentro do carro onde vemos a assistente de costas. A câmera dá-nos uma visão clara do para-brisa. Vemos que o carro vai percorrendo por esta estrada até se encontrar com um tanque de guerra, e três soldados que nele seguem.
A assistente encosta e baixa o vidro. Um dos militares sai do tanque e dirige-se à janela. O soldado bate continência e pergunta à assistente – “Perdão, viu alguma raposa na estrada?”. A assistente responde que não. O soldado insiste – “Nenhuma raposa a atravessar a estrada?”. A mulher reitera que não viu nada. O soldado então dirige-se aos colegas e diz – “O que é que eu vos disse? Não há raposas por aqui, nunca houve!”. Um dos dois soldados no tanque diz que recebeu informação de confiança sobre o assunto, e culpa a tempestade que se avizinha à sua ausência. O soldado fora do tanque diz que já chega de perder tempo e volta-se para a assistente. O soldado pergunta à mulher se esta se dirige para a direção de Argenton. A mulher confirma. O soldado informa-a de uma derrocada que houve na zona e adverte-a da possibilidade de as estradas estarem cortadas. Este despede-se e volta para o tanque, seguindo cada um o seu caminho. Antes do corte da cena, a câmera foca-se no tanque.
Após o corte vemos a mulher a chegar ao que parece ser uma pousada, situada no meio desta floresta. Com o passar do tempo, já escureceu e uma névoa suave envolve a rua. Também chove. O ambiente no local é misterioso, algo que as condições climatéricas ajudam a transmitir. A mulher para o carro, saindo rapidamente com a sua bagagem e o casaco sobre a sua cabeça. Ela corre para dentro da pousada. A cena corta para a sua entrada.
Vemos a assistente entrar no hotel. A mulher entra sacudindo o seu casaco molhado, e encontra o proprietário do local. A mesma dá as boas tardes e pergunta se pode usar o telefone do local. O homem informa-a de que a linha está em baixo devido às inundações causadas pela tempestade que se conjura no exterior. Vemos um pastor cristão a passar de fundo. A mulher pergunta então se o hotel tem quartos disponíveis. O homem confirma que sim e pergunta se quer um dos da frente ou de trás. A assistente diz que tanto faz, já que irá sair cedo no dia seguinte. O homem pergunta se a mulher gostaria de jantar. Ela rejeita, pedindo apenas alguma fruta e leite. Ele diz que irá demorar apenas um minuto e convida a assistente a se secar à lareira.
A câmera segue a assistente, e vai mostrando mais do local, que é bastante rústico e aconchegante. Ao chegar à lareira, dá as boas tardes aos dois pastores e uma senhora que lá se aquecem. Um destes pastores responde. Começa então um diálogo entre os dois, onde o pastor remata que – “o tempo está um inferno”. A mulher informa- o que parece que a estrada para Argenton foi cortada devido às más condições lá fora. O outro pastor convida-a para se sentar. O pastor que passou por detrás da assistente na sua conversa com o proprietário do hotel chega, senta-se e diz que também eles estavam impedidos ali devido ao tempo.
Outro pastor pergunta-lhe se ela é daquela zona. Ela responde qual a sua família é e devolve a pergunta. O mesmo identifica-os como pertencentes ao mosteiro de São José. A assistente diz já o ter visitado com o seu pai, e que ali está para o ir ver. Ela diz-lhes que ele está bastante doente e que nem sabe ao certo se ainda o vai conseguir ver vivo. Um dos pastores pergunta-lhe o que se passa com ele. A mesma diz que teme pela vida dele, apontando para o coração. Um dos pastores diz – “Ah! O coração. A doença do nosso tempo.” O mesmo fala do estilo de vida atarefado, estressante e das viagens. Ela responde que o seu pai é dono de uma pequena quinta e que nunca viajou. Diz também que ele é bastante desligado do mundo exterior, não lendo jornais nem tendo telefone em casa. Um dos pastores chega e lança – “Se toda a gente rezasse a São José e passasse 30 minutos por dia em meditação todos estaríamos perfeitamente relaxados”. Ela concorda.
A câmera afasta-se dando-nos um plano geral que nos mostra que ela se senta agora com 4 pastores à lareira. Vemos o dono do hotel a chegar com o pedido da assistente. Um tabuleiro com fruta e leite. O mesmo diz – “Quando estiver pronta, madame”. Ela despede-se dos pastores, e segue o dono até ao seu quarto. Os dois sobem até ao primeiro andar. A câmera corta, mostrando um plano geral do andar. Ambos se dirigem para o quarto no extremo direito perto das escadas para um segundo andar. Entram os dois no quarto. A assistente pousa a sua mala e o proprietário coloca os conteúdos do tabuleiro, a comida, numa pequena mesa no centro do quarto. O homem pergunta-lhe se precisa de mais alguma coisa, um cobertor adicional ou que ele a acorde. A mulher rejeita educadamente as ofertas dizendo que não irá sentir frio, pois dorme com a janela fechada.
Com isto, o homem despede-se e deseja boa noite à assistente, deixando-a sozinha no quarto. A mesma pega na sua mala, senta-se na cama e começa a tirar o que parece ser o seu pijama. De repente, um trovão causa um estrondo e um flash de luz invade o quarto. A assistente desvia rapidamente a sua atenção para a janela, dirigindo- se para a mesma. Vemos a sua expressão preocupada enquanto olha para fora do quarto. Ela fecha os cortinados e a cena corta.
Após o corte da cena, vemos os pastores a subir ao primeiro andar. É interessante ver como o ângulo da câmera muda de forma a fazer o mesmo andar, parecer completamente diferente. Isto causa alguma confusão visual. Quando um dos pastores entra no seu quarto, devido ao ângulo, a ideia passada é que este entrou no quarto da assistente do médico. Mais tarde, um dos padres bate à porta da assistente com uma figura religiosa consigo. O mesmo, ao ser aceito a entrar, coloca a figura de São José numa cómoda dentro do quarto. O pastor fala de como por vezes, a fé vence a ciência, e fala de um caso de uma senhora doente que se sentiu melhor após uma reza a essa mesma figura.
O pastor olha para a mesa e vê um baralho de cartas. O mesmo pergunta à assistente se ela joga. Ela responde que gosta de solitário, pois é uma boa forma de passar o tempo. Um corte depois, os restantes pastores juntam-se no quarto da assistente. A mesma agradece a sua iniciativa. Após isto, todos no quarto se colocam de joelhos, e rezam pelo pai doente da assistente. Enquanto a reza acontece, a câmera foca- se na figura de São José, fazendo zoom lentamente.
Um corte depois, vemos a figura que vem dentro de um mini armário, fechada e ouvimos um dos pastores a dizer – “Estou dentro, dou raise de 10”. Podemos então perceber que os pastores e a assistente estão a jogar às cartas, e não um qualquer, mas um que envolve apostas. Em seguida, um grande plano na mesa, mostra várias chapas com o que parece ser uma figura religiosa, a serem usadas como fichas de poker. Vemos também que o jogo é regado a whisky e todos no quarto fumam. O fumo no ar mostra um ambiente pesado, muito diferente do momento de reza que aconteceu antes. Um dos pastores, quebra o momento de apostas para falar com a assistente, este coloca o braço sobre o seu ombro num abraço, e pergunta – “Não disse que o seu pai viveu nas colónias?”. A mesma diz que não, tendo já dito que ele não saía da sua pequena quinta. Isto aguça a curiosidade da assistente que pergunta – “Porquê?”. O pastor faz pouco da situação.
Um dos pastores faz a chamada das apostas da próxima rodada. O pastor que tinha feito a pergunta olha para cima com um ar imaginativo como quem se lembra de um bom momento e diz – “Ela era tão marota.”. A assistente pergunta a quem ele se refere. O pastor responde que fala de uma senhora religiosa que costumava os visitar, mencionando que o seu marido era militar. A assistente então remata – “O que tem ela?”. O mesmo, mais uma vez, faz pouco caso do assunto, no entanto, todos na sala, principalmente os pastores fixam os olhos nele. Um deles diz num tom repreensivo – “Pai Gabriel!”. Ao que o pastor diz não ter dito nada de mais. O proprietário do hotel, que também estava presente no quarto a este ponto, ouve uma buzina de um carro a vir do lado de fora. O mesmo pede desculpa e ausenta-se para receber os novos clientes.
Cena de Jantar
Este capítulo começa na sequência de uma aula sobre moralidade numa escola de polícias. O professor fala de como ele e a sua mulher foram convidados para um jantar de amigos. A cena corta para o professor e a mulher chegando à casa destes amigos. Ambos dão os seus casacos e pertences para pendurar à criada da casa. O casal sai do hall de entrada e dirige-se para a sala, onde encontram os amigos. Estes comentam sobre a sua demora, ao que trivialmente o professor responde – “Não imaginas o trânsito”. O marido do casal amigo diz em tom de brincadeira que quase começavam sem eles. A mulher do professor responde que deveriam ter mesmo começado sem eles.
A mulher do professor vê a filha do casal amigo e vai de encontro a ela. Dá-lhe um beijo na bochecha, diz que está muito crescida e pergunta como está a escola. Junta- se mais um personagem, madame Calmette, aparentemente conhecido por ambos os casais. Após as formalidades, vemos que a câmera lentamente vai revelando a sala de jantar. Uma sala e uma casa com uma decoração requintada, indicando que mais uma vez nos encontramos numa casa de uma família de boas posses. No meio da sala, vemos a mesa de jantar. O que salta aqui à vista é a ausência de cadeiras à volta da mesa. Estas são substituídas por sanitas.
A mulher do casal amigo instrui a todos a onde se irão sentar. Após dizer para todos se sentarem, cada um abaixa as suas calças e senta-se na sanita que lhes é destinada. Apesar do cenário, que para nós (espectadores) parece bizarro, o contexto é totalmente formal. O casal da casa abre a conversa começando por falar de um concerto a que assistiram há pouco tempo. Falam das vozes magníficas e da presença de palco de uma das cantoras. A mulher do casal amigo lamenta que a cantora esteja a engordar. O casal amigo oferece um cigarro aos integrantes da mesa. Calmette recusa, mas a mulher do professor aceita de bom grado. A mulher do casal amigo pergunta ao professor como foi a sua viagem a Espanha. O professor diz que foi interessante, mas diz que teve de encurtar a sua viagem a Madrid pois nas suas palavras, tresandava a cheiro de comida. Bom notar que o professor, pede desculpa pela sua linguagem, antes de falar de comida à mesa.
O homem do casal amigo, introduz o tema da sobrepopulação, e como as grandes quantidades de produtos tóxicos produzidos pelo humano são lançados aos rios. Este enumera, inseticidas, detergentes e resíduos industriais. O professor interpola-o, dizendo para não esquecer dos dejetos humanos. Posto isto, fala de como já existem (no tempo do filme) cerca de 4 mil milhões de pessoas no mundo e como 20 anos para a frente chegará a 7 mil milhões. Calmette mostra-se surpreendida com o número de pessoas que habitam na terra no futuro. O professor então pergunta – “e quanto achas que é a quantidade de dejetos que cada pessoa produz por dia?”. Calmette chuta coisa perto de meia libra. O professor responde exclamando – “Muito mais!”. Diz que a urina é mais pesada que a água e dá uma estimativa de 3 libras.
A partir daí, o professor faz o cálculo, multiplicando essa quantidade por 4 mil milhões de pessoas, o que daria 12 mil toneladas por dia. A mulher do casal amigo mostra-se surpreendida pela grande quantidade de dejetos produzidos por dia pela humanidade. A cena corta para a sala da escola de polícias, onde um dos alunos, pergunta ao professor para repetir a quantidade de dejetos produzidos por dia. Esta cena começa como uma história que o professor conta aos alunos da sala. Ao repetir, os alunos anotam. A cena corta de novo para a sala da casa. O professor diz que tamanha quantidade de dejetos é extremamente tóxica e que os seus efeitos nocivos são aumentados pela presença de químicos. O Professor sugere em tom de brincadeira – “Tentem urinar para o aquário do vosso peixe todos os dias e irão ver”.
A câmera afasta-se e foca-se no aquário em questão. O foco troca para a mulher do casal amigo e a menina na mesa. A menina diz alto – “Mamã, estou com fome”. A mãe repreende sussurrando à menina que é falta de educação falar assim sobre essas coisas à mesa. A câmera volta a afastar-se da mesa, e vemos o professor a levantar-se e a vestir de novo as suas calças. O mesmo pede um momento e prepara-se para sair da sala. O mesmo dirige-se à criada dizendo baixo – “Diga-me por favor onde fica a sala de jantar?”. A criada responde – “Última porta à direita”.
O professor dirige-se para a sala de jantar, percorrendo o corredor e entrando na porta. Lá, ele tranca a porta e senta-se numa cadeira dentro da divisão. O mesmo puxa de uma mesa retrátil presa à parede e coloca-a à sua frente. Logo em seguida, clica num botão e recebe uma refeição com prato principal, pão e vinho. O professor então começa a comer. No instante seguinte, vemos Calmette a bater à porta. O professor, de boca cheia de comida, diz – “Está ocupado!”. Calmette desculpa-se e volta ao corredor. À medida que esta se aproxima, a câmera faz zoom no seu peito, usado essa oportunidade para fazer um fade out e subsequente fade in para a sala onde o professor estava a dar a aula. Os alunos policiais, dizem ao coronel presente na sala que têm serviço às 11:00 da manhã. Ambos são dispensados e a partir daqui seguimos um dos alunos, dando-se mais uma transição e fechando assim o capítulo do jantar.
Análise semiótica das cenas
Na condução deste estudo, regendo-nos pela análise semiótica do filme O Fantasma da Liberdade, com foco na forma como este nos revela os pré-conceitos e convenções sociais que temos na vida social, requer uma metodologia estruturada. Decidiu-se então que a pesquisa adotaria uma perspetiva qualitativa e interpretativa, com uma ótica do nível qualitativo-icônico e nível singular-indicativo do plano de expressão, tentando então compreender a forma como os signos e símbolos presentes nas cenas escolhidas, contribuem para a desconstrução dos preconceitos existentes. Foi também feita uma extensa leitura de críticas e ensaios ao filme com o intuito de compreender diferentes pontos de vista da obra de Buñuel.
“O que mais impressiona no filme é a forma como Buñuel nos conduz sem esforço de uma parábola louca para a seguinte. Deveríamos estar sem fôlego, mas não estamos, porque a sua montagem faz com que tudo pareça seguir uma lógica inevitável. Não é verdade, mas a culpa é da liberdade: se as pessoas querem liberdade, não devem contar com nada. “O Fantasma da Liberdade” é um tour de force, o triunfo de um realizador que se confronta com complicações e contradições quase impossíveis e as domina. É muito engraçado, é verdade, mas lembrem-se: Com Buñuel, só se ri quando dói.”
(Ebert, 1995)
“Buñuel achava os absurdos da vida infinitamente fascinantes e cheios de acaso e surrealismo: alimentavam a sua imaginação fértil e ativa. Ao trazer estas ideias, grandes e pequenas, blasfemas e vulgares, para o ecrã, e ao dar-nos a liberdade interpretativa para fazermos delas o que quisermos, Buñuel dá- nos diretamente a dádiva da nossa própria imaginação e, assim, a nossa liberdade enquanto participantes na criação de significado. Buñuel podia ser brincalhão, sádico, instrutivo ou político; mas talvez o mais importante seja o facto de ter usado a sua sagacidade subversiva e a sua combinação de escolha e oportunidade para conseguir mais do que a maioria dos contadores de histórias alguma vez sonhou”
(Foster, 2014)
Antes de mergulharmos nas análises das cenas, é importante notar algumas características técnicas gerais do filme. A longa-metragem foi gravada em 35mm e num aspect ratio de 1.66 : 1 e a cores, em formato Eastmancolor – sistema de impressão mais barato que Technicolor e Metrocolor, muito usado nos anos 50 e 60 -, que atribui umas cores mais esbatidas e com um contraste subtil, mas suficientemente chamativo para distinguir a vivacidade das cores.
O Parque
Como supracitado na análise descritiva do objeto de estudo, a cena do parque acompanha uma família, cuja filha recebe um envelope com fotografias de um estranho no parque, que lhe avisa que não as deve mostrar a adultos. A menina, Françoise, ao chegar a casa, dá as fotos à mãe, interpretada pela estrela do cinema italiano Monica Vitti. A mãe, a Madame Foucault, fica escandalizada com as fotografias. Após pedir justificações à criada por tamanha irresponsabilidade – até então, o espectador ainda não sabe o que está nas fotografias – regressa à sala, onde o marido, interpretado por Jean- Claude Brialy, pede à sua mulher para ver as tais fotografias, ao que exclama – “Repugnante!”. Em seguida, convida a mulher para se sentar ao seu lado enquanto veem as fotografias e este reconta uma aventura passada do casal.
No plano de expressão e sob o nível qualitativo-icônico, os códigos visuais que se realçam na análise do plano supra indicado, é o enquadramento do casal no plano. Estes encontram-se no meio, com a fotografia ao centro, tecendo ambos o olhar sobre a mesma, criando este triângulo onde o foco está todo sobre a fotografia. A experiência do casal com as imagens é intensa, o que é facilmente identificável pela reação dos mesmos ao passar pelas fotografias. Estes sentem-se excitados sexualmente – ao ponto de se beijarem fervorosamente.
Assim, podemos indicar que as reações às fotografias são o índice de que o conteúdo da fotografia é erótico, o que é corroborado pela reação indignada do casal por estas terem estado na posse da sua filha, a obscenidade que estes lhas adjetivam e o recado do homem do parque. As fotografias simbolizam o erotismo, o símbolo de estímulo sexual.
Após o beijo, vemos finalmente o conteúdo das fotografias e percebe-se que se tratava de fotos de paisagens ou de monumentos de França. O plano faz campo/contracampo do enquadramento anterior, onde continuamos a ter as fotografias no centro, mas desta vez conseguimos ver o seu conteúdo, à medida que perdemos a componente visual das reações do casal, ficando-nos apenas com as suas reações verbais, ou seja, com os códigos sonoros do plano de expressão. Estes continuam a avaliar o que veem, com desagrado e ocasionalmente apreço.
Os signos alteram-se, as fotografias passam a ser um ícone dos monumentos. As reações continuam a ser índice, mas desta vez de repugnância e obscenidade. O símbolo, acaba por ser a França, o local representado em todas as fotografias e sobre o qual as personagens focam as suas atenções.
Ao interpretar a utilização dos signos, podemos concluir que estes são usados para iludir e contrariar as suposições do espectador. Ao interpretar as reações do casal – antes de sabermos o teor das fotografias – somos levados às convenções sociais e ao que os signos nos impelem. Contudo, o facto das fotografias não corresponderem àquilo que esperávamos, não implica que os signos tenham sido mal-interpretados e é aí que se encontra o engenho de Buñuel que objetiva a subversão daquilo que já temos preconcebido – que Buñuel desmascara.
O Hotel
A cena do Jogo de Cartas começa com a assistente do médico a abrir a porta a um dos pastores que está no hotel. O mesmo traz uma figura de São José, pai de Jesus Cristo, consigo nas mãos. Aqui, a Primeiridade, o quali-signo, é esta figura religiosa. Podemos aqui também notar, na cruz que fica na caixa de transporte da figura e as velas que lá dentro acompanham a figura de José. Mais tarde, chegam os restantes pastores, que consigo trazem terços.
Num segundo momento, depois de acesas as velas, todos no quarto se ajoelham, em roda, fazem o sinal da cruz e começam uma reza pelo pai doente da assistente. Este momento de fé, as vestes dos pastores e os gestos que fazem, são os índices que nos podem levar à conclusão de que nesta cena se passa um ritual religioso, um momento sagrado. Enquanto todos os envolvidos rezam, o foco lentamente aproxima-se lentamente da figura de São José. Este código visual, o foco nesta figura sagrada, reforça o ambiente de fé e comunhão naquele momento.
Após o zoom feito à figura de São José e toda a conjuntura que constrói a nossa percepção desta cena, tudo nos indica que estamos perante um ambiente de pureza e fé. É aqui que entra, no entanto, a virada de Buñuel. A cena corta para velas apagadas, a figura de São José fechada, escondida e ouvimos diálogo entre os personagens, que nos indicam que acontece um jogo de cartas. Ouvimos também comentários referentes ao que se chama de “jogos de azar”, algo comumente criticado pelo seio da igreja.
A câmera corta para um grande plano de uma mesa-redonda, onde todos os envolvidos no momento de reza anterior, participam num jogo de poker, regado a whisky e usando de pequenas figuras de chapa com ilustrações de nossa Senhora de Lourdes, como fichas de poker, usando-as para as suas apostas. Ao nível Qualitativo- icônico, no Plano de Expressão, o fumo, que se acumula no ar, devido a quase todos no quarto estarem a fumar, dá à sala um ar pesado, contrastante com o estabelecido anteriormente na cena. Vemos também as figuras religiosas presentes nas “fichas” usadas no jogo. Ao nível Singular-Indicativo, temos diálogos sobre o jogo, e vemos que muitos dos nomes comuns dos naipes de cartas são substituídos por vocabulário religioso como “virgens” e “corações sagrados”.
A dissonância desta cena comporta uma crítica social à quebra dos códigos de conduta de identidades que se apresentam como íntegras e de confiança. Esta cena parece explorar a desconfiança das populações em instituições como a igreja e os seus membros. Os símbolos resultantes desta cena passam pela hipocrisia da igreja, o incorreto e a quebra de códigos de conduta. Este é mais um dos desafios colocados por Luís Buñuel na sua obra, através do surrealismo efetuar uma crítica à sociedade de valores, um conceito intemporal.
Cena de Jantar
Esta cena abre com o professor da escola de policiais que conta aos seus alunos sobre um jantar que teve com amigos. Enquanto esta conta a história, a cena corta para o momento do jantar, com a sua chegada à casa. No interior da casa, os convidados e os donos da casa são os primeiros signos identificáveis nesta cena. A presença destes protagonistas e as respetivas conversas que se desenrolam, são índices de comunhão e amizade, tal e qual como se estivessem a partilhar de uma refeição.
No plano de expressão no nível qualitativo-icônico vemos um enquadramento que se foca nos intervenientes, e dá-nos a visão do ambiente em que se passa a ação. A nível singular-indicativo, os personagens conversam com leveza e respeitosamente entre si, com os convidados a desculparem-se pelo atraso, o que mostra um contexto formal, mais próximo entre as personagens. Isto evidencia uma relação de amizade com uma comunicação mais cuidada, típica das relações presentes nos membros dos indivíduos de uma classe social mais elevada, no espectro socioeconômico, o que é reforçado com a presença de uma criada e do aspeto requintado da casa, já visível no hall de entrada espaçoso que surge no início da cena.
Como já referido, as roupas formais, a comunicação delicada, a criada e a casa bem arrojada, são índices da classe social dos integrantes presentes nesta cena. Com o fim dos cumprimentos, todos se dirigem para a mesa de jantar. A câmera segue todos os que vão a caminho, revelando a cozinha espaçosa da sala. Até este ponto, nada de anormal e tudo corrobora com a ideia que temos de um jantar na casa de amigos. No entanto, quando vemos por fim a sala na sua totalidade, observamos algo que subverte as nossas expectativas. As cadeiras, que esperaríamos numa mesa de jantar, são substituídas por sanitas. Antes de se sentarem, todos baixam as calças, o que indicia, que irão usar as sanitas. Os jornais e revistas presentes na mesa substituem os pratos de comida e o ato da sua leitura substitui o ato de comer.
Os diálogos que acontecem à mesa assemelham-se às falas comuns numa mesa de jantar. Todos parecem se importar com as suas maneiras à mesa, nesta realidade criada para a cena. É interessante notar que há uma inversão muito clara de dois conceitos base da nossa sociedade. O momento da refeição e o momento de fazer as necessidades fisiológicas. Todas as possíveis conversas sobre a comida são substituídas por conversas sobre dejetos humanos. Qualquer menção a comida é tratada como imprópria, como quando o professor se desculpa por mencionar o “cheiro a comida” que se sentia nas ruas de Madrid, na sua viagem. Já a filha do casal que organiza o jantar, pergunta quando é que pode comer, e é imediatamente repreendida pela sua mãe, que diz que isso não é algo que se fale à mesa.
Mais tarde, o professor pede licença e levanta-se da mesa, e, dirigindo-se à empregada presente na casa, pergunta sussurrando – “Onde fica a sala de jantar”? A empregada indica-lhe onde fica e para lá se dirige. Ao chegar à sala, vemos que o professor tranca a porta. Essa tranca é o índice de que aquele é um lugar de privacidade. A sala tem uma cadeira e uma pequena mesa retrátil. Ao tocar num botão, uma refeição aparece à sua frente. Entretanto, o professor começa a comer, e a meio da sua refeição, alguém bate à porta. Vemos que é uma das mulheres, amiga de ambos os casais, e que esta procura saber se a sala está vazia, já que, aquele é um local de privacidade. O professor diz que está ocupado e a mulher volta ao corredor. O signo de privacidade e da consulta da ocupação desta divisão, simboliza que neste capítulo, o jantar é algo pessoal e privado – diretamente falando, é equivalente a uma ida à casa de banho. Por sua vez, as “regras de etiqueta”, o respeito e o convívio, simboliza que enquanto estes se sentam nas sanitas em redor da mesa, estão perante um momento do quotidiano, o qual também pode ser festivo – ou seja, um jantar.
No plano da Terceiridade, vemos as regras de etiqueta deturpadas dentro do universo criado para esta vinheta, e a relativização dos valores de uma sociedade. É evidente a crítica presente neste excerto, que procura mostrar que muitos dos maneirismos que o indivíduo tem em público e nas suas relações sociais, são resultado de convenções, e não de leis universais.
A semiótica aplicada à obra de Buñuel
Um olhar a este filme de 1974 de Luis Buñuel, é um exercício deveras interessante, já que este nos comunica temas que consideramos intemporais. Através do surrealismo, e sem medo de ser absurdo e ousado, “O Fantasma da Liberdade” mostra- nos como todas as convenções sociais presentes na nossa sociedade ocidental são, podem e devem ser desafiadas. É este desafio que nos faz refletir sobre a nossa forma de agir, e com isto, auxiliar no entendimento das infinitas questões que se põem sobre a nossa humanidade.
A semiótica Peirceana e as suas ferramentas ajudam-nos a criar um olhar mais consciente e metódico a esta peça. Com ela, fomos capazes de entender mais desta obra, para além do que ela já nos dizia após a sua exibição. Aqui, a semiótica dá-nos o input necessário para compreendermos melhor o uso do Visual para transmitir ideias e os efeitos produzidos ao receptor.
O Fantasma da Liberdade leva-nos nesta viagem fantástica pelo cotidiano de várias personagens. Apesar de este nos poder dizer muito sobre o nosso comportamento, é bastante claro que existe um foco nos patamares mais altos da sociedade. Este, costuma estar mais submergido em formalidades, regras e costumes. As três vinhetas escolhidas para este trabalho brincam com as nossas expectativas, usando da nossa própria cognição, dos nossos pré-conceitos na criação de situações. Essas mesmas situações, colocam-nos de forma subtil e genial, a prever o que vêm a seguir, dado à análise dos factos que nos são apresentados. Num segundo momento, essa previsão é quebrada com a antítese de tudo o que poderíamos imaginar.
Na primeira vinheta, vemos que a reação dos pais às fotos que a sua filha traz, constroem na nossa mente uma imagem de algo, erótico ou até pornográfico, e logo a seguir é revelado que são apenas fotografias de paisagens e monumentos. Na segunda vinheta escolhida, vemos este grupo de pastores, que num momento reza pelo pai doente de uma senhora, e no outro, de repente, joga poker usando de figuras religiosas como as “fichas” com a cara de Nossa Senhora de Lourdes ou as denominações dos naipes como “virgens” ou “Corações Sagrados”.
A terceira e última vinheta coloca-nos talvez na situação mais corriqueira das três. Um jantar. Tudo decorre nos moldes esperados até que de repente somos surpreendidos pela troca dos conceitos de “Refeição” e “o fazer das necessidades fisiológicas”. À mesa, todos se sentam em sanitas e leem jornais e revistas, ao passo que, tratam com alguma descrição o ato de ir à “sala de jantar”, o equivalente à casa de banho na nossa realidade. Estas normas são, portanto, meros contratos sociais, muitas delas são “regras não escritas”, conceitos que nos são incutidos desde que nos entendamos como seres humanos, e mudam de acordo com o nosso contexto socioeconómico, onde nascemos e com quem convivemos.
Através dos signos e símbolos de O Fantasma da Liberdade, Buñuel é capaz de nos conduzir à desconstrução do nosso real, ao nos apresentar subversões daquilo a que estamos acostumados. No processo da semiose, não só compreendemos a eficácia com que o realizador nos ilude e nos guia para onde ele quer, como também nos diz muito sobre a nossa própria Humanidade, revelando-nos a forma como os pré-conceitos e convenções sociais moldam a nossa forma de abordar o que vemos.
Referências
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Breton, A. (1924). O Manifesto Surrealista.
Buñuel, L. (Realizador). (1974). O Fantasma da Liberdade [Filme]. Buñuel, L. (1982). O Meu Último Suspiro. Fenda.
Ebert, R. (1995). The Phantom of Liberty. Obtido de Roger Ebert: https://www.rogerebert.com/reviews/the-phantom-of-liberty-1995
Foster, G. A. (março de 2014). The Phantom of Liberty. Obtido de Senses of Cinema: https://www.sensesofcinema.com/2014/cteq/the-phantom-of-liberty/
Peirce, C. S. (2005). Semiótica (3ª ed.). São Paulo: Perspectiva. Santaella, L. (1983). O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense. Santaella, L. (2007). Semiótica Aplicada. São Paulo: Thomson Learning,.
Tavares, M. (2016). Buñuel e o Surrealismo: a arquitetura do sonho. Coimbra: Grácio Editor.
Winfrey, G. (24 de março de 2017). 7 Filmmakers Deeply Influenced by Luis Buñuel. Obtido de IndieWire: https://www.indiewire.com/features/general/7-filmmakers- influenced-by-luis-bunuel-woody-allen-metrograph-1201796524/
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