Observatório da Qualidade no Audiovisual

Análise GRIS

Por: Diogo Pereira, Filipe Pires, Inês Serra, Lara Paulino

GRIS é uma obra indie, desenvolvida pela Nomada Studio e lançada em 2018. Este jogo de plataforma não convencional cativou os jogadores não apenas pela impressionante estética visual, mas também pela abordagem única à narrativa. Sem depender de diálogos ou textos explícitos, GRIS mergulha os jogadores em uma experiência, explorando temas universais como tristeza, superação e autodescoberta. Com uma jogabilidade simples, mas impactante, o game oferece mais do que uma simples jornada de plataforma.

A decisão por este tema baseia-se no grande universo simbólico do jogo, que comporta diversas teorias, sendo cada análise diferente. No entanto, do ponto de vista da semiótica, iremos analisar a personagem e a sua batalha no que toca às diferentes fases do luto. O objetivo principal desta investigação é responder à pergunta: De que forma a personagem do jogo Gris lida com a perda ao longo da sua jornada? 

A proposta é analisar como a protagonista aborda o processo de superação, autodescoberta e aceitação diante da adversidade que representa a perda. Ao desdobrar os elementos narrativos, visuais e sonoros do jogo, busca-se identificar as nuances emocionais, escolhas de design e eventos significativos que moldam a trajetória da personagem diante dessa experiência dolorosa. Para tanto, esta investigação não apenas avalia a representação artística da perda no contexto do jogo, mas também procura interpretar como as escolhas de design, a evolução do ambiente visual e a trilha sonora contribuem para a construção do significado emocional desta jornada. 

O objeto de análise

A narrativa de GRIS segue uma jovem protagonista perdida em um mundo misterioso, tentando lidar com uma tragédia pessoal. O jogo aborda temas profundos sem recorrer a diálogos ou texto explícito. À medida que os jogadores avançam na jornada, o ambiente ao seu redor transforma-se, refletindo as emoções e os estados de espírito da personagem principal. 

A jogabilidade de GRIS é simples, mas eficaz. Os quebra-cabeças e desafios são integrados de forma orgânica ao ambiente, proporcionando uma experiência fluida e intuitiva. A protagonista ganha habilidades especiais à medida que avança na história, cada uma simbolizando seu progresso emocional. A trilha sonora original, composta por Berlinist, complementa perfeitamente a atmosfera do jogo. A música evolui conforme a história se desenrola, amplificando as emoções do jogador e aprofundando ainda mais a conexão com a personagem.

O sucesso do jogo reside em sua capacidade de transcender as barreiras linguísticas e culturais, comunicando uma poderosa narrativa emocional de maneira universal. A ausência de diálogos escritos ou falados permite que os jogadores interpretem a história por meio de suas próprias experiências e perspetivas, tornando a experiência profundamente pessoal e comovente para cada jogador.

Existem inúmeros jogos indies onde os seus protagonistas devem lutar ao longo da sua jornada com algo, seja consigo próprios ou com outras criaturas, para que possam vencer sua batalha interior. Exemplos são GRIS, Shadow of The Colossus e Celeste. Todos estes jogos representam experiências distintas, cada uma com suas características únicas. Optamos por focar em GRIS, motivados por diversos elementos que tornam este jogo particularmente enriquecedor para uma análise aprofundada. 

O exemplo de Shadow of the Colossus (2005)

Shadow of the Colossus (SOTC) é um jogo de ação e aventura, lançado em 2005 para Playstation 2, que continua a ser discutido na internet pelo seu mundo e simbologia. O jogo conta a história de Wander, um jovem que entra em uma terra proibida com o objetivo de ressuscitar Mono, uma menina sacrificada por, supostamente, ter um destino amaldiçoado. Wander então ouve uma voz que lhe promete reviver Mono caso ele seja capaz de derrotar 16 colossos que estão espalhados pelas terras proibidas.

  O único objetivo do jogo é derrotar os colossos. De resto, as terras pelas quais o jogador percorre são vazias. Apenas Wander, seu cavalo Agro e os 16 colossos percorrem o mapa, que é bastante extenso. Se em outros jogos esta jornada seria triunfante e louvável, em SOTC cada vitória do protagonista sobre os colossos é levada como um mau presságio. O jogador sente isto, seja pela música melancólica usada durante a vitória ou pelas constantes marcas negras que aparecem no corpo do protagonista ao longo da história. Há diversas interpretações e inúmeras teorias sobre o jogo espalhadas pela internet. Mas, em geral, SOTC se trata de uma história trágica sobre a perda.

O exemplo de Celeste (2018)

Celeste é um jogo de plataforma que aborda temas com os quais lidamos no nosso quotidiano, como superação, autodescoberta e saúde mental. Uma parte importante de Celeste é a perseverança e a aprendizagem a partir do erro. Estes elementos são relevantes para que se melhore no jogo, mas, para além disso, são cruciais para o desenvolvimento de um ser humano.

Durante o jogo, a protagonista Madeline tem de escalar a montanha Celeste. Esta representa os desafios que uma pessoa encontra durante a vida. A montanha é alta e cheia de perigos, que servem para demonstrar os obstáculos da vida a serem ultrapassados. O escalar desta montanha serve como uma metáfora para a superação das adversidades e desafios pessoais. Outro importante elemento de Celeste é, obviamente, a protagonista Madeline. Esta personagem lida com ansiedade e depressão, e sua narrativa representa uma jornada de autodescoberta e superação sob a forma da subida da montanha.

Conforme se progride no jogo, Madeline encontra um espelho mágico, que cria uma cópia dela. Esta cópia sombria é chamada de Part of Madeline e representa os aspetos mais negativos da mente e personalidade de uma pessoa. Durante o jogo, Madeline e a sua parte enfrentam-se, simbolizando a aceitação das partes negativas de uma pessoa. Os personagens secundários servem como uma demonstração da necessidade de interação social e comunicação durante tempos difíceis.

A análise

Optou-se por fazer a análise audiovisual, como dito anteriormente, de GRIS em detrimento de Shadow of the Colossus e Celeste. A análise do plano da expressão compreende os códigos visuais, sonoros, gráficos e sintáticos. No âmbito visual, destacam-se elementos como o cenário e as cores, que desempenham um papel fundamental na transmissão das emoções ao longo da jornada. A ausência de diálogo e a trilha sonora complementam a atmosfera, enquanto formas geométricas gráficas contribuem para a construção do universo visual. A sintaxe do jogo, por sua vez, é moldada pela forma como o jogador enfrenta os desafios, criando uma experiência personalizada.

No plano do conteúdo, a narrativa centra-se na personagem principal, Gris, e conduz os jogadores por todos os estágios do luto. Desde a negação até a aceitação, a jornada é representada de maneira poética e envolvente. A personagem enfrenta a perda, personificada pela metamorfose do ambiente ao seu redor. As personagens, como Gris, a tartaruga e o pássaro, tornam-se veículos simbólicos essenciais. Cada uma delas desempenha um papel crucial na representação de diferentes aspectos do luto e da superação.

O nível qualitativo icónico de GRIS é marcado pela habilidade de evocar sensações distintas em cada cena, ao mesmo tempo em que tece uma trama que conecta essas experiências em um todo coeso. No nível singular indicativo, a análise aprofunda-se na experiência singular de cada jogador. A interação com o jogo pode desencadear reflexões e emoções pessoais, tornando a narrativa ainda mais impactante e relevante para cada indivíduo. É neste nível que a conexão entre o jogador e a personagem se fortalece, proporcionando uma imersão única. Por fim, no nível convencional simbólico, GRIS revela-se como uma metáfora poderosa para temas universais como luto, perda e superação. Os elementos visuais, sonoros e narrativos convergem para criar uma experiência que transcende as fronteiras do entretenimento, provocando reflexões sobre a própria jornada emocional de cada jogador.

Negação

A imagem que compõe a cena inicial do jogo é uma representação visual cuidadosamente construída para transmitir uma narrativa emocional e simbólica. A ausência de cor é marcante, pois todos os elementos são apresentados em preto e branco. Esta escolha artística não é apenas estilística; ela serve como uma expressão visual da lacuna deixada pela perda, criando uma atmosfera que evoca o vazio sentido pela personagem principal. Ao examinarmos a cena, percebemos uma escassez deliberada de elementos cénicos, com exceção de algumas ruínas. Esta escolha reforça a sensação de desolação e solidão, destacando o impacto da perda no ambiente circundante da personagem. O vazio visual espelha o vazio emocional sentido pela protagonista, proporcionando uma experiência imersiva que vai além da superfície do jogo. 

É possível notar que essa cena também coincide com a fase inicial do luto, um período caracterizado pela negação da realidade. A ausência de cor e elementos cénicos reflete a recusa em aceitar a perda, ressoando com o estágio inicial do processo de luto. Este alinhamento não é acidental; ele estabelece uma base sólida para a narrativa, iniciando a jornada de autoconhecimento e cura da personagem.

Raiva

Na fase marcada pela raiva, a narrativa visual intensifica-se ao incorporar a cor vermelha como elemento distintivo. Esta escolha não apenas adiciona uma dimensão cromática à experiência, mas também representa uma expressão visual vívida da intensidade emocional associada à raiva. O vermelho, conhecido pelas suas conotações de fervor e intensidade, torna-se um símbolo poderoso dos tumultuosos sentimentos que a personagem está enfrentando. A tempestade que domina a imagem serve como uma representação simbólica dos ataques de raiva da protagonista. Assim como uma tempestade, esses acessos emocionais são passageiros, mas, ao mesmo tempo, extremamente intensos. 

É interessante notar que, enquanto a raiva se manifesta de maneira efémera, há uma mudança visual notável nas ruínas que antes apareciam desoladas. Agora, essas ruínas começam a reconstruir-se, simbolizando um avanço na cura da personagem em relação ao luto. Isto pode ser interpretado como um reflexo do processo de autocontrole e aceitação. A transição das ruínas desmoronadas para uma fase de reconstrução visualiza metaforicamente o progresso emocional da personagem. Este elemento simbólico sugere que, à medida que ela confronta e lida com sua raiva, há uma transformação positiva no seu mundo interior. Este movimento indica a resiliência da protagonista, mas também sinaliza uma jornada rumo à cura e à superação das adversidades emocionais. Isto também se traduz pela habilidade que a personagem desenvolve para conseguir resistir às tempestades.

Negociação

 

Durante a fase de barganha, no luto, os indivíduos muitas vezes procuram maneiras de negociar com forças superiores, o destino ou a própria realidade. A ideia subjacente é muitas vezes a de tentar reverter ou amenizar a perda, oferecendo algo em troca. No contexto de um jogo como GRIS, que aborda temas emocionais e psicológicos, a fase de barganha pode ser representada de modo simbólico e visual. A personagem principal tenta negociar ou fazer acordos ao longo do enredo, buscando uma maneira de recuperar o que foi perdido ou modificar a situação. Essas representações simbólicas incluem a interação com um novo personagem. Quando Gris o ajuda, ele oferece-lhe, em troca, uma saída daquela fase. Além disso, existem elementos do ambiente ou desafios específicos que refletem a busca da personagem por uma solução ou mudança.

Depressão

A imagem acima é uma representação visual intensa da tristeza experimentada durante o processo de luto. A paleta de cores escuras desenha um cenário sombrio e melancólico, acentuando a profundidade emocional. O uso de cores escuras não apenas reflete o estado de espírito sombrio da personagem, mas também contribui para a atmosfera pesada que permeia toda a cena. O movimento descendente presente na imagem adiciona uma dimensão cinética à representação da tristeza e pode ser interpretado como uma metáfora para a imersão nas profundezas da dor emocional. Essa descida cria uma sensação de peso e inevitabilidade, sugerindo a dificuldade de escapar ou superar a tristeza intensa que a personagem enfrenta durante esta fase do jogo. 

Além disso, a presença da tartaruga na cena é um elemento simbólico crucial. O animal, com seu estilo defensivo ao encolher-se dentro de sua “carapaça”, é uma representação visual da tendência comum das pessoas que enfrentam extrema tristeza de se isolarem e se protegerem emocionalmente. A imagem da tartaruga encolhida associa-se à ideia de que, diante da dor, muitos indivíduos adotam uma postura defensiva, retraindo-se como um mecanismo de autodefesa emocional. A ambientação aquática da fase contribui para a metáfora, transmitindo a sensação de afundamento em um grande mar escuro. Esta evoca os sentimentos de impotência e desespero frequentemente associados à depressão e a níveis elevados de tristeza. 

Aceitação

O último capítulo do jogo, e a última fase do luto, é a aceitação. Aqui, as cores apresentam tons claros e, em uma das fases, há presença de cinzento – o ponto do meio entre o preto e o branco, além de ser a cor que dá nome tanto ao jogo como à protagonista. Este uso de cores claras e deslavadas leva-nos a sentir que a jornada de luto está quase no seu fim. As estátuas da figura feminina/materna que se encontravam espalhadas pelo jogo, destruídas e em pedaços, agora encontram-se intactas, simbolizando a paz entre a personagem e a figura e marcando a transformação do seu ponto de vista. A estátua passa a compor o cenário, ao invés de ser o ponto focal da protagonista. 

O próprio desenho e o uso de linhas mais leves, ao contrário daquilo mostrado nas fases de negação e raiva, também transmite sensações de calma e serenidade. A música conta, agora, com a voz de Gris, algo que tinha sido perdido nos minutos iniciais da obra, simbolizando mais uma vez que a jornada chegou ao fim.

No âmbito do nível singular indicativo, a análise direciona-se para a experiência íntima e pessoal de cada jogador ao interagir com GRIS. Cada indivíduo, ao mergulhar na narrativa do jogo, encontra-se diante de uma experiência única, moldada pelas suas próprias vivências e perspectivas. A interação com GRIS pode agir como um espelho emocional, evocando reflexões profundas e ressonâncias particulares que variam de pessoa para pessoa. Neste nível, a narrativa de GRIS torna-se um espaço de exploração e descoberta pessoal, onde o jogador não apenas testemunha a jornada da personagem, mas também se vê refletido nas complexidades emocionais que o jogo aborda.

No nível convencional simbólico, GRIS assume a forma de uma metáfora que pode transcender as barreiras do entretenimento convencional. A convergência de elementos visuais, sonoros e narrativos não serve apenas para contar uma história dentro do jogo, mas para explorar temas universais como luto, perda e superação. Os símbolos presentes, como a paleta de cores, a música e a progressão narrativa, não são apenas elementos estilísticos, mas veículos de significado profundo.

Considerações Finais

Em suma, GRIS é uma representação da viagem pelo luto ou por uma perda. O luto pode ser interpretado de diversas formas, a depender da pessoa que assiste ou joga a obra. O estúdio responsável pelo projeto consegue transmitir uma variedade de sentimentos e significados ao utilizar os recursos técnico-expressivos. As estátuas simbolizam uma figura maternal, e o seu estado, isto é, se estão danificadas, e como estão danificadas, representa o olhar da protagonista em relação à figura. Esse olhar passa de total desespero nas fases de negação e depressão, para algo libertador na fase da aceitação.

Ao avaliar a composição, as cores, as formas, os sons, a narrativa e as personagens, podemos perceber como a personagem Gris lida com a perda. O jogo passa pelo momento inicial, no qual não existem cores no mundo, à raiva da protagonista, representada pelos tons vermelhos. A seguir, tenta negociar com uma forma de vida naquele mundo vazio, agora pincelado de verde, e, então, mergulha na depressão, simbolizada pelo azul-escuro. Após mais uma recaída, finalmente, a protagonista aceita a perda, encarando a estátua reconstruída das ruínas em um ambiente cheio de cores. Cada etapa é necessária para que Gris possa evoluir e desenvolver novas habilidades: não seria possível atravessar pela fase da depressão sem passar pela fase da negociação ou chegar até à aceitação sem perpassar a raiva.

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