Por: Beatriz Alexandre, Inês Assunção, Joana Coelho e Josué Guedes
Embora o tema do amor não seja novidade no cinema, Wong Kar-Wai aborda este sentimento de uma maneira única e particular. Produto das suas experiências pessoais e da natureza da vida no âmago da cidade de Hong Kong, Wong reproduz nas suas obras diferentes tipos de relações amorosas e sentimentos românticos, embora todos partilhem a sensação de solidão e isolamento. Somos seres individuais, difíceis de amar e ser amados por outros pelas nossas particularidades, sendo sobre esta noção que recai a filmografia do cineasta.
O estudo incidirá, principalmente, sobre os filmes “In the Mood for Love”, “Fallen Angels”, “Happy Together” e “Chungking Express”, por reunirem as condições ideais para o aprofundamento do tema acima referido. A preferência pelo realizador em questão parte também da individualidade visual dos seus projetos, que, através de técnicas cinematográficas e paletas de cores características de cada um deles, deu origem a uma identidade marcante e única a Wong Kar-Wai, destacando-o dos outros cineastas da sua época.
Será feita uma análise da narrativa e dos aspetos visuais à luz da semiótica e das suas teorias mais relevantes. Como ponto de partida, propõe-se a questão “como é representado o amor na obra de Wong Kar-Wai através da semiótica?”, que deverá ser respondida com a conclusão do trabalho. Concretamente, estarão no foco da análise as narrativas românticas protagonistas de cada longa-metragem. A análise será feita de acordo com as noções de semiose de Charles Peirce e a complementar semiótica da análise do produto audiovisual, cujo foco são os diferentes planos de expressão que formam o objeto de estudo.
Com o trabalho procura-se não só compreender como o pensamento e a forma de criar narrativas de Wong Kar-Wai difere de outros realizadores do Ocidente que abordam temas semelhantes, mas também perceber a construção e o papel da própria mensagem na produção dos seus filmes. O olhar peculiar de Wong fez com que o seu trabalho ganhasse notoriedade mundialmente, sendo um realizador destacado entre muitos que produzem obras de género dramático e romântico. Tendo isto em conta, com o processo de investigação pretende-se descobrir o que torna o cineasta chinês tão icónico e memorável, através da análise e compreensão do sentido produzido pelos quatro filmes anteriormente mencionados.
O Cinema de Wong Kar-Wai
O interesse no estudo do cinema de Wong Kar-Wai é despertado pela sua clara oposição ao cinema popular da sua época (o fim da década de 90), dominado pelos romances ocidentais adolescentes como “10 Things I Hate About You” e pelos dramas românticos como “Before Sunrise”. O trabalho de Wong Kar-Wai destaca-se, não só pela sua falta de vontade de apelar ao comercial e popular, cultivando sempre as suas narrativas complexas e o seu estilo cinematográfico onírico e distinto, mas também pela dedicação extrema ao real e honesto. Em oposição ao género de romance no cinema ocidental da época, no qual o amor surgia como algo superficial, leve e próspero, as obras de Wong concentram-se em diversos tipos de amor e os seus variados fins, raramente positivos. Aspetos como a banda sonora e a cinematografia acrescentam valor à narrativa, construindo obras pautadas principalmente pela valorização estética mais do que pela própria história e diálogo.
O período histórico cinematográfico a que os filmes de Wong Kar-Wai pertencem corresponde ao Cinema Novo de Hong Kong, uma corrente fortemente influenciada pela Nouvelle Vague francesa. Este foi um período marcado pelo regresso de Hong Kong à jurisdição chinesa, em 1997. A partir desta época, as produções artísticas sobre identidade passam a ser mais frequentes nas obras dos cineastas de Hong Kong, dos quais se destaca Wong Kar-Wai. Os filmes deste período foram caracterizados pelas suas técnicas de filmagem “fora da caixa”, trocando os estúdios artificialmente erguidos de Hollywood pelas ruas da região, e pelos métodos controversos de direção que subverteram o tradicional. Porém, e embora sejam vistos como subversivos das regras do cinema ocidental, sempre estiveram de alguma forma inseridos em conformidade na indústria cinematográfica chinesa, sem se opor à mesma.
De modo a responder à questão inicial que surge como alicerce da investigação, procede- se à análise de um conjunto de cenas chave onde o tema em questão se encontra fortemente representado. Optou-se por limitar o estudo às três cenas de cada filme (sendo estas quatro no total) que melhor englobam a temática central da investigação, permitindo visualizar a interpretação de questões como o amor, a solidão e a natureza das relações humanas por parte do realizador. Em “In the Mood For Love”, o enredo desenvolve-se em torno de Sr. Chow e Srª. Chan, dois vizinhos num pequeno complexo de apartamentos em Hong Kong nos anos 60. Este ambiente sufocante é o pano de fundo para o romance extraconjugal impossível que se desenvolve entre ambos, traduzindo para linguagem visual as especificidades da relação.
Algo semelhante acontece em “Fallen Angels”, onde através da cinematografia e dos espaços limiares e sonhadores, Wong cria uma atmosfera onírica que complementa as relações adversas entre as suas personagens: um assassino profissional que quer abandonar o mundo do crime e a sua parceira que, apaixonada por ele, se opõe à sua escolha; e um ex-recluso que se cruza repetidamente com a mesma mulher. Com “Happy Together”, o cineasta sai da sua zona de conforto cinematográfica, apropriando-se das paisagens pitorescas e ruas desertas da Argentina para contar a história de Po- Wing e Yiu-Fai, um casal homossexual instável. O filme segue os altos e baixos do casal, que se aproxima e distancia repetidamente de uma maneira quase cíclica durante a sua estadia em Buenos Aires. À exceção das cenas exteriores, a maioria da narrativa é confinada a um pequeno apartamento decrépito, por vezes partilhado por ambos, outras vezes habitado apenas por Po- Wing, que espelha a experiência interior das personagens.
Por último, em “Chungking Express”, são exploradas as histórias de amor de dois polícias banais que patrulham as ruas de Hong Kong e apaixonam-se por duas figuras femininas misteriosas e excêntricas. Nesta que é a tentativa de Wong de produzir uma comédia dramática, o cineasta usa diversos aspetos como a música, a cor, o espaço, a caracterização das personagens e as técnicas de filmagem para transmitir o estado emocional e psicológico dos seus protagonistas. “Chungking Express” e “Fallen Angels” possuem enredos diferentes, mas as suas histórias são semelhantes tanto em termos narrativos como estéticos.
In The Mood for Love
In The Mood For Love acompanha a história de dois casais em Hong Kong. Coincidentemente os dois mudam-se exatamente no mesmo dia para o mesmo edifício e tornam- se vizinhos. A trama acompanha principalmente a história de Mr. Chow e Mrs. Chan, uma vez que muito poucas vezes os seus parceiros aparecem e intervêm na narrativa. Quando o fazem, os seus rostos nem sequer chegam a ser revelados. Ambos os protagonistas acabam por cruzar-se cada vez mais, comunicando brevemente quando se encontram. Eventualmente acabam por desconfiar que os seus respectivos parceiros mantêm uma relação extraconjugal entre si e para esclarecer esta dúvida decidem encontrar- se. Esta primeira cena após a descoberta do envolvimento dos seus cônjuges dá início à relação conturbada de Mr.Chow e Mrs.Chan.
Após a sua conversa, enquanto andam pelas ruas, começam a encenar a forma como possivelmente teria começado o caso entre os seus parceiros. Enquanto Mr. Chow pensava não ter sido a sua mulher a dar o primeiro passo, Mrs. Chan achava impensável que o seu marido tivesse dado início à relação. A cena acaba quando Mrs. Chan, claramente perturbada com o pensamento, se vai embora e deixa Mr. Chow para trás.
Este momento acaba por desencadear uma relação incomum entre os dois, onde em encontros ambos se fazem passar pelo parceiro um do outro, de modo a tentarem compreender a traição. Após saídas frequentes, os dois começam a apoiar-se um no outro emocionalmente, fazendo confissões e revelações, que levam à segunda cena mais importante do filme.
Mr. Chow revela que gostaria imenso de escrever uma série literária de artes marciais, porém, após casar-se, as coisas acabam por mudar. As decisões que eram anteriormente somente suas acabam por dividir-se e recair sobre as duas partes do casal, o que resulta no abandono de certas atividades e desejos. Este assunto faz com que Mrs. Chan lhe confesse que se sentia mais livre quando era solteira, uma vez que o casamento acaba por restringi-la, e que embora pensasse que seria mais feliz, este acabou por não ser o caso. Aqui é possível perceber a maneira como ambos retratam a ideia que têm do casamento, visto como algo negativo e pesado. Ambos conversam como se não valesse a pena abdicar de aspetos da vida pessoal por outrem. Ao longo do seu diálogo, é palpável o sentimento de melancolia e solidão que ambos sentem dentro dos seus respectivos casamentos.
No desenrolar da história, Mr. Chow não resiste e decide começar a escrever a sua obra sobre artes marciais, recorrendo à ajuda de Mrs. Chan por ter notado que a mesma partilhava o seu interesse no género literário. Esta relação profissional faz com que a sua ligação pessoal entre ambos se vá transformando em algo mais íntimo, crescendo na sua intensidade no decorrer do filme. Os dois ficam mais próximos, começam a encontrar-se praticamente todos os dias, e entre partilhas de ideias, refeições e momentos mais vulneráveis apaixonam-se um pelo outro. A aproximação definitiva de ambos leva-nos ao clímax do filme: a terceira cena e uma das mais importantes.
Enquanto se encontram abrigados da chuva, Mr. Chow revela que, cansado dos rumores que o envolviam tanto a si como Mrs. Chan, pensa em mudar-se para Singapura. Mrs. Chan pede-lhe que fique, porém, o verdadeiro motivo da saída de Mr. Chow vem à tona. Ele revela-lhe que a principal razão para querer ir embora é saber que ela não deixaria o seu marido para ficar com ele. Aqui confessa-lhe o que sente e tem uma conversa remetente ao início da sua relação, quando ambos se envolveram com o objetivo de perceber a natureza da traição dos seus parceiros. Admite ainda ter errado quando afirmou que nunca se tornariam nos seus parceiros, uma vez que tinha acabado por se apaixonar por Mrs. Chan. Mr. Chow revela então finalmente ter compreendido a relação extraconjugal que ambos questionavam no início: os seus parceiros eram apenas humanos incapacitados de controlar aquilo que sentiam, da mesma forma que ele era incapaz de evitar apaixonar-se por Mrs. Chan.
Interpretação Semiótica de In The Mood For Love
No filme In The Mood For Love, Wong Kar-Wai consegue transmitir-nos várias sensações através de um conjunto de elementos visuais e sonoros. Aplicando a teoria peirceana e os conceitos de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade é-nos possível ter uma visão mais aprofundada de cada signo e elemento presentes no filme.
O realizador foca-se no uso de cores vivas, chamativas, especialmente através dos vestidos utilizados por Mrs.Chan no decorrer do filme. Uma das escolhas sonoras de Wong Kar- Wai foi usar sempre a mesma música em cenas de slow motion, esta acaba por nos acompanhar ao longo do filme desde a primeira interação entre Mr.Chow e Mrs.Chan até à última. Estes signos encaixam-se na categoria da Primeiridade: todos estes estímulos visuais e sonoros que recebemos ao longo do filme inteiro servem não só para captar a nossa atenção, mas também, para nos introduzir mais a fundo à trama.
A mudança de cores é um elemento que acompanha não só o peso da cena, como também o peso dos sentimentos das personagens, muitas vezes em cenas mais melancólicas o filme apresenta cores mais escuras, e havendo muitas vezes a presença de chuva. A junção destes dois elementos permite criar uma atmosfera mais pesada, triste e permite-nos sentir o que os personagens estão a sentir naquele momento. Na segunda fase da teoria peirceana, a Secundidade, o nosso foco vira-se para as personagens em si, a interação entre as mesmas, o contraste do ambiente, etc. Num primeiro momento da cena é possível ver ambas as personagens, num plano mais afastado, lado a lado, numa primeira instância o silêncio reina entre os dois, encontram-se em frente a um edifício de aparência desgastada, antiga, e uma rua vazia.
Passamos para um plano mais aproximado das personagens onde só conseguimos ver maioritariamente da cintura para cima, quem inicia a conversa é Mr.Chow, a câmara fica focada em si enquanto Mrs.Chan aparece em segundo plano, desfocada. Os dois conversam quase sem olharem um para o outro, o que nos remete para a tensão entre eles.
O ambiente que os envolve é apresentado como sendo mais deprimente, melancólico, o que ajuda os espectadores a enquadrarem-se na cena e a sentirem aquilo que as personagens sentem, uma vez que aqui Mr.Chow revela que está a pensar ir embora por não aguentar o peso do amor que sente por Mrs.Chan, também a presença da chuva forte encaixa-se com a aparência de uma rua desgastada, há um foco especial em uma das janelas do edifício que tem barras de madeira e apesar da câmara mudar, todos os ângulos dão foco a estas barras, em um dos ângulos escolhidos pelo diretor, é possível vê-los a falar por trás das barras, dando um efeito visual de prisão, adicionando mais um símbolo com conotação pesada e dramática à cena, mostrando-nos que o seu amor estava fadado ao fracasso.
No decorrer da conversa podemos perceber que a tensão entre os dois vai mudando, quando finalmente se viram um para o outro e começam a falar cara a cara.Finalmente, chegando ao patamar da Terceiridade é possível perceber que todos os símbolos presentes no decorrer do filme têm um impacto enorme e ajudam-nos a aprofundar a visão que temos desta relação que começou de forma tão conturbada. Mr.Chow pede um favor a Mrs.Chan e no decorrer da cena podemos perceber que eles “encenam” o que seria a sua despedida, isto acaba por nos remeter para a cena em que ela pede a Mr.Chow que treinem a forma como ela iria contar ao seu marido que sabia sobre a traição e volta a trazer-nos para este método que ambos têm de lidar com os seus sentimentos.
Há um foco nas suas mãos entrelaçadas e a seguir na forma como ela guia a mão que foi tocada pelo seu braço, apertando-o, como se não quisesse que aquele toque tivesse desaparecido, transmitindo um sentimento de saudade, desespero, como se quisesse gravar aquele toque na sua pele. Esta parte da cena decorre toda em slow motion, sendo cada movimento acompanhado pela câmara, mostrando-nos a importância daquele toque, o sentimento por trás do mesmo e a perturbação e tristeza da personagem feminina.
Depois é possível ouvir a voz de Mr.Chow e em seguida o choro de Mrs.Chan, acompanhados pela mesma música que os acompanhou ao longo de todo o filme, podemos ver que ela o agarra como se não o quisesse deixar ir, ao que Mr.Chow apresenta uma certa aparência de aceitação enquanto a consola. Através disto podemos perceber a diferença entre um e outro, enquanto ele já tinha refletido e já se tinha preparado para o fim daquela relação, ela não estava preparada para que aquilo fosse acontecer de forma tão abrupta. Todos os símbolos presentes ao longo desta cena mostram que esta assinala o fim daquela ligação que ambos tinham criado.
Happy Together
A narrativa de “Happy Together” (“Felizes Juntos” em português) surge para contrariar ironicamente a positividade do próprio título, retirado verbatim da canção homônima dos The Turtles. O filme acompanha Lai Yiu-Fai e Ho Po-Wing, inicialmente juntos e posteriormente em ambientes distintos, na sua estadia conturbada na Argentina, para onde viajam com o intuito de ver as cataratas do Iguaçu pessoalmente. Imediatamente, através da passagem de uma cena íntima para uma discussão violenta, percebe-se a intensidade e instabilidade do relacionamento entre ambos. Um filtro preto e branco priva o público de qualquer vislumbre de cor nos primeiros minutos do filme, durante os quais, após o término da relação, Yiu-Fai trabalha arduamente de modo a juntar dinheiro suficiente para voltar a Hong Kong. É aqui que surge a primeira cena chave para decifrar a mensagem de “Happy Together”.
O primeiro vestígio dos vermelhos, verdes e amarelos garridos emblemáticos da obra de Wong Kar-Wai surge quando Po-Wing quebra o silêncio entre os dois com um telefonema. Lai Yiu-Fai, reticente e magoado, bate euforicamente na porta do quarto de hotel de Po-Wing, que a abre com uma calma e pacificidade contrastante. Ambos intoxicados, dançam uma espécie de Tango onde Po-Wing assume uma posição ofensiva, procurando aliciar Yiu Fai a entrar, que por sua vez se recusa. Com este gesto estabelecem-se as posições definitivas dos protagonistas: enquanto Yiu-Fai se mostra cauteloso e cuidadoso no que toca ao romance, Po-Wing é desinibido e imprudente, não olhando aos meios para atingir os fins. O cenário ao seu redor permanece monocromático e monótono.
Por entre lutas físicas, beijos intensos e a destruição do espaço que os rodeia, são reveladas as circunstâncias que culminaram nesta explosão. Ambos sem dinheiro para voltar para Hong Kong após Po-Wing o ter gasto, Yiu-Fai dedicou-se a um trabalho humilde enquanto o seu ex-parceiro optou pela prostituição, separando-os. Yiu-Fai admite, após ser questionado, que se arrepende profundamente da relação com Po-Wing, mas a sua presença naquele quarto após uma simples chamada telefónica contraria a afirmação. Po-Wing revela então que a sua única intenção por detrás da chamada era estar com Yiu-Fai novamente, o que resulta num último ataque de fúria e na saída imediata deste último.
Para além da incansável dedicação de Po-Wing, que é deixado sozinho no seu quarto de hotel a chorar, é importante retirar deste diálogo as palavras defensivas e por vezes acusatórias de Yiu-Fai, que contrastam com a sua linguagem corporal e permanência física no local. Embora este assuma que a relação entre ambos é o seu maior arrependimento, não considera abandonar o espaço até que o fardo emocional da conversa se torna pesado demais para carregar. A sua porta permanece aberta para Po-Wing, mesmo após todo o sofrimento físico, económico e emocional por este causado. Por outro lado, Po-Wing mostra conhecer esta falta de controle por parte de Yiu-Fai, que monopoliza nas cenas seguintes. Nos primeiros resquícios de solidão, é a Yiu-Fai que recorre, instrumentalizando o efeito dominante que tem sobre ele.
Os momentos seguintes da vida de Yiu-Fai são marcados pelo regresso temporário de Po- Wing, que, após aparecer esfolado e ensanguentado no seu apartamento à procura de cuidados e asilo, traz também consigo a cor. O segundo ato de “Happy Together” detalha as inconsistências da relação de ambos, os bons momentos iniciais — a companhia, o calor humano, a partilha de momentos e experiências e a rotina doméstica — e os episódios negativos seguintes — destacam- se as altercações físicas, as traições e as mentiras partilhadas de parte a parte. Po-Wing regressa inevitavelmente ao seu infiel e imprudente “eu” que Yiu-Fai, esperando sempre pelo melhor do seu parceiro, falha em conseguir domar. A segunda cena de maior relevância representa uma mudança definitiva do pensamento de Yiu-Fai, que passa a abraçar a solidão e o silêncio, abandonando quaisquer esperanças pelo sucesso da sua relação com Po-Wing.
É apenas quando Yiu-Fai aceita estar sozinho e não ser condicionado por uma relação amorosa infrutífera que se permite desenvolver ligações com terceiros. Chang, um colega de trabalho, é com quem contracena numa conversa marcante num bar em Buenos Aires. Na sua despedida, Chang solicita que Yiu-Fai lhe deixe uma mensagem de voz no seu pequeno gravador, prometendo ouvi-la no próximo destino e guardá-la como souvenir. Mesmo com a relutância de Yiu-Fai, Chang insiste que a mensagem deva ser algo vindo do coração, ainda que triste, propondo deixar a tristeza de Fai em Ushuaia, onde tradicionalmente as pessoas de coração-partido o fazem. Por fim, Yiu-Fai, embora insistente de que não se sente triste, quando é deixado a sós com o gravador, desaba em lágrimas, deixando para trás uma mensagem de voz onde o silêncio é apenas interpolado por soluços.
Acrescenta-se outra camada de significado a esta cena quando Chang, no farol mais a sul da América, ouve como prometido a mensagem indecifrável de Yiu-Fai, libertando metaforicamente a sua mágoa e tornando-a inofensiva. A partir deste ponto, Yiu-Fai deixa de carregar sobre os ombros o peso de Po-Wing, deixando-o permanentemente no passado.
Voltamos a ver Po-Wing pela primeira vez fora do apartamento quando este regressa ao bar de Tango onde Yiu-Fai já não trabalha. Neste espaço, e de uma maneira muito característica ao físico e sedutor Po-Wing, dança com um estranho numa tentativa de emular o momento partilhado com Yiu-Fai na sua cozinha no ápice da relação. Quando a procura pelo mesmo sentimento de companheirismo e intimidade se revela falhada, Po-Wing refugia-se nos seus vícios e no apartamento anteriormente habitado por ambos.
Entre as quatro paredes, os papéis invertem-se. Po-Wing limpa, arruma, cozinha e espera por um eventual contacto do seu antigo parceiro, assumindo uma posição submissa e esperançosa que anteriormente cabia a Yiu-Fai. Num último gesto simbólico, Po-Wing restaura o candeeiro onde aparecem retratadas as cataratas do Iguaçu que costumava iluminá-los da mesa de cabeceira. Este deve ser visto como um último ato de desespero para garantir a permanência do laço há muito quebrado entre ambos. Assim que Po-Wing percebe que a porta de Yiu-Fai, na qual estava habituado a bater constantemente quando sentia necessidade, está realmente fechada permanentemente, a onda de solidão e mágoa sentida anteriormente pelo seu ex-parceiro atinge- o finalmente.
O contraste entre o destino de Yiu-Fai, que tem sucesso no seu regresso à Ásia e inicia o processo de reconciliação com a vida que deixou a meio, e o final de Po-Wing, que acaba isolado e desamparado no mesmo local em Buenos Aires, não sofrendo qualquer desenvolvimento positivo, lê-se nas entrelinhas como uma vingança merecida.
Não se pode deixar de sentir, no entanto, o agridoce da situação de Po-Wing. Embora seja o verdadeiro antagonista de “Happy Together”, não deixa de ser apenas outra das personagens que apresenta dificuldades em lidar com os próprios sentimentos. A realização de que Po-Wing, sozinho no apartamento e ansiosamente esperando à porta por qualquer sinal de Yiu-Fai, também o amava, embora que de uma forma incompatível e pouco saudável, impede-nos de considerar o final de todo satisfatório.
Interpretação Semiótica de Happy Together
Enquanto Fai inicia o seu processo de regresso a casa, dirigindo-se sozinho às cataratas Iguazu para realizar o seu sonho antes de sair da Argentina definitivamente, Po-Wing espera sentado embriagado no bar de Tango das primeiras cenas. Os amarelos garridos do letreiro pintado na janela informam o público da localização, frisando que este se encontra do lado de fora da ação, espiando secretamente a personagem. No interior do estabelecimento, Po-Wing dança com um homem desconhecido evocando a memória dos passos que ensinou a Fai no seu apartamento. Este último chega mesmo a fazer uma aparição numa sequência idealizada por Po-Wing, confirmando o paralelismo.
Do estabelecimento vazio, Po-Wing acaba estendido no chão de uma rua também deserta, banhado por luz vermelha e sombra. Os movimentos de câmara lentos e prolongados acompanham as suas tentativas embaraçosas de se erguer, até que desiste e aceita o seu destino.
No antigo apartamento de Fai, Wing acumula maços de cigarro e realiza as tarefas domésticas de que se esquivava anteriormente na presença do seu parceiro. Freneticamente, limpa o chão e arruma as prateleiras, até que se senta num pequeno banco no canto do estúdio com os ombros para baixo e a cabeça descaída. Há a intermissão de um plano geral chave, que retrata o apartamento vazio e em silêncio, numa quietude completa, o oposto de quando o mesmo era coabitado pelo casal. Po-Wing abre a porta, ainda sentado no banco, e olha expectante para o corredor que se estende fora do enquadramento.
Banhado em luz amarela escura e rodeado por sombra, deixa a sua cabeça cair na moldura gasta da porta e cerra os olhos com alguma força. Seguidamente, Po-Wing arranja a lâmpada das cataratas do Iguazu que permanecia, fundida, numa mesa de canto, em algumas cenas picotadas e bruscamente editadas. Ainda em completo silêncio e isolamento, observa de perto e atentamente a paisagem representada no objeto. Uma última vez, o público é transportado para o lado de fora do apartamento antes de, através de uma janela em completo segredo, assistir a Po-Wing dobrado sobre a manta de Liu-Fai e a chorar desconsoladamente.
No Nível Singular-Indicativo da análise, podemos retirar diversos elementos que, remetendo para fenômenos e aspectos da vida real fora do ecrã, causam impacto e reações no espectador mesmo sem implicar uma avaliação cognitiva. Destaca-se a mudança óbvia no uso das cores em comparação com as cenas correspondentes ao tempo de harmonia entre o casal: o vermelho forte e intenso, associado popularmente com o amor e a paixão, é substituído pelo amarelo sombrio e o verde frio. A utilização do espaço também surge como auxiliar à narrativa, nomeadamente o seu preenchimento, ou falta de. O apartamento, anteriormente habitado e personalizado, encontra-se vazio e demasiado organizado.
Os movimentos bruscos de Po-Wing, que tenta de todas as formas possíveis polir obsessivamente o espaço e ocupar as suas prateleiras com um número alarmante de maços de tabaco, também deixam sequelas no público. Estas ações eufóricas são confrontadas logo em seguida com a linguagem corporal apática e até mesmo o choro intenso da personagem, que provocam diversas sensações no público. O próprio silêncio é em si um código capaz de impulsionar reações intensas, remetendo à ausência e ao isolamento. Por último, encontra-se também presente o objeto ao redor do qual toda a ação se desenrola, a lâmpada das cataratas do Iguazu, que remete tanto para o local físico existente na vida real, como para a relação entre os protagonistas. A tentativa espontânea de reparação da mesma permite ainda estabelecer relações entre o objeto e a narrativa, elucidando a audiência relativamente aos verdadeiros sentimentos nutridos por Po-Wing até então.
O último nível, correspondente à Terceiridade, existe no plano Convencional-Simbólico e diz respeito à racionalização, por parte do público, destas relações estabelecidas entre o real e o fictício. As mudanças de cores, cenários e técnicas de filmagens, assim como os objetos e a representação usados para transmitir uma mensagem são finalmente absorvidos pelo espectador, que lhes atribui sentido e significado, num processo íntimo e extremamente pessoal. As cores frias e escuras que substituem as quentes e convidativas contribuem, assim como o silêncio que perdura durante toda a cena, para a formação da sensação de abandono, solidão e melancolia. Em congruência com este facto, a quietude e esvaziamento do apartamento indicam a falta da presença de outrem, que já abandonou o espaço e, consequentemente, a personagem que nele se encontra.
O espectador observa a ação de longe ou através de janelas, como se de uma violação da privacidade ou de espionagem se tratasse, dando a ideia de estar a presenciar indevidamente um momento íntimo. Esta tendência é apenas contrariada nos planos mais próximos de Po-Wing, que espelham a sua tristeza profunda e desespero, intensificando momentos como a sua espera e o seu choro. Através das ações obsessivas de Po-Wing, o realizador transmite-nos a sua incapacidade de abandonar o passado e seguir em frente, que se une à contínua presença da personagem no espaço e a sua falta de desistência para representar a ligação permanente à relação passada. Po- Wing limpa o apartamento, reabastece o fornecimento de cigarros de ambos e espera sentado à porta, chegando mesmo a olhar para fora dela em expectativa, preparando-se para um possível regresso de Liu-Fai (semelhante aos anteriores que pautaram o ritmo do seu relacionamento). Desta vez, no entanto, Liu-Fai não regressa, e Po-Wing é deixado sozinho no apartamento silencioso, rodeado por memórias e melancolia intensa. A reparação e observação atenta da lâmpada simboliza, num último instante, a tentativa e esperança de Po-Wing de solucionar os seus problemas amorosos, assim como a permanência emocional das memórias da mesma.
Assim, Wong Kar-Wai utiliza, em “Happy Together”, diversos elementos visuais que provocam sensações ao público, guiando-o pela narrativa e pelas próprias emoções das personagens. Para além das técnicas cinematográficas e cores características do realizador, que surgem como uma linguagem universal a todas as suas obras, surgem ainda objetos e momentos específicos que se destacam na passagem de sentido para a audiência. Kar-Wai constrói, através destas relações semióticas, um universo emocionalmente complexo composto por reflexões da experiência amorosa e do comportamento humano.
Chungking Express
O filme “Chungking Express” tornou-se emblemático pela sua estética inovadora e abordagem única ao tema do amor e das conexões humanas. Dividido em duas narrativas, o filme explora, por meio de dois personagens polícias, a tensão entre encontros fortuitos e a dor da perda amorosa. Em cada uma das histórias, a solidão e o desejo de uma conexão autêntica emergem como elementos centrais, enquanto o realizador utiliza uma série de metáforas visuais para simbolizar estas emoções complexas.
A primeira narrativa acompanha o polícia He Zhi-Wu (número de identificação 223), cuja tentativa de lidar com o fim de uma relação o leva a traçar uma analogia entre a sua própria dor e a sua obsessão por ananás enlatado com datas de validade próximas. Esta metáfora expande-se, revisitando a relação entre a memória e o tempo, temas recorrentes na filmografia de Wong Kar- Wai. Para Zhi-Wu, o consumo de ananás estragado torna-se uma metáfora para a sua incapacidade de seguir em frente, como se pudesse enlatar as suas lembranças e mantê-las intactas. O seu questionamento sobre se “as memórias pudessem ser enlatadas” evidencia o desejo de prolongar uma conexão que já expirou, demonstrando o peso emocional que estes vestígios de amor ainda exercem sobre ele.
Na sequência, o realizador entrelaça a trajetória de Zhi-Wu com a de uma mulher misteriosa, envolvida no tráfico de drogas, que também enfrenta a sua própria jornada de solidão. Numa noite, os dois personagens acabam juntos num quarto de hotel, onde, num diálogo significativo, encontram uma espécie de consolo mútuo. Este momento reflete uma questão fundamental que atravessa o filme: até que ponto a necessidade de conexão se confunde com a solidão? O encontro entre Zhi-Wu e a mulher não resulta numa relação, mas ilustra a universalidade das emoções humanas. Ambos partilham a mesma procura por companhia, não como um fim em si, mas como uma forma de lidar com as suas respectivas ausências pessoais.
A segunda narrativa do filme foca-se no policial número 663, que, ao contrário de Zhi- Wu, não perdeu a sua relação por decisão própria, mas sim por escolha da sua ex-companheira, uma hospedeira de bordo. Para superar a sua dor, ele interage com objetos deixados por ela, criando diálogos imaginários que se refletem numa interação quase simbiótica com itens inanimados, como panos e sabonetes. As cenas entre o polícia e os objetos expressam, num nível semiótico, o desejo de prolongar e reanimar uma conexão ausente. Por outro lado, a empregada de mesa Faye, que desenvolve uma paixão não correspondida pelo agente, aproxima-se da personagem de forma inusitada e obsessiva, frequentando o seu apartamento enquanto está ausente e até reorganizando os seus objetos pessoais para preencher o vazio deixado pela sua ex-namorada.
Um elemento marcante em “Chungking Express” é como Wong Kar-Wai explora a solidão das personagens sem ceder ao sentimentalismo. O realizador constrói uma estética visual que reforça esta abordagem, utilizando frequentemente técnicas de filmagem que distorcem a realidade ao enfatizar o isolamento das personagens no meio de uma Hong Kong movimentada. Nas cenas de Zhi-Wu, por exemplo, o uso de “slow motion” e desfocagem projeta a subjetividade do protagonista, ilustrando a sua corrida pelas ruas da cidade como uma busca por respostas, ainda que as mesmas nunca cheguem de fato. Por meio destes recursos visuais, Wong consegue ilustrar o sentimento de alienação sem necessidade de diálogos, criando uma ambientação que fala diretamente à experiência do espectador.
A banda sonora do filme, repetitiva e hipnotizante, também desempenha um papel fundamental na criação de uma atmosfera que reforça as emoções centrais. A música “California Dreamin’” ouvida constantemente por Faye, torna-se uma metáfora auditiva do seu estado emocional e do seu desejo de evasão e recomeço. Ao trazer repetidamente clássicos da música ocidental, Wong estabelece uma atmosfera nostálgica, destacando a universalidade do tema da busca por uma conexão, ao mesmo tempo que cria um contraponto entre o movimento da cidade e o estado de estagnação dos personagens.
Assim, “Chungking Express” firma-se como um estudo visual e narrativo da solidão e da conexão humana. Com uma linguagem cinematográfica complexa e simbólica, Wong Kar-Wai oferece uma visão autêntica e universal sobre as relações amorosas e a condição humana, convidando o espectador a revisitar as suas próprias conexões e a questionar o sentido das suas experiências afetivas.
Interpretação Semiótica de Chungking Express
Em Chungking Express, Wong Kar-Wai constrói um mundo rico em signos que operam nos três níveis peirceanos: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. A Primeiridade foca-se na experiência sensorial e emocional direta proporcionada pelos signos visuais e sonoros do filme. Wong Kar-Wai utiliza uma paleta de cores saturadas e técnicas como slow motion e desfocagem para criar uma sensação de alienação e transitoriedade. Essas escolhas estéticas evocam uma subjetividade emocional, permitindo que o espectador experimente a solidão e a busca dos personagens por conexão. Além disso, a trilha sonora, particularmente a repetição de “California Dreamin”, estabelece uma atmosfera hipnótica e nostálgica, representando sensorialmente o desejo de evasão e recomeço de Faye, ao mesmo tempo, em que simboliza a persistência de sentimentos e memórias. Os objetos no filme, como o ananás enlatado de Zhiwu e os itens deixados pela ex-namorada do policial 663, também carregam significados emocionais profundos. Esses elementos funcionam como extensões táteis das emoções dos personagens, simbolizando memórias e ausências de forma sensorial.
Na Secundidade, o foco recai sobre a interação entre personagens, objetos e ambiente, revelando tensões e contrastes. A obsessão de Zhiwu com ananás vencido transcende a metáfora visual, tornando-se uma ação concreta que reflete a dificuldade do personagem em desapegar-se do passado. A relação entre o tempo e a validade do ananás conecta ações físicas à realidade emocional de Zhiwu. Por outro lado, as ações de Faye, ao reorganizar o apartamento do policial 663, criam uma interação simbólica. Nesse gesto, ela tenta preencher a ausência deixada pela ex-namorada do policial, ressignificando o espaço como um campo de disputa emocional. Além disso, as interações não verbais no quarto de hotel entre Zhiwu e a mulher misteriosa exemplificam a universalidade da solidão e da busca por conexão. A ausência de diálogo nessas cenas reforça a comunicação emocional pura, que transcende as palavras, tornando o silêncio um signo poderoso.
Finalmente, na Terceiridade, os signos de “Chungking Express” são elevados a interpretações mais amplas, conectando-se a abstrações e racionalizações universais. A metáfora do ananás vencido ultrapassa o personagem de Zhiwu, representando o ciclo das conexões humanas e a suas “datas de validade” emocionais, universalizando a efemeridade do amor e das relações. A ambientação de Hong Kong, com sua atmosfera claustrofóbica e caótica, não funciona apenas como cenário, mas também como um signo da alienação dos personagens. O contraste entre o movimento incessante da cidade e o isolamento interno das figuras centrais reflete a desconexão das relações humanas na modernidade.
Os diálogos imaginários do policial 663 com os objetos deixados pela ex- namorada simbolizam a permanência emocional de uma relação, mesmo após o término físico. Por sua vez, a reconstrução do espaço por Faye ilustra a tentativa de ressignificar memórias e experiências passadas. Outro elemento simbólico é a música California Dreamin, que funciona como uma âncora temporal e emocional, representando o desejo de Faye por algo maior enquanto permanece emocionalmente conectada ao presente.
Ao trabalhar nesses três níveis, Wong Kar-Wai permite que o espetador seja imerso nas sensações e emoções imediatas dos personagens por meio da Primeiridade, entenda os conflitos internos e externos através da Secundidade e, na Terceiridade, interprete os signos visuais e narrativos em conceitos universais como amor, perda e memória. Essas camadas semióticas criam um espaço de introspecção, convidando o público a revisitar as suas próprias experiências emocionais e a reconhecer a universalidade das conexões humanas, fugazes, mas profundamente significativas.
Fallen Angels
Originalmente concebido por Wong Kar-Wai como um terceiro segmento de “Chungking Express”, “Fallen Angels” é um drama criminal que joga com o noturno e o néon, seguindo a estética do filme anteriormente mencionado. Através do uso de certos ângulos da câmara, cores, cenários e ações, o realizador apresenta cenários urbanos como labirintos e aborda assuntos como a solidão e a rejeição. Em “Fallen Angels” são apresentadas as histórias dos três protagonistas. Wong Chi-Ming, um assassino que trabalha para diversos clientes e não tem família ou amigos, vive num apartamento minúsculo. A sua parceira, enquanto Wong está ausente, limpa o seu quarto, vasculha os seus pertences e faz as compras da casa, tudo numa tentativa de ficar a conhecer o homem com quem trabalha, já que o empregador não lhe dá essa informação, ao ponto de ficar obcecada. Ao descobrir que Wong está numa relação com uma prostituta chamada Blondie, a parceira fica inevitavelmente com ciúmes. Seguidamente, é-nos apresentado Ho Chi-Mo, um delinquente que vive através do furto de pequenos negócios durante a noite. É numa destas noites que conhece Charlie, por quem fica perdidamente apaixonado.
No bar frequentado pelos dois assassinos, com a típica luz baixa e tonalidades avermelhadas típicas do cinema de Wong Kar-Wai, Wong Chi-Ming confessa deixar pistas para que a sua companheira saiba sempre o seu paradeiro, admitindo também que a parceira já faz parte da sua vida. Nesta cena, Wong reconhece pela primeira vez as tentativas de aproximação da sua companheira de trabalho, que sempre procurou compreendê-lo, e admite a necessidade de permitir que as mesmas aconteçam.
No entanto, tudo muda quando Wong pretende alterar o rumo da sua vida e não sabe como informar a sua parceira. O assassino arranja, por fim, uma solução pouco ortodoxa: pede ao empregado do bar para entregar à mulher que viesse procurar por ele uma moeda que aludisse ao seu número da sorte, 1818. A sua companheira de crime, adepta da música daquele estabelecimento, reconheceria o seu significado e tocaria uma música na jukebox.
Esta cena é acompanhada por um ambiente sensual, condicionado pela música, e de cores e tons visualmente satisfatórios. Em seguimento da cena anterior, vemos a parceira de Wong a utilizar a moeda na Jukebox, onde coloca a canção número 1818 a tocar — a mensagem escondida por detrás das ações do assassino. Wong comunica com ela, pressupondo a sua perspicácia, através da letra da música. As cores inicialmente vibrantes devido à luz néon da Jukebox voltam a ser escuras logo de seguida. Vemos a parceira de Wong a preto e branco, representando a mágoa e a solidão sentida, no meio do restante ambiente monótono, tendo apenas cor na mesa (vermelho) e na própria caixa de música (amarelo néon).
A canção 1818 tem um tom melancólico e fala sobre como esquecer “aquele alguém” é como perder o rumo da vida ou ser apunhalado no coração. A letra surge como um presságio do que acontecerá com a parceira de Wong, que ao tentar esquecer o assassino acaba magoada. A cena acaba com a aproximação da câmara na personagem em cena, mostrando a sua expressão de angústia num grande plano.
Nesta última cena destacada, Ho Chi-Mo convida Charlie para um jogo de futebol. Ela aceita, mas apenas porque acredita que o seu ex-namorado, Johnnie, pudesse também estar presente. Ho, um romântico otimista, convida-a novamente para outro jogo. É o primeiro a chegar ao estádio e o último a sair, esperando por ela até desligarem a última luz do estádio, mas a mulher não chega a aparecer. Ho percebe que a sua esperança em relação a Charlie, uma mulher pouco estável e obcecada com o ex-namorado, era inútil. Afinal, não era a relação de Charlie com o ex- companheiro que tinha expirado, mas sim a relação de ambos que nem havia começado.
Ainda otimista, Ho Chi-Mo acredita que Charlie esqueceria a saudade que sentia e dar-lhe-ia uma oportunidade, mas o seu desejo não se materializa. Esta realização resulta num momento de autodescoberta: Ho apercebe-se de que havia perdido o seu primeiro amor, mas também descobre que tinha sido irresponsável a vida toda. Visualmente, a cena é revestida por um ambiente muito escuro e frio, chegando a nevar e a chover. A voz de Charlie ecoa pelo estádio vazio. No final da cena, as luzes do estádio apagam- se uma por uma, representando o fim do relacionamento entre ambos e o coração partido de Ho.
Interpretação Semiótica de “Fallen Angels”
Em “Fallen Angels”, Wong Kar-Wai usa cores muito específicas no filme inteiro apresentando Hong Kong como uma cidade repressiva, com pouca luz e ruas e lojas estreitas. Neste filme, a trilha sonora é muito usada para demonstrar os sentimentos das personagens, sendo possivelmente uma das trilhas sonoras mais icónicas do realizador.
Inicialmente, na Primeiridade, num Nível Qualitativo-Icônico, no restaurante onde se encontram a parceira e Wong, as cores eram vibrantes com a luz néon da Jukebox, mas voltam a ser escuras logo de seguida. A própria música 1818 tem um tom melancólico e fala sobre como esquecer “O alguém” é como perder o rumo da vida, como uma faca no coração. Vemos a parceira de Wong a preto e branco que nos faz compreender a mágoa e a solidão, no meio do restante ambiente também monótono, tendo apenas cor na mesa, vermelho, e na própria caixa de música, amarelo néon.
A Nível Convencional-Simbólico a cena que engloba a música 1818 passa-se exatamente na mesma mesa em que se passa a cena anterior (mudar de vida), fazendo o paralelismo e espelhando as emoções de ambas as personagens, o restaurante surge como um espaço pequeno e solitário para quem observa. A cena acaba com o Zoom In na personagem em cena, mostrando a sua expressão de angústia mais de perto. Vemos o desenlace do fim da relação tanto profissional quanto amorosa, que nunca chegou realmente a existir, a companheira compreende que isto foi um adeus calculado – Wong não a quis conhecer verdadeiramente. temos de novo uma separação física através da espelhagem da imagem uma demonstração clara para o espetador da separação emocional e de isolamento.
Como objeto imediato podemos considerar a jukebox que funciona, já como objeto dinâmico, como uma ponte entre os sentimentos de ambas as personagens, mas também um portal para os espectadores entenderem a dinâmica entre as personagens. A própria letra da música 1818, representante da desconexão emocional entre os dois, surge como um presságio do que acontecerá com a parceira de Wong, porque ao tentar esquecer o assassino acaba magoada.
Ao trabalhar os três níveis de forma constante, Wong Kar-Wai consegue imergir o espectador num ambiente de solidão, desejo e mágoa, de forma a que consigamos entender os conflitos tanto externos como internos das personagens e sentir os mesmos sentimentos, criando uma ligação com as dificuldades de Wong, a parceira e Ho.
Em suma, foram escolhidos quatro filmes do diretor para serem analisados: “In The Mood For Love”, “Fallen Angels”, “Happy Together” e “Chungking Express”. À luz da teoria de Charles Peirce foi possível apontar os signos presentes nas cenas-chave de cada um e perceber como os elementos se interligam para contar a história de cada personagem. Desde a paleta de cores, à trilha sonora e até pequenos objetos, ângulos de câmara e diálogos são usados para despertar sentimentos e sensações nos espectadores, que se envolvem emocionalmente com a narrativa de forma a sentir o que cada personagem sente de forma intensa e íntima. Usando a Semiótica Peirceana e os conceitos de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, foi possível ter uma visão mais aprofundada de cada filme. As comparações aqui feitas com alguns dos filmes de romance mais icónicos de Hollywood, serviram também para exemplificar como a cultura pode influenciar a construção dos filmes e narrativas.
Wong-Kar Wai traz a cultura chinesa e o ambiente de Hong Kong para a construção das suas obras e, não se deixando influenciar pelas narrativas presentes nos filmes ocidentais, o realizador introduz histórias e personagens únicas, cheias de simbolismo, através das quais mostra as imperfeições das relações humanas. O realizador representa nas suas obras uma visão mais melancólica e realista do amor, enfatizando os diversos entraves que existem entre as personagens. É através de vários elementos e símbolos que é capaz de construir uma narrativa onde é possível perceber ao longo do filme que os relacionamentos estão inevitavelmente destinados ao fracasso. A estética claustrofóbica de Hong Kong (e das ruas e habitações precárias de Buenos Aires, no caso de “Happy Together”), aliada a diálogos internos e à interação com objetos, permite que os filmes transcendam a temática do romance convencional, convidando o espectador a refletir sobre a transitoriedade das conexões.
Em última análise, os filmes explorados constroem as suas narrativas em torno de reflexões sobre as relações humanas e a efemeridade do amor. As conexões estabelecidas entre as personagens, muitas vezes frugais e passageiras, revelam o olhar subjetivo com que Wong Kar- Wai observa as interações humanas: marcadas por encontros e desencontros que, apesar de breves, deixam vestígios profundos.
Tanto In The Mood For Love, Happy Together, Chungking Express e Fallen Angels partilham a ideia de que as verdadeiras conexões são simultaneamente fugazes e eternas, pois, ainda que se desfaçam com o tempo, continuam a existir nas lembranças e nas experiências dos envolvidos. A ideia de que amar é um ato de coragem e aceitação da própria vulnerabilidade é, assim, universal a toda a obra do realizador, permitindo ao público concluir após a sua visualização que a conexão mais significativa que se pode alcançar não é com o outro, mas consigo mesmo.
Referências
Alves, C. (27 de Julho de 2021). Chungking Express, de Wong Kar-Wai: a poesia e a dor de criar conexões. Obtido de Valkirias: https://valkirias.com.br/chungking-express/
Alves, R. M., & Cossio, G. (Novembro de 2018). “Ame o seu vizinho”: uma análise semiótica do curta-metragem Neighbours. Triades.
de Melo, D. P., & de Melo, V. P. (2015). Uma Introdução à Semiótica Peirceana. Paraná: Unicentro.
França, L. (2021/jan–jun). A linguagem cinematográfica de Wong Kar-Wai: a estética como narrativa nos filmes Amores Expressos e Anjos Caídos. Revista Miguel, 4, 155–160.
Kar-Wai, W. (Realizador). (1994). Chungking Express [Filme]. Kar-Wai, W. (Realizador). (1995). Fallen Angels [Filme].
Kar-Wai, W. (Realizador). (1997). Happy Together [Filme].
Kar-Wai, W. (Realizador). (2000). In the Mood for Love [Filme].
Mesquita, L. F. (07 de abril de 2021). A Linguagem Cinematográfica de Wong Kar-Wai: A Estética Como Narrativa nos Filmes Amores Expressos e Anjos Caídos. PUC-Rio.
Vasconcellos, J. (2021, 23 de novembro). Chungking Express: amor e solidão em uma cidade inquieta. Valkirias. Obtido de Valkirias: https://valkirias.com.br/chungking-express/
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