- Artista: Baco Exu do Blues
- Álbum: Bluesman
- Data de lançamento: 2018
- Gênero: Hip-Hop/rap
- Categorias: Industria e Narrativa
Por Daiana Sigiliano e Vinícius Guida
De acordo com Goodwin (1992) e Holzbach (2016) o videoclipe é também um produto sonoro. Segundo os autores, a narrativa imagética só constrói sentidos em conjunto com a letra e melodia e só pode ser analisada compreendendo os contextos da cultura em que se insere. Lançado em 2018 Bluesman é um videoclipe singular, reunindo três músicas do disco homônimo de Baco Exu do Blues (as faixas Bluesman, Preto e Prata e Queima Minha Pele), o filme discorre sobre questões intrínsecas às músicas do rapper soteropolitano.
O álbum é o segundo de estúdio de Exu do Blues. O primeiro, Esú (2017), figurou entre os melhores do ano de veículos especializados como Miojo Indie (2º lugar), Rolling Stone (5º lugar) e Tenho Mais Discos Que Amigos (10º lugar). Para esse primeiro trabalho, foram lançados apenas dois videoclipes entre En Tu Mira (Interlúdio ESÚ), uma espécie de teaser lançado em agosto de 2017, cerca de um mês antes do lançamento oficial do disco. A Pele que Habito foi a outra faixa escolhida, mas o clipe só foi liberado cinco meses depois do álbum.
Para o segundo disco, já aclamado pela crítica no ano anterior, Exu do Blues assumiu uma estratégia menos convencional e mais ousada, lançando uma única produção audiovisual que reunisse todo o conceito de Bluesman. Diferente da estrutura tradicional de um álbum-visual, como Lemonade (Beyoncé, 2016), o artista produziu uma peça que busca trabalhar a temática central de seu lirismo: a negritude.
Em relação ao álbum, as questões sociais e identitárias da negritude foram bastante ressaltadas pela crítica. A resenha do site Omelete afirma que “o hip-hop/rap nacional é a música que mais fala sobre o Brasil e o brasileiro de hoje. No caso de Bluesman, Baco expõe “o que o negro, o comum, aguenta”. A manchete do portal Metrópoles destaca que o disco “é crítica de um Brasil racista”. Já O Globo ressalta que apesar de muito jovem, o rapper apresenta uma concepção madura de sua obra musical.
A ambientação do videoclipe Bluesman tem um papel fundamental na construção da trama proposta. Apesar de ser composta por diversos cenários tais como, uma banca de joias, a varanda de um prédio e o campo, a cidade por onde o protagonista corre é o fio condutor de toda a história. É através dela que a expectativa do público é criada e, posteriormente, quebrada. Ao longo do vídeo acompanhamos um jovem negro correndo pela metrópole entre edifícios e ruas esfumaçadas, entretanto não sabemos do que e/ou para onde ele corre.
As imagens do jovem são intercaladas por trechos que corroboram com a discussão do racismo estrutural presente no videoclipe como, por exemplo, o depoimento de Caique, uma criança do Complexo do Alemão que sonha em ser médico, e que é abruptamente interrompido pelos passos largos e aflitos do jovem. O modo como a cidade é mostrada, na maioria das vezes em tons cinzas, e os planos fechados na expressão do protagonista geram uma expectativa de que aquele jovem provavelmente está fugindo de algo. Entretanto, à medida em que ele caminha, novas imagens são postas em discussão como, por exemplo, a metáfora da prata e do outro. Em uma banca de jias um senhor diz que “[…] por que o ouro é tão querido e a prata é subvalorizada? Alguns irão de responder que é pela prata ser encontrada com mais facilidade. Reflita: o Brasil tem uma população de negros maior do que de brancos. Temos menos valor por sermos maioria? A ironia da maioria virar minoria. A prata é um metal puro, eu realmente não entendo essa necessidade da procura do ouro”. Aos poucos os tons da cidade por onde o jovem corre vão mudando, o cinza dá espaço ao ocre, ao bege e as ruas, antes esfumaçadas e vazias, são tomadas por adultos e crianças.
Vemos que na verdade o jovem corre porque está atrasado para a sua aula de música clássica, e que o percurso dele pela cidade se torna um processo simbólico na desconstrução e discussão sobre o racismo estrutural. Como Baco diz em um trecho de Bluesman, “Eles querem um preto com arma pra cima. Num clipe na favela gritando ‘cocaína’”, o protagonista não corre de algo ou alguém, mas em busca do seu sonho, assim como o menino Caique nos minutos iniciais do videoclipe, e a cidade serve não só como pano de fundo, mas conduz a jornada do protagonista.
De acordo com Goodwin (1992) na análise do videoclipe é fundamental que o pesquisador considere o conteúdo como um produto sonoro. Em outras palavras, para o autor as imagens só fazem sentido, de fato, se estiveram atreladas à canção. Os efeitos sonoros da trama contada pelo artista abrangem não só os trechos das canções como também monólogos (Prata e Ouro, depoimento Caique e etc.); ritmos afro-brasileiros (como, por exemplo, a música instrumental que toca quando o protagonista se encontra com os seus amigos na varanda de um prédio); o som ambiente do campo e os passos do protagonista ofegante pelas ruas da cidade, entre outros. Os momentos em que escutamos os trechos das músicas apresentam um nítido diálogo com as respectivas letras. Como, por exemplo, quando Baco canta “Nós vive pela prata tatata tatata, nós mata pela prata tatata tatata, protegemos a prata tatata tatata, nós negros somos prata tatata tatata” e os dizeres são acompanhados de imagens de vários rostos negros. O mesmo acontece no trecho de Queima minha pele, quando o rapper diz “Amor, você é como o sol, ilumina meu dia, mas queima minha pele” e vemos o protagonista tomando um banho de chuva.
Nesse sentido os efeitos sonoros do clipe vão ao encontro da composição imagética, seja por meio das músicas ou dos outros recursos usados no conteúdo.
A fotografia de Bluesman dá continuidade a capa do disco homônimo. A foto de João Wainer mostra um detento tocando uma guitarra no antigo Carandiru, em São Paulo. Segundo Baco, “Essa foto é uma das imagens mais libertadoras que eu já vi. Ser BLUESMAN é não ser o que os outros esperam, é não se enquadrar em rótulos ou estereótipos, e essa foto do João Wainer de um negro dentro do Carandiru, um dos maiores presídios que o Brasil já teve, representa isso! Com todo esse peso, a foto só exala arte e isso é BLUESMAN!!!”.
A fotografia do clipe se divide, de modo geral, em dois momentos, em tons cinzas e tons marrons. O cinza é usado quando ainda não sabemos para onde e/ou de quem o protagonista corre, e o marrom (em diálogo com capa do álbum) em momentos em que o jovem entra em contato com sua ancestralidade e com a arte. Assim como na imagem de João, o jovem se liberta através da música no final da canção.
Apesar de ser permeada por diversas imagens, a edição do clipe Bluesman é linear. Por mais que a trajetória do protagonista seja intercalada de outras cenas, acompanhamos do inicio ao fim o seu percurso, desde a corrida pela cidade até a aula de música. É partir desta linearidade cronológica que os desdobramentos – como o monólogo Prata e Ouro, por exemplo – acontecem.
Assim como no álbum, a temática geral do videoclipe é a negritude e o racismo estrutural. Um interlúdio reflete sobre a metáfora entre a prata (metal) e a população negra no Brasil, introduzindo um trecho da faixa que articula essa ideia, Preto e Prata. Na sequência, o clipe retoma a faixa título até que em determinada cena Queima minha pele assume a trilha em uma cena do personagem sob um dia de sol e chuva. O final da narrativa incorpora o recurso de quebra de expectativa, apresentando o motivo da pressa do personagem no princípio: estaria atrasado para um ensaio (ou aula) musical.
O tema do videoclipe é explorado de diversas formas, mas, de maneira geral, procura opor-se às narrativas essencialmente ligadas aos corpos negros. A fala de Caíque ressoa a busca por um futuro outro daquele socialmente imposto. A quebra de expectativa no final se dá pela associação do espectador, de início, a fuga da opressão policial, recorrente no cenário urbano e no imaginário social consolidado pela mídia. Junto à letra da música, em um belo campo em um dia de sol, o clipe apresenta a reflexão quanto à apropriação e ao embranquecimento da cultura negra pelo mercado, através da história do blues, ritmo surgido nos Estados Unidos que deu origem ao universo rock.
A obra tensiona os censos numéricos da população brasileira, composta majoritariamente por pretos e pardos, com a alocação dessa parcela na hierarquia social. Nas poucas linhas faladas no videoclipe, para além da canção, um personagem reflete “Do latim argentum, significa brilhante. Nossa pele é de prata. Ele reflete luz. Um brilho tão intenso que me pergunto, por que o ouro é tão querido e a prata subvalorizada?”. Na sequência, a metáfora é explorada através da letra de Preto e Prata que diz “nós vive pela prata, nós mata pela prata, protegemos a prata, nós negros somos prata” com a última sílaba de cada verso sendo repetida algumas vezes com um som que lembra a onomatopeia de um tiro de pistola (tatata).
No decorrer do clipe outras críticas sociais podem ser encontradas, discutindo estereótipos do racismo na sociedade, assim como suas relações com as imagens apresentadas. Enquanto Exu do Blues canta “choro sempre que eu lembro da gente”, referenciando a população negra, o personagem se localiza em uma igreja e a pintura de Jesus Cristo negro é exibida. Esta discussão está presente em outros momentos e referencia o modo como o personagem bíblico foi retratado ao longo dos séculos, distanciando-o de sua matriz étnica. Com o verso, “eu sou o maior inimigo do impossível”, é exibida uma sequência de diferentes planos que exaltam a beleza preta. No trecho, “Jerusalém que se foda, eu tô a procura de Wakanda”, as imagens seguem a métrica da canção, cortando entre os versos, da imagem de Jesus Cristo ocidentalizado (logo, branco), para uma reunião pacífica e bem humorada de amigos pretos, ambientada pelo som dos afoxés.
A intertextualidade pode ser identificada em diversos momentos ao longo do videoclipe. A referência à Wakanda (país ficcional africano e terra natal do personagem da Marvel Comics, Pantera Negra) é explorada no trecho acima descrito e relaciona-se à ideia de comunidade, que é um dos pilares das discussões sobre identidades contemporâneas. A discussão do universo cristão, materializado pela Bíblia, é constantemente debatida nos dois âmbitos principais do videoclipe, tanto na música quanto nas imagens.
No plano exposto na imagem acima, a referência é puramente visual. A grande barra de prata, metáfora amplamente explorada tanto pelas músicas quanto pelo clipe de Exú do Blues, assemelha-se ao monólito que aparece no começo do filme “2001 – Uma odisseia no espaço”. Na narrativa cinematográfica de origem, um grande monólito aparece, sem grandes explicações, em meio a uma sociedade pré-histórica composta por primatas, sugeridos pela história como ancestrais da humanidade. Em um primeiro momento assustados, logo depois os símios de Kubrick passam a contemplar aquele corpo estranho e isso serve de transição para a sociedade futurista projetada pelo cineasta. Uma possível leitura do significado do objeto no filme é sobre o princípio da consciência humana. Em Bluesman, o personagem contempla a prata, já utilizada como metáfora na narrativa para as exclusões causadas pelas relações político-econômicas e, em seguida, se diverte sob o sol. Como efeito transitivo, a cena parece fazer uso tanto da intertextualidade quando da metáfora para propor essa tomada de consciência sobre a negritude.
A inovação do videoclipe de Bluesman pode ser discutida em diversos pontos. Em relação ao formato, a produção foge das lógicas tradicionais da indústria fonográfica ao reunir três diferentes faixas que, juntas, integram e materializam visualmente o álbum como um todo. O modelo utilizado de narrar uma história usando as músicas como plano de fundo, apesar de recorrente, expande as possibilidades e se aproxima de uma estética cinematográfica, com pausas notáveis que incorporam tanto monólogos roteirizados como efeitos sonoros e trilhas que não estão presentes nos discos (como os batuques afro-brasileiros). Além de ser distribuído pelo canal oficial de Baco no YouTube o conteúdo ganhou diversos desdobramentos como, por exemplo, versões reduzidas, fotos dos bastidores e teasers para o Instagram e o Twitter.
Em relação à originalidade, os temas também são abordados de modo a surpreender o espectador, com o uso de diversos recursos como, por exemplo, a quebra de expectativa. É importante ressaltar também a paleta cromática, que subdivide o clipe em atos que parecem se opor – com o uso do contrate entre tons mais escuros e mais claros, a depender do clima que se pretende dar a determinada cena – mas que reunidos constróem o contexto geral da obra.
A qualidade artística do videoclipe Bluesman reforça e amplia a proposta do álbum homônimo de Baco Exú do Blues. A partir de uma fuga que se desconstrói a cada passo que o protagonista dá em direção à sua aula de música são colocados em pauta temas pertinentes, que já integram a obra do rapper, e apresentadas novas camadas interpretativas. Nesse sentido, Bluesman reforça a complexidade e a pluralidade da linguagem do videoclipe, que ao convergir o campo sonoro e audiovisual explora as semelhanças e as idiossincrasias de cada âmbito, contribuindo diretamente para a configuração de uma narrativa singular.
Referências
GOODWIN, A. Dancing in the distraction factory: music television and popular music. Mineápolis: University of Minnesota, 1992.
HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016.
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