Observatório da Qualidade no Audiovisual

Cabeça de Nego

  • Artistas: Karol Conka e Sabotage
  • Álbum: Single
  • Data de lançamento: 2018
  • Gênero: Hip-Hop/Rap
  • Categorias: Indústria e Narrativa/Performance

Por Clara Portella

No ano em que o rapper Sabotage completaria 45 anos de vida, a cantora Karol Conka lançou um videoclipe em homenagem ao ídolo. O cover – que se tornou um dueto – de “Cabeça de Nego” foi produzido e gravado por Boss in Drama e pela dupla Instituto, a mesma que colaborou na versão original. A direção do vídeo ficou por conta de Johnny Araújo e Leandro Lima que, em entrevista ao HuffPost Brasil, afirmaram que “é um clipe extremamente humano e verdadeiro” e que “todos os envolvidos nesse trabalho estavam ali por amor e respeito a tudo que essa história representa”. 

O clipe conta com a participação dos filhos de Sabotage, bem como sua neta, seu amigo de infância e o DJ que o acompanhava, Hadji – mesmo DJ de Karol atualmente. Essas participações serviram para homenagear não somente o Maestro do Canão, mas o lugar que foi sua inspiração e lar durante a vida, a favela do Boqueirão, na zona sul da capital de São Paulo. Leal (2019) contextualiza o videoclipe protagonizado por Karol Conka e explica a importância de dar continuidade ao que Sabotage iniciou naquela comunidade.

Karol faz uma releitura da música de Sabotage “Cabeça de Nego” e revela o espaço da periferia da comunidade do Boqueirão de forma ampla. O olhar de cima para baixo e o movimento interno do entorno desta comunidade contam narrativas de memórias que estão vivas no cotidiano dos nossos estudantes e que dialogam nas formas de resistências no tempo de Sabotage, ou seja, na contemporaneidade os sujeitos da periferia mantém viva a necessidade de se reinventar para sobreviver. (LEAL, 2019, p. 21)

Por isso, a ambientação do videoclipe é tão importante. No início, Karol e Hadji caminham enquanto o DJ conta histórias de Sabotage naquele mesmo local, introduzindo o significado e o motivo da obra que são desdobrados ao longo dos cinco minutos de duração. Apesar do clipe ser inteiramente gravado no Boqueirão, Karol circula por bares, lajes, ruas e um campo de futebol. Todos esses ambientes apresentados fazem alguma homenagem ao rapper, seja em grafite, nome ou fotografia. Além disso, os moradores também estão presentes no tributo, fazendo churrasco, cantando, jogando e dançando enquanto mostram como pode ser a vida no lugar que foi casa de Sabotage por tantos anos.

O primeiro quadro mostra o Boqueirão visto de cima, mas a fotografia do videoclipe acompanha Karol cantando na maior parte do tempo, fazendo parecer um clipe performático se não se considera a simbologia. O restante do vídeo é filmado enquadrando as pessoas que transitam por ele e foca em expressões e corporalidades. O clipe é bem iluminado, dando a sensação de um dia ensolarado e, por isso, as cores utilizadas parecem mais vivas e transmitem a vibe alegre que a produção pretende.

Na edição, os ambientes se alternam também como em um clipe de performance – entre Karol e os moradores do Boqueirão – mas as cenas são intercaladas com filmagens de Sabotage passeando pelo mesmo local do clipe anos atrás. Em uma dessas gravações, há uma das adições externas à música no clipe: uma fala do rapper, que junto à bateria e gritos de uma torcida de futebol, compõem os efeitos sonoros. 

O tema do clipe é claro: uma homenagem a um dos maiores nomes da música brasileira e à comunidade que ele tanto amava. A história que é contada não acontece por meio das cenas interpretadas ou de uma narrativa estruturada e, sim, através da memória dos fãs, amigos e familiares do compositor que fez o rap no Brasil. Karol Conka sempre foi fã de Sabotage e expõe isso desde suas primeiras músicas. A releitura de “Cabeça de Nego” se torna mais que um tributo quando a cantora convida pessoas que fizeram parte da história do ídolo para manter vivo seu legado e uma letra que é tão empoderadora para o povo preto. Nas palavras de Karol Conka, “a música dialoga muito com os dias de hoje, fala que a gente não pode parar no tempo, que por mais que a gente sinta a dor que a vida traz, temos que seguir com muita força”.

Quanto à intertextualidade, podemos citar o documentário sobre o próprio cantor. As cenas em que o mostram andando pelo Boqueirão foram retiradas do filme “Sabotage: Maestro do Canão” (2015), dirigido por Ivan 13P. Em um dos trechos o rapper fala “o rap tem que ter raiz, tá ligado? Não é por nada, não, mas tem ‘uma pá’ de cara cantando rap aí, os ‘cara’ ‘fala’ do sofrimento. Agora eu falo pra você, se eu fosse falar de tanto sofrimento, o meu tempo não dá, olha o meu redor”. Essa é uma das falas mais relembradas de Sabotage, inclusive pela própria Karol, que diz que “Sabotage deixa para a gente o exemplo de resistência, de que a gente precisa falar de sofrimento. Mas, ao mesmo tempo, ele dizia que não tinha tempo de falar de sofrimento o tempo inteiro – ele queria ter forças para pensar soluções também”. 

Além do documentário, o time de futebol que aparece durante o clipe também deve ser mencionado. O Sabotage F.C. é uma liga de futebol amador fundada no Campo Belenense, no Boqueirão. A sede desportiva é coordenada por Tamires Sabotage e Bola, a filha e o amigo de infância de Sabotage (ambos aparecem no videoclipe). Sabotage F.C e Cineclube Sabotage – estampado na camiseta de Sabotinha – lembram os projetos sociais criados com nome do artista que deram continuidade aos trabalhos que ele começou na comunidade.

Os jogadores do time e a bateria tocando aparecem enquanto a letra canta “periferia sofre em vida mas tira um lazer”. Durante o clipe, como já apontado, cenas de festa, churrasco e pessoas dançando aparecem com frequência. Essa abordagem de Karol – a mesma que Sabotage tinha em vida – representa uma favela que é pouco vista em produtos audiovisuais, quebrando o estereótipo de ser um lugar que só tem violência e tráfico, como é mostrado muitas vezes em grandes portais midiáticos. 

Assim como o ídolo, Karol aparece rodeada de crianças – que compõem a maior parte dos figurantes. Isso mostra que, além da letra, o clipe foi uma das formas que a cantora teve de se aproximar do Maestro do Canão. Para Karol, regravar “Cabeça de Nego”, além de reafirmar as palavras do compositor, foi como dar o abraço que nunca pôde. Por isso, a cantora mostra inovação quando transforma o estilo da música, mas mantém os ideais de Sabotage, celebrando o que ele celebrava em um tributo leve e descontraído mas que possui tanta força e sensibilidade.

Tanto a originalidade quanto a qualidade artística podem ser atribuídas ao que falaram os diretores do clipe sobre ser um vídeo verdadeiro e com muito amor dos envolvidos pelo trabalho. O fato de ter reunido tantas pessoas importantes para Sabotage e ser um projeto que Karol Conka idealizou e concretizou torna o videoclipe um produto não só singular, por não haver nenhuma homenagem parecida, mas uma história bem contada estética e sentimentalmente.

Com isso, “Cabeça de Nego” é uma produção que resgata os fãs antigos de Sabotage e introduz novas pessoas ao trabalho incrível que foi feito por ele e é feito, hoje, por Karol Conka. Uma mulher preta que canta sobre a história e a vivência dela enquanto transita por diferentes estilos musicais, exatamente como o ídolo foi.

Referências

D’ÂNGELO, Helô. Karol Conka: ‘Sabotage precisa ser lembrado na história da música brasileira’. Revista Cult: Uol, 4 abr. 2018. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/composicao-de-sabotage-ganha-versao-de-karol-conka/. Acesso em: 2 out. 2020.

LEAL, E. S. Eu sou da favela: letramentos, culturas e identidades em sala de aula. Salvador, 2019. Dissertação de Mestrado – Instituto de Letras, PROFLETRAS, UFBA.

TERTO, Amauri. Karol Conka homenageia Sabotage com nova versão de ‘Cabeça de Nego‘. HuffPost Brasil, 5 abr. 2018. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2018/04/05/karol-conka-homenageia-sabotage-com-nova-versao-de-cabeca-de-nego_a_23403929/. Acesso em: 2 out. 2020.

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