Por Gustavo Furtuoso, Lorena Fontainha e Daiana Sigiliano
A terceira e última etapa da análise sobre Desalma (Globoplay 2020-2022) será focada nos comentários que os telespectadores interagentes fizeram em resposta às publicações dos perfis oficiais da série nas plataformas Facebook, Instagram, Twitter e Youtube. No Twitter também são levantadas publicações feitas pelo público de forma autônoma, já que sua arquitetura informacional permite um processo de busca e extração de dados mais abrangente que as demais redes sociais.
Assim, após as análises da criação audiovisual e das ações de transmidiação, completamos o percurso comunicacional ao refletir sobre os contextos conversacionais gerados pelo público em resposta aos estímulos e lacunas criadas pela série (Borges, Sigiliano, 2021). A relação da quantidade de contextos encontrados em cada plataforma pode ser conferida na tabela abaixo [TABELA 1].
Dois indicadores são usados na análise desses comentários: seu conteúdo e sua relação com a publicação feita pelo oficial da série. Também são observados alguns aspectos que dizem respeito à arquitetura informacional de cada uma dessas plataformas.
Redes como o Youtube, Facebook e Instagram não permitem acesso total às publicações de seus usuários por critérios de assunto ao se buscar termos ou hashtags de indexação. Assim, o levantamento fica limitado exclusivamente aos comentários feitos nas publicações oficiais do Globoplay. Já no Twitter, consegue-se mapear publicações de forma mais ampla, permitindo acessar publicações dos telespectadores interagentes mesmo que não estejam respondendo a uma publicação oficial. Por outro lado, algumas características são pertinentes a todas as redes sociais estudadas, como a simetria/assimetria das conexões, a circulação de informações, a segmentação e a replicabilidade (BORGES et al, 2022).
Youtube
O Youtube tem como características de sua arquitetura informacional a possibilidade de marcação de tempo (a partir do reprodutor do vídeo), a menção ou transcrição de cenas, a utilização de elementos gráficos nas mensagens e a interação entre usuários. Os comentários são exibidos conforme uma hierarquia, na qual aqueles mais curtidos ou respondidos são posicionados em destaque e exibidos antes dos demais. No total, foram levantados 11 contextos conversacionais relacionados à Desalma na macro codificação e 24 na micro codificação [FIGURA 1].
Na plataforma, foi possível notar uma relação entre o conteúdo postado e os comentários do público. Isso se dá, em parte, pela própria característica do Youtube de ser mais próxima de uma plataforma de compartilhamento de vídeos do que uma rede social com foco na interação entre usuários. Assim, muitos contextos conversacionais tratavam de opiniões sobre a série ou expectativas para seu lançamento. Elogios foram recorrentes, tanto mais pontuais como a membros específicos do elenco, tanto aqueles mais gerais, que tratavam da qualidade da série e parabenizaram a iniciativa de se produzir uma obra de horror brasileira. Ponto interessante foi o fato de muitos comentários relacionarem Desalma a séries internacionais, tanto de forma positiva [Figura 2], quanto de forma negativa [Figura 3]. A qualidade técnica e o primor estético prezados pela atração foram pontos que levaram alguns interagentes a ressaltar o nível da produção nacional, que já se equipara a de outros países com maior tradição no gênero. Porém, isso também foi razão de críticas, que alegaram que a série se distanciava de uma identidade brasileira para se adequar a padrões estrangeiros.
Outro aspecto ressaltado pelo público foi a decisão de descentralizar a produção ao ambientar a história no sul do país, utilizando locações menos óbvias e recorrentes, que estão fora do eixo Rio-São Paulo. Comentários relacionam tal decisão com a atmosfera assustadora criada para a série e também com a oportunidade de, com isso, inserir elementos da cultura eslava e das colônias ucranianas que se instalaram no estado do Paraná. A inserção de tais elementos foi notada inclusive por pessoas que vivem na Ucrânia, mobilizando comentários tanto em inglês quanto em ucraniano sobre a série, sejam contendo elogios ou perguntando sobre formas de ter acesso aos episódios [Figura 4].
Por trazer muitos conteúdos relacionados aos bastidores e processos de produção da série, o canal do Globoplay no Youtube reuniu principalmente comentários que também falavam sobre as qualidades observadas na obra, como fotografia, trilha sonora e caracterização dos personagens. Muitas interações eram voltadas diretamente à persona idealizada do Globoplay, que respondia alguns deles, e alguns comentários suscitaram respostas de outros interagentes, tirando dúvidas ou concordando/discordando de seus pontos.
No Facebook, foram identificados 5 contextos conversacionais na macro codificação e 11 na micro codificação [Figura 5].
Os comentários que mais se repetem são relativos a dificuldades com a plataforma Globoplay, seja ao acessar a plataforma em sim ou dificuldades em conseguir assistir determinado conteúdo.. Alguns comentários contam com a resposta da própria plataforma buscando auxiliar o usuário [Figura 6], fato que fortalece com que mais diálogos relacionados sejam abertos.
Foram identificados na filtragem dos comentários mais relevantes algumas críticas sobre a série em si e sua originalidade, comparando sua narrativa e estética com outras produções estrangeiras. Por se tratar de uma produção selo original Globoplay e totalmente brasileira foram também sinalizados a falta de diversidade dos personagens na série e sua narrativa pouco movimentada. Por se tratar de um perfil mais amplo da plataforma os questionamentos na sua maioria se davam de maneira pouco aprofundada. [Figura 7].
No que toca aos comentários de elogios eles se dividem em elogios relativos a série em si e seus elementos técnicos e elogios relativos a qualidade da atuação do seu elenco. Por se tratar de uma série original da Globoplay ambos os pontos trazidos reforçam seu selo de qualidade e primor na produção e direção do elenco. [Figura 8]
Outro ponto interligado aos elogios é o movimento existente de indicação de quem assistiu a série e gostou para algum amigo ou familiar também assistir. Essas marcações podem ser percebidas principalmente nas postagens que contêm vídeos de trailer e teaser da série, por apresentarem um apanhado geral da narrativa. Por fim, foram mapeados pedidos de outras produções na plataforma e da própria renovação de temporadas de Desalma. Tal movimento pode ser percebido em conjunto aos comentários de maratona, de como a série foi consumida de forma rápida e agora o público necessita de mais episódios [Figura 9].
De forma geral compreende-se que o perfil do Facebook da Globoplay foi utilizado muito mais como canal para contato direto com a plataforma do que um espaço de troca de informações e teorias sobre a série. Os comentários mais recorrentes são relativos a pedidos gerais de séries e temporadas ou solicitação de ajuda, com pouco foi comentado e discutido em profundidade sobre a série em si. Nos casos de tais comentários específicos sobre Desalma foram pontuações mais enxutas, expressando de forma rápida seu contentamento com o conteúdo ou seu descontentamento.
A partir das publicações relacionadas a Desalma no Instagram do Globoplay, foram identificados 9 contextos conversacionais na macro codificação e 14 contextos na microcodificação [FIGURA 10]. No geral, os comentários dos telespectadores interagentes são direcionados ao próprio perfil do Globoplay ou a outros perfis de terceiros, em interações que são mais bilaterais do que conversas amplas e coletivas.
No perfil oficial do Globoplay no Instagram, nota-se uma relação menor entre os conteúdos veiculados e os comentários dos telespectadores interagentes. Pela própria arquitetura informacional da rede social, que organiza as postagens em um feed ou linha do tempo, é bastante recorrente que pessoas aproveitem de qualquer publicação para tirarem dúvidas, fazerem sugestões ou reclamarem sobre o serviço da plataforma de streaming. Muitos pedidos de adições ao catálogo, especialmente de obras do Grupo Globo mas também de produções internacionais, foram inseridos em respostas aos mais diversos tipos de conteúdo sobre Desalma [Figura 11].
Alguns tipos de publicação, como as que apresentam personagens e elenco, atraíam mais comentários direcionados e pertinentes ao universo ficcional ou pelo menos à produção como um todo. A atriz Cássia Kis, por exemplo, teve muitas mensagens de telespectadores interagentes, com algumas pessoas, inclusive, marcando seu perfil oficial no Instagram na publicação. Outros contextos também foram notados, como a prática de binge watching, expressões de medo direcionadas ao conteúdo da série e relações estéticas entre Desalma e séries estadunidenses ou novelas da faixa das dezoito horas (novelas das seis).
O fato de o perfil do Globoplay servir como uma vitrine para todo o catálogo da plataforma pode ter impactado na maneira como os telespectadores interagentes se manifestaram nos comentários. Mesmo com muitos tratando de tópicos relacionados à Desalma, foram mais numerosas as mensagens direcionadas ao Globoplay para solicitar produções ou reclamar do serviço, chegando ao ponto de se naturalizar tal ambiente como um canal de atendimento sobre tais assuntos, mesmo que essa não seja uma prática da empresa [Figura 12].
Instagram específico
Foram mapeadas 118 publicações, onde foram levantados 4 contextos conversacionais relacionados à Desalma na macro codificação e 17 na micro codificação [Figura 13]. Foram identificados e analisados os comentários classificados como mais relevantes na ordem de exibição pelo Instagram.
O maior volume dos comentários se concentrou em relatar a sua experiência pessoal com a série, seja por meio de elogios, críticas, comparações, sensação despertada de medo ou até de orgulho regional. Um dos destaques percebidos quando se olha para tal aspecto é a de comentários de moradores locais do sul do país exaltando a escolha das locações de filmagem [Figura 14]. Tal representatividade serviu de fio condutor para que a série despertasse um maior interesse e até conseguisse alcançar nichos que talvez não fossem os pretendidos inicialmente.
O formato de consumo da produção fica evidente nos comentários que destacam os movimentos de maratona, marcações de amigos e familiares para indicação de conhecimento da série e principalmente nas perguntas que sinalizam curiosidades [Figura 15]. Percebe-se que diferentemente de outras plataformas o perfil específico conseguiu criar um laço maior onde por meio dos comentários elementos da série são comentados, rememorados e principalmente deseja-se saber mais sobre suas especificidades.
Apesar de recente no catálogo de originais do Globoplay a série Desalma foi cancelada no final da segunda temporada, portanto, ao se observar os comentários do perfil específico é possível identificar nas postagens mais recentes movimentos pedindo para que a série volte e que seja produzida mais uma temporada. [Figura 16]. Ali, o expectador interagente viu uma oportunidade de questionar de forma mais direta a decisão do streaming e mostrar de forma mais veemente seu descontentamento com tal posição.
Por fim, nota-se que o elenco da série foi muito elogiado, tanto na atuação de rostos mais conhecidos em outras produções do Grupo Globo como Claudia Abreu (Ignes), Maria Ribeiro (Giovana), Malu Galli (Mykhaila) e Cássia Kis (Haia) como de atores mais jovens como Anna Melo (Halyna) e João Pedro Azevedo (Anatoli). A expressividade foi um ponto destacado, principalmente nas cenas de horror e nos momentos de troca de identidade dos personagens [Figura 17]. Pelas próprias postagens marcarem os perfis pessoais dos atores e atrizes de Desalma o público pôde ter esse contato mais facilitado e até criar uma ponte para que sejam conhecidos antigos e futuros trabalhos dos profissionais.
Alguns descontentamentos se repetem nos pontos tocados em outras plataformas, como a falta de representatividade trabalhada pela série e o baixo grau de originalidade da narrativa e estética. Quando as críticas são explicitadas nota-se um aprofundamento maior no que motivou tal comentário, trazendo, por exemplo, o debate das próprias lógicas do universo ficcional de Desalma [Figura 18].
Em síntese, por se tratar de um perfil específico criado unicamente para a explorar o universo da série é possível perceber uma profundidade e desenvolvimento maior dos comentários se comparado com outras contas.
Além de trazer pontualmente uma sugestão são trabalhadas, por exemplo teorias e narrativas alternativas para a produção [Figura 19]. Tal fato favorece tanto que os expectadores interagentes se sintam mais próximos dos tomadores de decisão da produção como também criem laços próprios com outros espectadores interagentes.
O protocolo de abordagem de monitoramento, extração e codificação dos comentários publicados no X/Twitter abarcou a primeira semana de lançamento de Desalma. Neste sentido, é importante ressaltar que a coleta dos metadados é pautada pelas interferências associadas a recolha de dados retroativos e a nova política de governança da rede social. A partir da definição das indexações e palavras-chaves (relacionadas ao universo ficcional da série e as ações de transmidiação do Globoplay) e da extração dos tweets, foram codificados 6.211 publicações no Twitter, sendo identificados 5 contextos conversacionais na macrocodificação e 7 na microcodificação.
Os resultados da codificação de Desalma reforçam os contextos conversacionais discutidos em outras análises da experiência estética que compõem este projeto. A memória afetiva dos telespectadores interagentes foi observada nos tweets sobre as atrizes Cássia Kiss e Cláudia Abreu. As publicações relembravam outras personagens interpretadas pelas artistas e exploravam GIFs de telenovelas que já foram ao ar na TV Globo para ilustrarem o contexto dos comentários. Entre as personagens mais lembradas pelo público está Chayene, de Cheias de Charme (2012) e Laura, de Celebridade (2003 – 2004). Entretanto, é importante ressaltar que o resgate feito pelos telespectadores interagentes no Twitter não estabelecia uma correlação entre os personagens, considerando, por exemplo, o gênero de Desalma. Os tweets lembravam das tramas em tom nostálgico, valorizando o seu repertório midiático.
Assim como em Samantha! Eu, a avó e a boi e Boca a Boca o público elogiou a qualidade estética da atração e as atuações. As publicações reclamam também da falta de continuidade das séries originais do Globoplay, neste sentido, o público contestava quais seriam os pontos norteadores para as decisões mercadológicas do Grupo Globo.
O consumo em cadeia, que integra ações do Globoplay, foi observado nos comentários compartilhados pelos telespectadores interagentes. Neste sentido, ao repercutir os acontecimentos narrativos de Desalma, o público citava outras séries produzidas pelo serviço de streaming. A correlação com outros programas nacionais apresenta um diálogo direto com o contexto conversacional ligado à valorização das atrações brasileiras. Deste modo, os tweets, mesmo que indiretamente, realizavam uma espécie de curadoria de tramas, ressaltando a qualidade e a pertinência das histórias.
Por fim, a macrocodificação relacionada a TV estadunidense vai ao encontro do repertório midiático dos telespectadores interagentes. Ao repercutir os desdobramentos da produção do Globoplay o público correlacionava com outras séries que exploram o gênero do terror e do suspense tais como American Horror Stories (Hulu, FX, 2021 – atual) e The Walking Dead (AMC, 2010 – 2022)
Dimensões da competência midiática
Concluímos, então, a análise da experiência estética do público com a identificação das dimensões da competência midiática (Ferrés, Piscitelli, 2015) em operação nos conteúdos postados pelos telespectadores interagentes no Twitter ao comentar a série.
Ao se observar a obra no que toca a dimensão estética é possível perceber apontamentos relacionando a série a outras produções internacionais como Stranger Things (Netflix) e Dark (Netflix). Elementos visuais e sonoros podem ser identificados em comum, como o uso de tons mais frios em momentos sombrios, trilha sonora de suspense e fotografia direcionada para provocar sensações intensas em quem assiste. O repertório audiovisual dos telespectadores interagentes é destacado, uma vez que eles observam tal semelhança e a pontuam nos seus comentários. É interessante perceber que tal afinidade estética em alguns momentos é indicada como fator reforçador da qualidade enquanto em outros é algo que é criticado, pendendo para uma possível baixa na criatividade.
Por sua vez, a dimensão ideologia e valores se tornam presentes na narrativa da série. Ao abordar o tema de imigração e construção da identidade brasileira a série destaca a importância das colônias ucranianas no sul do país, ponto que é pouco explorado na ficção nacional. Ao trabalhar esse ponto, a produção foi muito questionada pelo público por trazer uma baixa representatividade do Brasil miscigenado, focando apenas em personagens brancos e sendo ambientada em uma região com características européias (clima, paisagens e tradições). A dimensão linguagem se faz presente quando observamos a reverberação dos conteúdos relativos à série, principalmente no Twitter. São gerados novos significados em formas de meme e são destacados pontos da cultura ucraniana, como o sotaque dos personagens, expressões utilizadas e pronúncias.
A dimensão processos de produção e difusão pode ser identificada em publicações que ressaltaram semelhanças entre Desalma e séries internacionais e também na percepção sobre o cenário do mercado de obras de horror, pouco desenvolvido no país, com parabenizações ao Globoplay com relação à iniciativa. Com relação a esse aspecto, houve telespectadores interagentes que compartilhavam suas experiências de assombro e medo ao assistir os episódios, com alguns comentando que só poderiam ver a série acompanhados ou durante o dia. Tais percepções sobre a maneira com que se relacionam com a atração e as cadeias de comentários nas quais se expressaram são indícios relacionados à dimensão processos de interação.
Por fim, notam-se habilidades e conhecimentos que dizem respeito à dimensão tecnologia na forma como o uso das hashtags, marcação de usuários, compartilhamento de tweets e diversos tipos de mídia e, principalmente, a adequação de tais ferramentas aos objetivos comunicativos de cada telespectador interagente ao interagir com a própria plataforma ou com outras pessoas na rede social.
Referências
BORGES, G. et al. A qualidade e a competência midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal. Coimbra: Grácio Editor, 2022.
BORGES, G.; SIGILIANO, D. Qualidade Audiovisual e Competência Midiática: proposta teórico- metodológica de análise de séries ficcionais. Encontro Anual da Compós, XXX, São Paulo, Anais. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3Bb8OsL>. Acesso em: 18 dez. 2023.
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