Com direção de Daniel Lieff e Tocha Alves, montagem de Rodrigo Menecucci, e roteiro de Eduardo Benaim e Jorge Saad, “Deus e o Diabo em Cima da Muralha” (2006), de 54 minutos, revela histórias e acontecimentos do dia a dia do que foi o maior presídio da América Latina, sob as perspectivas dos funcionários. Com o patrocínio da UNIP (Universidade Paulista), a ideia trabalhada no documentário é a do médico e escritor Drauzio Varella, também narrador da obra, que por 13 anos vivenciou a rotina do Carandiru como médico voluntário.
Finalizada em setembro de 1956, a Casa de Detenção de São Paulo registrou inúmeras rebeliões e foi palco para o massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, que resultou na morte de 111 presos por uma ação da Polícia Militar. Em 2002, durante o governo de Geraldo Alckmin, o complexo foi desativado e em partes demolido, com o argumento de que a sua reforma seria economicamente inviável. O documentário foi gravado naquele ano, dias antes da implosão dos pavilhões 6, 8 e 9. No seu lançamento, em 2006, foi exibido no “É Tudo Verdade”, Festival Internacional de Documentários, e ganhou o prêmio de melhor média metragem brasileiro na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
A voz do documentário e os personagens
Nesta obra, o cotidiano da penitenciária se dá pelo olhar dos poucos funcionários que dedicaram anos de suas vidas a controlar cerca de 10 mil presos todos os dias. A voz off de Drauzio Varella narra sobre a estrutura de cada pavilhão de modo a informar o espectador sobre o funcionamento da cadeia e sobre o ambiente de medo e insegurança vivido não só pelos funcionários, mas por muitos presos que exigiam que fossem transferidos dali para outras penitenciárias. Intercalando as histórias contadas com as informações narradas, as vozes do documentário aproximam o espectador da obra através dos relatos que sensibilizam e dos conteúdos que aguçam a curiosidade.
Pequenos textos informativos ou de identificação dos personagens aparecem na tela, elucidando ainda mais o que é narrado e contribuindo para a identidade dos personagens que se deseja transmitir: a de que os carcereiros são homens simples e trabalhadores. Isso se mostra, por exemplo, com o uso do pronome demonstrativo informal “seu” no lugar de “senhor”, antes dos nomes dos funcionários. Tal construção da identidade dos personagens acaba por promover no espectador, indiretamente, uma quebra de estereótipos, pois como afirma o próprio Drauzio Varella em entrevista, muitas vezes as pessoas confundem quem é o preso e quem é o trabalhador da prisão.
Montagem
A disposição de algumas cenas demarcadas com o local, a data e uma determinada quantidade de dias nos mostra que a montagem do filme parece seguir minimamente uma ordem cronológica linear das gravações, realizadas a partir de 9 de setembro de 2002 (como aparece em uma das primeiras cenas do filme), 90 dias antes da implosão dos pavilhões 6, 8 e 9. Apesar da linearidade do uso das gravações feitas para o filme, materiais antigos são retomados para introduzir aspectos necessários para o fio condutor da narrativa.
Arquivos de canais de televisão e imagens de registro de dentro da cadeia são utilizados para fazerem uma retrospectiva do assunto que está sendo ou será mostrado ao espectador. Essas imagens têm o tempo bem demarcado, assim como as feitas para o filme, e se inserem na narrativa também com seus respectivos números de dias. Entretanto, a princípio essas descrições podem se mostrar uma incógnita para o espectador, que pode não entender do que se tratam esses números que acompanham a demarcação do espaço e do tempo das cenas.
É somente ao final do documentário que fica mais evidente essa alusão da “contagem regressiva” de dias para o fim da cadeia, quando aos 41 minutos aparece na tela a informação: “No dia 16 de setembro de 2002, a Detenção amanheceu vazia. Seus últimos presos foram transferidos no dia anterior. 53 dias depois…”. Logo em seguida, a descrição mostrada anuncia “00 dias” para a cena de Seu Valdemar, na sua casa, se preparando para assistir à implosão do Carandiru. Apesar de ter ocorrido no dia 8 de dezembro de 2002, e não no dia 9, como aparece no filme, a cena que se segue é realmente a da implosão dos pavilhões, como se a queda dos prédios colocasse fim às histórias ali vividas, e que foram relatadas a nós até esse momento do filme.
Os depoimentos dos funcionários são dados de forma mais livres, sem perguntas bem definidas que antecedem seus relatos. Na maior parte do tempo se dão em locais que ambientam o espectador sobre o que está sendo conversado, seja caminhando pelos pavilhões ou mostrando características dos mesmos. Apesar do documentário não mostrar indagações sendo feitas aos funcionários, percebe-se que o médico Drauzio Varella, sempre com muita intimidade com os outros personagens, conduz a narrativa da história ao começar a contar algo e dar abertura para que eles continuem a falar sobre o assunto.
É o que acontece aos 35 minutos, numa cena posterior às imagens de arquivo da CNN sobre o massacre do Carandiru, quando alguns funcionários estão reunidos, sentados numa sala, e conversam sobre situações vividas por eles dentro da cadeia. “Eu acho que uma das histórias mais heroicas aqui, que mostra bem como o funcionário da detenção trabalhava, é o que aconteceu no pavilhão 8 naquele momento. Quer dizer, como é que…”, inicia Varella a sua fala, quando é interrompido por um dos funcionários que começa a falar sobre o dia da rebelião de 2 de outubro de 1992. Na sequência, outro funcionário continua o relato do colega, falando sobre uma experiência vivida por eles em 1985, no ato de outra rebelião.
Hegemonia x contra-hegemonia
Em relação às construções midiáticas tradicionais, o discurso do filme se situa numa posição contra-hegemônica quando, em certa medida, humaniza os presos ao atribuir-lhes qualidades, mesmo sem ouvi-los. Em 10:43, por exemplo, Rita Cadillac, cantora e dançarina, madrinha do presídio, afirma ter aprendido valores com os presos: “Olha, com eles eu aprendi muita coisa: respeito. Eu aprendi respeito, eu aprendi a lei deles, que o que vale é uma palavra”, afirma.
Mais à frente, em 29:43, Varella reitera essa opinião, contrapondo uma qualidade dos presos e um defeito do Estado: “Um lugar que eu senti medo na cadeia foi essa salinha aqui. Não medo de desrespeito, nada disso, porque isso nunca aconteceu. Mas medo de tuberculose, porque é muito fechado. Dia de calor aqui, sem vento, ficava completamente abafado”, disse o médico, contribuindo para essa posição contrária a das grandes mídias que comumente demoniza os presidiários ao retirar deles todo o sentimento de pessoa humana e contexto social que os envolve.
Falar das péssimas condições de infraestrutura e saúde do Carandiru e, na sequência, aos 32 minutos, apresentar e enaltecer as “gambiarras” feitas pelos presos para a realização das suas necessidades básicas, também aponta para a falta de investimento nas cadeias, para o abandono e o descaso do governo com as penitenciárias, instituições pensadas para recuperar as pessoas.
Aos 38 minutos, mais uma experiência de pavor e medo é contada por um funcionário, e mais uma vez há uma crítica implícita ao Estado, na menção a um aspecto pouco praticado por ele: “Naquele dia eu vi na minha frente uma média de 80 facas. E não podia nem correr nem pra fora e nem pra dentro. Se eu vou pra lá o bicho pega, se eu vou pra cá o bicho pega. A única coisa que valeu foi o diálogo. Só o diálogo que valeu”. Ao reiterar que o diálogo é o único método (ou o mais eficiente de todos) na lida com as pessoas presas, o documentário reforça, implicitamente, que a violência não resolve.
Na última cena do filme, os funcionários do Carandiru se reúnem, longe das autoridades, para assistirem à implosão de parte do lugar para o qual dedicaram longos anos das suas vidas e mantiveram-se firmes para controlar quem o Estado não dava importância. “Uma sensação esquisita, bem esquisita”, diz um deles, emocionado, resumindo o que pra ele simbolizou a demolição dos pavilhões 6, 8 e 9. Para alguns, tratou-se do fim de um ciclo desastroso do sistema carcerário no Brasil; para outros, de um espetáculo político midiático que não significou a reflexão e nem a reformulação desse sistema; e, para outros, o fim de “15 anos de trabalho em 7 segundos de duração”.
Assista ao documentário: https://www.youtube.com/watch?v=VbTMV1-0BTk
Por Luma Perobeli
Comentar