Observatório da Qualidade no Audiovisual

Estamira e a loucura dos sábios

Estamira (2005) é um filme dirigido por Marcos Prado e produzido por José Padilha. O diretor buscava realizar um documentário sobre a transformação do lixão Jardim Gramacho, situado na região da Grande Rio, em um aterro sanitário. No entanto, dentre tantos resíduos rejeitados pela sociedade de consumo, Marcos Prado encontrou Estamira: uma senhora que vivia e trabalhava nas imediações do local e prometeu ao espectador a revelação da verdade. Assim, antes mesmo de ser filmado, o documentário teria como foco principal a vida e história desta mulher.

Estamira, já idosa, apresenta quadros crônicos comuns aos portadores de transtornos mentais – no filme, identificam-na como esquizofrênica –. Deste modo, as alucinações proféticas proferidas pela protagonista ao longo da obra remetem, concomitantemente, às verdades provenientes dos devaneios e à um surto psicótico genericamente comum ao portador de algum transtorno.

Durante seus acessos raivosos, Estamira blasfema Deus, a sociedade domada pelo controle social e governamental, pela medicação alienante e pelas tentativas de silencia-la. Fatídicos, seus discursos são, como ela fez questão de afirmar, portadores de uma verdade que teríamos, enfim, acesso.

Neste ímpeto, é possível compreender, ainda que de forma generalizante, o modo com o qual seu discurso se fortalece diante do espectador: sob as sombras da loucura, suas performances são capazes de confundir as fronteiras do real e do imaginário; do profético e da desrazão.

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Da Antiguidade à modernidade clássica, a loucura perpassou diversos discursos: o portador dos transtornos mentais, que por cerca 400 anos foi enquadrado como criminoso cujo destino central era sempre o cárcere, travestido de instituição psiquiátrica com modelo manicomial. No entanto, as aparições literárias da loucura – dos textos gregos à Shakespeare e Cervantes, referem-se à um outro tipo de louco: o profeta pouco ouvido, que não porta transtornos, mas devaneios que elucidam e, dubiamente, dão razão, eloquência e respiro ao mundo dos sãos.

É a partir desta particularidade, talvez, que o filme tenha ganhado prestígio: a possibilidade da contemplação pela sabedoria e pela sobriedade de sua fala ao invés da piedade trágica, como é comum nas demais produções (ficcionais ou não) que abordam as sociedades marginalizadas.

Sob o olhar de Prado, Estamira surge enquanto potência: a personagem parece dominar a câmera e a sucessão dos planos tende a dar voz às suas indignações. A surpresa à qual o realizador se propôs ao promover o encontro do espectador com a personagem parece difundir exatamente o que Estamira entregou à equipe de filmagem: um crer duvidoso que, naquele momento e naquele caso específico, pode ser capaz de romper ou senão alargar estereótipos que cercam a loucura e a exclusão dos sujeitos que se encontram nas bordas da sociedade.

A personagem, desta maneira, convida o espectador para um engajamento afetivo e reflexivo; permitindo o rompimento com tais tradicionais processos estéticos que categorizam as vítimas das câmeras filmográficas. Autora de sua própria história, Estamira faz um convite certeiro: o de conhecer a verdade.

“A minha missão, além de eu ser a Estamira, é revelar, é, a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem.”

Por Iago Rezende

 

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