Observatório da Qualidade no Audiovisual

Eu, a Vó e a Boi: análise dos processos de circulação

Por Gustavo Furtuoso 

Após a análise dos processos de produção de Eu, a Vó e a Boi (Globoplay, 2019), agora será feita a análise dos processos de circulação da série, a partir das publicações nos perfis oficiais da Netflix no Facebook, Instagram, Youtube e Twitter. A proposta teórico-metodológica utilizada foi proposta por Borges e Sigiliano (2021) e está descrita e exemplificada na obra “A qualidade e a competência midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal” (Borges et al, 2022), disponível gratuitamente em formato digital neste link

No total, foram levantadas 49 publicações referentes à obra [Tabela 1]. Essas publicações foram sistematizadas em uma tabela e classificadas manualmente de acordo com as categorias sugeridas por Fechine (2013) para ações de transmidiação.  Pode-se adiantar que não foram elaborados conteúdos de expansão, ou seja, nenhuma das postagens feitas pela Globoplay  buscava apresentar novas camadas do universo ficcional criado para a série ou de seus personagens. Todas as publicações foram classificadas como de propagação, ou seja, traziam informações contextuais sobre a série ou materiais promocionais.

Tabela 1 – Levantamento de postagens relacionadas à Eu, a Vó e a Boi

Eu, a Vó e a Boi estreou na Globoplay em 29 de novembro de 2019 e, posteriormente, foi levada às telas da televisão pela Rede Globo em 22 de novembro de 2021. Adaptada de uma thread do Twitter do influenciador Eduardo Hanzo, a trama conta a história de duas vizinhas que se odeiam e que sempre moraram uma de frente para a outra. Miguel Falabella entrou para o projeto como roteirista e conta que, a partir do material fornecido pela história de Hanzo, viu a oportunidade para tratar de questões sociais que o Brasil vivia no momento. “Essa história chegou para mim no momento em que o país estava mais polarizado e com o ódio muito cultivado. Então eu liguei as duas coisas e fiz uma série que tem muito ódio e rancor”, afirma (Bittencourt, 2021, On-line). Como resultado, foi construído um cenário acinzentado para representar uma rua da periferia carioca com uma grande vala aberta, símbolo materializado de como o rancor entre as personagens afetava todos a sua volta. 

A partir de uma simples briga entre vizinhas, portanto, construiu-se uma alegoria para tratar da polarização e da intolerância, temas que foram incorporados não só à narrativa mas também à proposta estética da atração. Outra decisão tomada pela produção foi a de apresentar tal universo a partir da narração em primeira pessoa de Robleu (Daniel Rangel), com quebra da quarta parede. O diretor artístico Paulo Silvestrini relata que a intenção com tal recurso foi de flertar com a linguagem dos videogames. “Eu comecei a enxergar o público como uma figura participante e invisível do nosso universo. É como se eu desse um joystick e ele criasse um avatar invisível dele para acompanhar a história”, explica (Bittencourt, 2021, On-line). A câmera, na série, nos convida a uma posição de observadores daquele microcosmos, conhecendo seus diversos personagens que frequentemente trazem às ruas seus conflitos e desavenças. 

Youtube

No Youtube da Globoplay, dentro do período do levantamento, foi feita apenas uma publicação no dia 29 de novembro de 2019, data em que a obra foi disponibilizada na plataforma de streaming [Figura 1].

O vídeo publicado corresponde ao trailer da temporada e apresenta, em 30 segundos, as duas avós dos protagonistas a partir de sua narração em voice over. O trailer também ressalta a origem da trama e a relacionada à thread que viralizou no Twitter. A ação foi classificada enquanto conteúdo de propagação reformatado com função de divulgação, aproveitando cenas dos próprios episódios para gerar interesse no público sobre a estreia da atração. O trailer é uma das ações mais comuns no lançamento de qualquer série, ao ponto de ser uma estratégia quase protocolar. Destaca-se que o mesmo conteúdo também foi publicado nas outras redes sociais, mantendo formato horizontal. 

Facebook

No perfil oficial da Globoplay no Facebook foram feitas 10 postagens, sendo duas delas anteriores à data de lançamento, e as demais feitas ao longo de um período de pouco mais de um mês [Figura 2]. 

A única publicação do tipo reformatada, ou seja, que de fato trechos de cenas dos personagens para chamar atenção do público, foi o trailer da temporada, já mencionado anteriormente. No mais, todas as postagens foram ações informativas promocionais. que traziam fatos não focados no mundo diegético, mas sim nos profissionais envolvidos e processos de realização da obra (Fechine, 2013). As figuras de Arlete Sales, Vera Holtz e Daniel Rangel, trio protagonista de Eu, a Vó e a Boi, foram usadas em diversos vídeos em que respondem sobre suas preferências pessoais, em dicotomias como lápis ou lapiseira e coxinha ou bolinha de queijo [Figura 3]. Esses vídeos, curtos, também foram postados no Instagram. No Facebook, foi usada uma moldura lateral para transformar o aspecto quadrado num formato retângular, a ação cumpre a função de divulgação

Com as mesmas características de enquadramento e formato de vídeo, foi também criada uma ação promocional de apresentação de personagens, em que os membros do elenco têm 140 caracteres para descrever os moradores da fictícia rua Tudor Afogado, onde se passa a história [Figura 4]. A iniciativa incorpora a limitação textual característica do Twitter – de onde surgiu a ideia da trama – ao mesmo tempo que destaca os principais nomes que fazem parte da atração, permitindo a identificação do público.

A Globoplay produziu ainda um vídeo de bastidores, mostrando cenas das gravações e relatos de alguns profissionais envolvidos. O vídeo de dois minutos traz alguns trechos da série intercalados com essas falas, que apresentam a dinâmica entre as duas vizinhas. A legenda da postagem foi “A maior rivalidade que a Internet já viu merece mais de 140 caracteres!”, destacando a adaptação da história que Hanzo publicou no Twitter para uma obra audiovisual de ficção seriada. Esta ação foi divulgada antes mesmo do trailer, criando expectativa para a estreia da série a partir de informações da produção e, não exatamente, sobre a história narrada. 

Instagram

Também foram encontradas 10 publicações de Eu, a Vó e a Boi no Instagram da Globoplay, com 5 delas sendo feitas até a data de estreia da série [Figura 5]. As demais foram divulgadas num período de cinco meses, com a última datando de abril de 2020. O trailer da temporada também foi divulgado na rede social, em formato horizontal, como no Youtube, sendo a única peça reformatada.

Os outros conteúdos foram do tipo informativo, subdividindo-se em cinco categorias; quote/citação, crossover, bastidores, divulgação e apresentação de personagens. O vídeo de bastidores é o mesmo mencionado na análise do Facebook, enquanto o conteúdo de divulgação foi o anúncio da presença de parte do elenco na edição de 2019 da convenção  CCXP. Como apresentação de personagens, houve uma publicação que replicou uma espécie de thread do Twitter a partir do recurso de carrossel do Instagram, em que cada uma das páginas funcionou como um tweet [Figura 6]. Cada tela trazia uma foto e uma descrição de quem era aquela pessoa a partir da perspectiva de Roblou. O texto vinha com uma moldura que se assemelha à interface do microblog, tentando novamente associar a produção com a thread que lhe deu origem.

Duas publicações davam destaque ao personagem interpretado por Alessandra Maestrini. Seu Rocha recebeu uma postagem que fazia citação de uma fala sua no primeiro episódio da série [Figura 7]. Além de ajudar o público a ter mais noção de quem é aquele personagem, o perfil da Globoplay aproveitou o conteúdo da frase para perguntar aos telespectadores se eram Time Vó ou Time Boi, num convite mais direto ao engajamento, mesmo que por um comentário simples. A outra publicação com sua presença foi do tipo crossover, e trazia outra personagem de Alessandra, a empregada doméstica Bozena, de Toma Lá Dá Cá, numa tentativa de divulgar as duas obras em seu catálogo e de fazer o público associar as memórias da personagem anterior, que foi marcante na comédia televisiva brasileira recente, com a nova atração, visto que ambas são assinadas por Falabella. 

Twitter

No Twitter da Globoplay foram postados 28 conteúdos de Eu, a Vó e a Boi [Figura 9]. Diferentemente das demais redes sociais, no microblog houve maior número de publicações de reformatadas, além de apenas o trailer da temporada. 

Enquanto o trailer corresponde à única publicação de antecipação, as demais foram classificadas enquanto conteúdos de recuperação, pois aproveitam cenas de personagens já apresentados ao público para criar memes ou questionar qual das peripécias de Yolanda e Turandot os telespectadores interagentes acharam mais absurda – numa enquete que se configura como uma publicação do tipo participação. Esses memes criados a partir dos personagens da série são gifs curtos que mostram pequenas cenas do programa, porém a legenda subverte seu sentido original para um efeito cômico ou buscando identificação do público [Figura 10]. Apesar de não terem muito contexto narrativo, quem assistiu a obra consegue localizar a ação apresentada e perceber a nova construção de sentido proposta. Esse tipo de publicação foi repetida algumas vezes no Twitter e permite que o conteúdo se espalhe pela rede com mais facilidade, ao passo que a hashtag #EuaVoeaBoi divulga a produção.

Já as ações de cunho informativo estão subdivididas em três categorias: crossover, bastidores e divulgação. A publicação de crossover também fez uso de um gif e, assim como no Instagram, foi feita uma articulação da personagem de Alessandra Maestrini na série com o papel que interpretava em Toma Lá Dá Cá (2007), ambas produções assinadas por Miguel Falabella. O GIF, apesar de não ter faixa de áudio, traz um pequeno trecho de cena em que Bozena canta, criando uma associação com Seu Rocha, que canta ópera em Eu, a Vó e a Boi, e recuperando uma memória possivelmente presente no repertório do público. 

Entre os conteúdos categorizados como bastidores, houve o vídeo com relatos de integrantes do elenco e da produção já mencionado anteriormente e que também esteve presente no Instagram e Facebook, e uma thread de fotos. O tweet inicial chamava atenção para os “bastidores da thread mais aclamada” do site e trazia, em cada tweet subsequente, uma nova foto com membros do elenco junto dos demais técnicos e profissionais. A ação divulga tanto os atores e atrizes presentes na obra quanto estimula a lembrança da história original que foi descoberta da mesma forma na rede social. 

Já os conteúdos com função de divulgação trazem algumas das ações já veiculadas em outras redes sociais, como as perguntas e respostas com o elenco. O que foi notado de diferente para o Twitter foi o diálogo estabelecido entre o perfil da Globoplay e os perfis GShow e TV Globo. Alguns tweets eram reportagens de publicações desses outros perfis com um comentário chamando para conhecer ou maratonar a série na plataforma de streaming [Figura 12]. Assim, entrevistas do elenco em programas de televisão ou peças promocionais divulgadas em outros ambientes eram incorporadas pelo Globoplay para criar um fluxo de interesse. Das três ocorrências do tipo, duas incentivaram a prática do binge watching. 

Parâmetros de qualidade da transmidiação

De modo geral, não foi constatada clareza na proposta comunicativa, apenas uma intenção nítida de relacionar a obra à thread do Twitter na qual foi inspirada. Essa relação se deu a partir das legendas, que chamavam a atenção para o fato, da incorporação da estética e dinâmicas do microblogging às peças de divulgação e da criação de uma thread de bastidores que mimetiza a origem da história, fechando um ciclo em que a obra ficcional retoma a prática que inspirou sua criação. Para além disso, a ausência de conteúdos de expansão limita a possibilidade de engajar os telespectadores interagentes com a obra, não sendo constatada também uma expansão do universo ficcional nas ações de transmidiação propostas, visto que os conteúdos foram produzidos principalmente com os atores e atrizes dando entrevistas ou participando de brincadeiras.

Foi feita apenas uma publicação com  solicitação de participação ativa do público (enquete no Twitter sobre as peripécias de Turandot e Boi). No mais, foram feitos pequenos estímulos através das legendas, como indagar se as pessoas eram time Vó ou time Boi, mas essa participação era limitada a comentários que escolhiam uma das opções, geralmente com uso de hashtags. 

Já com relação ao diálogo entre plataformas, foi percebida no Twitter uma tentativa de conectar as peças de divulgação com outras marcas do grupo Globo, incluindo programas da TV aberta. Isso permite que a obra ganhe repercussão em diferentes esferas, chegando a um público maior do que apenas aqueles que assinam ou acompanham as produções da plataforma de streaming. A prática do binge watching também foi incentivada em publicações que traziam links para a própria Globoplay

A fins conclusivos, o que se percebe nas ações de transmidiação de Eu, a Vó e a Boi é que não houve um intuito de desdobrar elementos narrativos pertinentes à série em seu processo divulgação, privilegiando a história original da thread de Hanzo e associações entre o elenco e essas figuras já conhecidas do público. A obra apresentava grande potencial para ações que convidassem o público a adentrar seu universo ficcional e as discussões que foram propostas a partir dele, principalmente quando a alegoria proposta era tão central ao ponto de estar mesclada não só ao enredo mas também à forma da série. As publicações veiculadas em perfis oficiais não exploraram a riqueza das personagens nem a camada crítica que fazia um retrato da separação política vivida no Brasil. Ressalta-se ainda que muitos conteúdos foram replicados em diferentes redes sociais, sem uma devida adaptação às suas especificidades. 

A escolha por trazer apenas conteúdos de propagação, com assuntos triviais,  e usando as figuras dos atores, ao invés das dos personagens, esvaziaram a profundidade de discussão almejada pela série, resultando em respostas do público que nem tocaram nos aspectos sociais e representacionais de Eu, a Vó e a Boi, como será tratado na próxima etapa de análise. O próximo texto, que trata da conversação a partir dos comentários nessas publicações, irá trazer algumas pistas sobre a maneira como a série e as peças de divulgação foram recebidas pelos telespectadores interagentes e as possíveis relações de seus comentários e criações com as escolhas tomadas pela Globoplay. 

 

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