Como dar visibilidade àqueles que a sociedade e as instituições rotineiramente relegam, deixando para eles apenas o lugar do grito que não é ouvido? Este é o desafio encarado pelos alunos do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, e que é apresentado através do documentário “Eu existo”, uma produção de 2012, em 16 minutos que convidam o espectador a pensar a vida nas ruas para além dos seus estigmas.
O curta coloca os personagens como agentes políticos capazes de debater seus problemas e de, a partir das verdades reveladas, sugerir mudanças – tanto em relação ao olhar da sociedade sobre eles quanto da postura das instituições que dizem protegê-los.
Ao longo do filme, pessoas em situação de rua da cidade de São Paulo e especialistas discursam sobre questões relacionadas à rualização, como as precárias condições dos abrigos, a violência dos agentes da guarda civil metropolitana, o descaso manifestado pelos que transitam nas ruas, a dor da solidão e o sentimento de impotência. Tais questões, tratadas há cinco anos e tão prementes nos dias atuais, revelam que a vulnerabilidade e as agressões variadas a que esses indivíduos estão submetidos não é um problema de hoje – é uma questão que perdura ao longo dos anos, e que tem a sua continuidade em grande parte pelo fato de que lhes é negado o direito de manifestar, de serem ouvidos em suas demandas e necessidades.
Os relatos são intercalados com cenas da Praça da Sé, onde os indivíduos que ali vivem participam de uma intervenção artística, pintando em uma grande faixa frases que remetem aos seus sonhos e opiniões, dentre elas, “o amor é importante”, “porque eu existo”, “sua vida vale muito mais que o mundo” e “é muita violência na cidade”. Essas cenas mostram pessoas que ali transitam parando para ler os dizeres – a arte funciona como uma forma de fazer com que sua voz seja ouvida.
Os especialistas que discursam, como defensores públicos e coordenadores de movimentos em prol da população de rua, reforçam os problemas dos albergues, que possuem poucas vagas, muitas vezes estão distantes do local onde os sujeitos mais se identificam na cidade, ou estão em condições insalubres. Também destacam os abusos de autoridade por parte dos agentes da guarda civil metropolitana, que muitas vezes usam de violência injustificada e lhes toma o pouco que têm. Um deles, Anderson Miranda, Coordenador do Movimento Nacional da População de Rua, fala sobre a questão das drogas, na maioria das vezes utilizadas “para suportar a vida nas ruas” e da urgência em tratar o usuário com saúde e não com violência. Um dos personagens relata que procurou ajuda em vários centros de reabilitação e nunca fora atendido, o que demonstra a fragilidade das instituições que dizem proteger e auxiliar essa população.
Observa-se, ao longo do filme, a busca por um viés diferenciado, reforçando não o paternalismo ou o miserabilismo, bastante comum em documentários nacionais que tratam de temáticas de grupos marginalizados, mas a necessidade de que esses públicos sejam efetivamente ouvidos e tratados como cidadãos e seres humanos. Jaques Rancière diz que a partilha do sensível acontece quando aqueles que não participam ganham visibilidade, e que a política está em mostrar o potencial de um novo modo de vida, em causar um dissenso entre as lógicas presentes no mundo. Nesse sentido, é possível constatar em “Eu existo” uma partilha e uma política rancerianas, pois os personagens são chamados não somente a discursar como a expor verdades sobre as falhas no sistema atual, propondo ao espectador uma nova visão tanto deles quanto das instituições que deveriam garantir os seus direitos e que não o cumprem. Ao denunciar as violações diversas, há uma provocação ao espectador para que o mesmo pense sobre os jogos de poder presentes na sociedade, quebrando antigas concepções e estigmas.
O filme termina com um texto que convida o espectador a adentrar na realidade de quem experimenta a vida nas ruas, com palavras que evocam o afeto e a identificação com sentimentos humanos. Para Comolli (2008), o documentário é a arte da palavra e, nesse sentido, “Eu existo” conseguiu fazer bom uso dela para cumprir seu desafio. No final do filme, uma das diretoras questiona o personagem Castor: “qual foi a experiência que mais te marcou?”, e a resposta vem em voz-off cobrindo imagens de todos os personagens e sua identificação por nomes:
“Acredito que a solidão, a dor sem remédio, o afeto não correspondido, a lágrima da madrugada, a solidão de quem não ter ninguém que toque, não ter uma pele que afague, não ter ninguém que diga pra ele: ‘que bom que você veio, estava com saudades de você’, a roupa que nunca é escolhida, o sapato que sempre é dado – aquele que ninguém mais quer… A impossibilidade de escolher, a negação do sonho, da sexualidade, do afeto… A impossibilidade de transitar no mundo, de entrar no lugar que quer e de escolher a comida que gostaria de comer – sempre tem que comer aquilo que dão… A amargura de esperar as horas passarem, a chuva que molha, o sol que queima, a ausência de uma fé e de alguém que diga: ‘eu também amo você’”
A existência, portanto, se faz em palavras e afetos que geram identificação e reflexão.
Assista ao filme aqui: https://www.youtube.com/watch?v=dW_SGHrlIjc
Por Tatiana Vieira
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