Observatório da Qualidade no Audiovisual

Favela Vive 5

Por Ana Luiza Pires

  • Artistas: Grupo ADL  (Além da Loucura), Major RD, MC Hariel, MC Marechal e Leci Brandão
  • Data de lançamento: 2023
  • Gênero: Hip Hop
  • Categoria: Margem e Narrativa

Dirigido por PC Souza, o videoclipe Favela Vive 5 foi lançado em janeiro de 2023. Este cypher é uma parceria entre diferentes artistas do Hip Hop e traz a contribuição de diferentes vozes, entre elas o Grupo ADL (Além da Loucura), Major RD, MC Hariel, MC Marechal e Leci Brandão. Segundo Rocha (2018, online), “[…] a cypher no rap tem como objetivo reunir MCs, sendo eles de grupos ou artistas solos, para rimas inéditas e com uma conexão de palavras mais complexas”. 

Neste contexto, é importante destacar a origem do Hip Hop, movimento cultural que emergiu nos Estados Unidos na segunda metade do século XX, mais precisamente em Nova York (Pinho, 2024). De acordo com Pinho (2024, On-line), o Hip Hop surgiu como um “resultado dos confrontos e trocas culturais entre negros norte-americanos, jamaicanos e porto-riquenhos. Significou dessa forma a organização espontânea de uma conversa intercultural de jovens marginalizados no interior da grande cidade norte-americana”. Para além das canções e dos versos em rimas, o movimento abrange diferentes formas de expressões artísticas, como o rap, o break dance, o graffiti e o DJing. Desde o princípio o Hip Hop teve como forte característica a coletividade, seja na participação das pessoas, mas também sobre representação. As vozes que compõem as letras sempre falam por um grupo de pessoas, buscando falar sobre suas realidades e vivências. 

O videoclipe faz parte do projeto Favela Vive, criado em 2016 pelo grupo ADL (Além da Loucura). Segundo Nagai (2020, On-line), “[…] desde sua primeira edição, o cypher reuniu nomes como Froid, Sant e Raillow […],  e tem participações de gigantes da cena, entre eles a cantora paulista Negra Li, o rapper mineiro Djonga e o rapper, ator e escritor carioca Mv Bill”. O projeto surgiu como uma forma de denunciar as diversas formas de violência enfrentadas nas comunidades, incluindo racismo, desigualdade social e violência estatal. Suas críticas sociais são explícitas e escancaram a realidade vivida pelas pessoas que integram essas comunidades. Na quinta edição, os artistas expressam por meio da letra e da performance não apenas o contexto social e cultural, mas também a realidade política do período. Além disso, o sentimento de pertencimento à comunidade é uma marca forte desta edição do projeto. 

A produção é organizada em cinco arcos principais, cada um protagonizado por um dos artistas, que trazem sua própria identidade sonora e poética. Todo o videoclipe é ambientado na favela do Rosário, em Teresópolis, a mesma cidade dos idealizadores do projeto. A letra da canção, combinada com os diferentes planos da comunidade, revela a potência do videoclipe como forma de expressão. Um dos aspectos mais notáveis do trabalho é a maneira como os elementos estéticos se entrelaçam com a letra, os efeitos sonoros e a proposta para transmitir a mensagem final. 

Ao início de cada arco, os artistas que o protagonizam estão em locais específicos da comunidade. A fotografia é construída em tons frios, evocando a estética de um dia nublado. A cor azul se destaca, conferindo um toque de melancolia à experiência do espectador. Além disso, há uma variedade de planos abertos e gerais que ressaltam o ambiente onde o videoclipe foi gravado. A identidade visual se mantém coesa desde o início, criando uma unidade ao longo da obra. Outro aspecto notável é que os planos não são estáticos, mesmo os movimentos sutis na fotografia enriquecem as performances e ampliam a diversidade da narrativa visual.

O videoclipe começa com um plano geral que captura toda a comunidade, essa abordagem se mantém ao longo do vídeo, apresentando diversos ângulos de pontos mais elevados que sempre destacam as moradias locais.

Nos planos iniciais, diferentes crianças estão presentes e sua inserção ocorre em momentos pontuais ao longo do videoclipe. A imagem carrega múltiplos significados, representando a ingenuidade da infância, um período repleto de sonhos e potencial, apesar das limitações impostas pela realidade. Quando essas crianças aparecem em momentos distintos do videoclipe, elas contrastam com os artistas. É interessante observar a estética utilizada nos planos com as crianças, que apresentam uma imagem com ruídos, evocando uma fotografia antiga.

Nesse aspecto, é possível assimilar que ser artista pode ter sido um sonho de infância de ambos cantores presentes no videoclipe, conquistando o mesmo com o tempo, sendo a arte uma forma de expressão para ambos. Como ressalta o seguinte trecho da letra: “Desde menor tem coisa que eu não compreendo e isso foi me corroendo, eu tive que me expressar”. Além disso, é importante enfatizar a representatividade que esses artistas oferecem aos jovens e crianças da comunidade, que podem vê-los como referências e vozes para suas vivências e emoções. É evidente que os artistas se reconhecem como esse exemplo, especialmente em trechos como:“Mesmo sem cachê, rap era o trampo/Pra menorzada eu virei exemplo.”

A edição do videoclipe desempenha um papel crucial na construção da narrativa e na amplificação da mensagem social que o projeto busca transmitir. Desde o início, o ritmo dinâmico da edição se destaca, criando uma cadência que acompanha a intensidade da música e as emoções dos artistas. Os cortes rápidos entre diferentes planos de performance não só mantêm o espectador atento, mas também refletem a urgência das questões abordadas. Além de acompanhar a música, a edição conecta as vozes dos artistas às experiências da comunidade, com inserções de imagens que mostram o cotidiano local. Essa escolha humaniza os cantores e entrelaça suas vivências pessoais com as experiências coletivas da comunidade. 

A variedade de ângulos e planos também contribuem para estética visual do videoclipe. Close-ups e planos abertos, por exemplo, criam uma conexão mais íntima com os artistas, enquanto as imagens amplas da comunidade oferecem um panorama das realidades vividas. Os efeitos visuais, como granulações e ruídos, evocam uma estética quase documental, reforçando a autenticidade das experiências retratadas.

A sincronia entre a música e a edição é outro ponto forte do videoclipe, em momentos-chave da letra os recursos são realçados por cortes precisos que intensificam a mensagem. Os efeitos sonoros, instrumentais e beats ressaltam a individualidade de cada artista. Assim como a edição, esses elementos ajudam a criar uma conexão com a realidade vivida na comunidade. Desde os primeiros instantes, os sons do cotidiano — como conversas, risadas e ruídos típicos do ambiente — são incorporados para estabelecer uma atmosfera autêntica. Esses elementos sonoros situam o espectador ao contexto da comunidade, materializando a vivência dos moradores.

Além dos sons ambientes, os efeitos sonoros complementam a música, criando uma harmonia entre o que é visualizado e o que é ouvido. Por exemplo, os instrumentais são intensificados em momentos de clímax, amplificando a emoção e a urgência das letras. Efeitos de eco e reverberação também são usados em algumas sequências, criando uma sensação de profundidade e expandindo a dimensão emocional das performances.

Um dos momentos de maior impacto do efeito sonoro ocorre quando os sons de disparos são introduzidos e sincronizados de forma precisa com imagens dos próprios artistas. Essa combinação cria uma conexão visceral com o trecho da música que diz: “É o desespero, pá, despreparo / Tramaram pra cima dos meus, socorro.”. A intensidade dos disparos, que ecoam de forma contundente, amplifica a sensação de urgência e perigo contida na letra. A escolha sonora serve para intensificar a mensagem e a vulnerabilidade apresentada na canção. 

O videoclipe apresenta, por meio da letra, referências ao contexto político pós-eleições de 2022, abordando acontecimentos dos anos anteriores e a realidade social da comunidade. Favela Vive 5 destaca especialmente nomes de pessoas que perderam suas vidas, como Edivaldo, Amarildo e Moïse, cujos casos ganharam notoriedade, mas nunca receberam resposta ou justiça, assim como a menção à vereadora Marielle Franco. Outro elemento marcante são as referências a outros artistas que também vieram da comunidade e a obras cinematográficas, como “Titanic” (1997) e “Cidade de Deus” (2002).

A referência ao filme “Titanic” traz comparações entre a realidade e o filme, como menciona o trecho: “Eu vejo a vida imitando aquele filme triste/ Eu fazendo show lotado em pleno Covid / Senhoras e senhores, vou tocar o violino /Enquanto a gente assiste afundar o Titanic”. Aqui, o artista sugere que a tragédia retratada no filme se reflete na vida real. A menção ao “violino” evoca a famosa cena do navio, simbolizando a resistência ou a negação diante da calamidade que se aproxima.

Além disso, há referências a personagens e artistas que emergiram da comunidade, como mostra o trecho: “Pra tu ser um Zé Pequeno e nunca ser um MC Poze.” Zé Pequeno é um personagem do filme “Cidade de Deus”, inspirado em uma história real. No longa, ele entra para o crime ainda jovem na favela Cidade de Deus, quando era conhecido como Dadinho. Esse personagem é baseado no livro homônimo de Paulo Lins, lançado em 1997, que narra as experiências do autor na mesma comunidade. A adaptação cinematográfica, lançada em 2002, se tornou um marco do cinema brasileiro. 

Em contrapartida, MC Poze é um rapper que se destaca no cenário do funk carioca. Nascido como Poze do Rodo, ele ganhou notoriedade com suas letras que refletem a realidade das favelas e a vida na periferia, abordando temas como superação, cotidiano e as dificuldades enfrentadas pelos jovens.

Voltando ao som, um elemento que se destaca é o arco de Leci Brandão. O instrumental utilizado faz uma referência direta à sua famosa canção “Zé do Caroço”, lançada após o regime militar em 1995, embora composta anteriormente. Leci (2023) enfatiza que “a realidade nas nossas favelas ainda é muito mais próxima daquela que cantei em ‘Zé do Caroço’ do que desejávamos” ressaltando a persistência das questões sociais e a relevância de sua música até os dias de hoje. Essa conexão entre as obras reforça a continuidade das lutas enfrentadas nas comunidades

O tema do videoclipe é abordado de forma realista, uma vez que todos os artistas cantam sobre suas próprias vivências como moradores e artistas de uma comunidade. Isso elimina qualquer forma de estereótipo, garantindo que as minorias sejam cuidadosamente representadas. Além das origens, o videoclipe também explora questões relacionadas à raça, cor e gênero. 

Um ponto de destaque são as questões levantadas pela letra. A música afirma que a Favela Vive, mas, em contrapartida, levanta questionamentos profundos: se a Favela Vive, porque o Lucas não está vivo? Por que alguns não sobrevivem? Estes pontos são claramente sinalizados no trecho: “Favela Vive, sabendo que o Lucas não tá vivo / Vou repetir sempre que possível.” A reflexão é ainda mais enfatizada com versos como “Coisas que só quem é favela vive / Sonho tá a quilômetro, a morte tá a milímetros / Favela vive, mas uns não sobrevivem.” Essa dualidade entre a afirmação de vida e a dura realidade da morte evidencia as contradições que permeiam a vivência nas favelas.

Ainda nesta temática, a letra ressalta o abandono, seja da sociedade, que olha para as favelas e a marginaliza, excluindo o fato de que ali residem vidas, pessoas e sonhos, mas também retrata questões familiares. No Brasil, as mulheres pretas representam a maior parte das mães solo, totalizando em 90% dentre as milhões de mulheres (Terra, 2024). Nesse sentido, trechos como “Não sou o bala, eu tô mais pras mães/ Que pulam na frente e defende o filho adolescente que sente  demais/ Quanto é diferente um pai que te aguarda de um pai com aguardente, é urgente” marcam essa realidade. O trecho demonstra a urgência pela procura de formas de refúgio perante a  realidade em que vivem, mesmo que só no seu consciente, se mantendo inconsciente. Além disso, também retrata a realidade das mães que se desdobram, em solidão, pela sobrevivência dos filhos. 

Favela Vive 5 se destaca pela inovação em seu formato e pelas ideias que apresenta. A produção combina música, arte visual e narrativas sociais, sendo essa uma abordagem integrada que enriquece a experiência do espectador, fazendo com que cada elemento – desde a letra até a cinematografia – trabalhe em conjunto para transmitir a mensagem. Além disso, a escolha dos artistas e a diversidade de vozes representadas no projeto trazem uma gama de experiências e perspectivas, desafiando estereótipos e ampliando a narrativa sobre a vida nas favelas. 

A originalidade e qualidade artística pode ser percebida no formato, que não é tradicional, misturando performances musicais com elementos documentais, com imagens reais da comunidade. A inclusão dos temas tratados de maneira honesta e direta, reflete uma evolução na forma como esses tópicos são abordados na música e diferentes plataformas midiáticas. 

Ademais, a mensagem final do cypher é marcada pelo acróstico apresentado por MC Marechal, utilizando a palavra F.A.V.E.L.A. As letras representam Família, Aliança, Visão, Equidade e Liberdade, simbolizando a esperança de que o “A” no final seja alcançado um dia.

Deste modo, observamos que o videoclipe é uma obra que reflete a realidade social e cultural das favelas, celebrando a diversidade de vozes no movimento Hip Hop. Através de uma narrativa visual envolvente, a produção aborda questões como violência, desigualdade e a busca por justiça, promovendo um sentimento de pertencimento e coletividade.

A combinação de música, estética visual e elementos sonoros cria uma experiência que vai além do entretenimento, transformando o videoclipe em um veículo de resistência e denúncia. Além disso, as referências culturais e a conexão com a história do Hip Hop ressaltam a continuidade das lutas sociais, destacando a importância de lembrar dos que foram perdidos e de lutar por justiça. 

Referências 

BORGES, G. A qualidade na televisão pública portuguesa. Análise dos programas do canal 2. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2014

FAVELA Vive 5 – ADL | Major RD | Mc Hariel | Mc Marechal | Leci Brandão (Prod. Índio. Direção: Pc Sousa. [S. l.: s. n.], 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R_4Clufmtq8. Acesso em: 23 Set. 2024.

HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016. 

LECI B – Zé do Caroço. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hSXIO0t4OlQ Leci Brandão – Zé do Caroço. Acesso em: 9 set. 2024.

NAGAI, B. Projeto Favela Vive atinge mais de 130 milhões de visualizações no YouTube. [S. l.], 18 dez. 2020. Disponível em: https://vozesdasperiferias.com/projeto-favela-vive-atinge-mais-de-130-milhoes-de-visualizacoes-no-youtube. Acesso em: 15 ago. 2024.

ROCHA, G. Explicando em detalhes: o que é Cypher. [S. l.], 1 fev. 2018. Disponível em: https://kondzilla.com/explicando-em-detalhes-o-que-e-cypher/. Acesso em: 15 ago. 2024. 

SANTOS, M. ZÉ PEQUENO EXISTIU? Entenda quais personagens realmente existiram no clássico do cinema nacional. [S. l.], 15 out. 2023. Disponível em: https://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-1000046506/. Acesso em: 28 ago. 2024.

SHAKUR, R. Favela Vive 5, em memória de Amarildo, Moise e Genivaldo. [S. l.], 26 fev. 2023. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Favela-Vive-5-em-memoria-de-Amarildo-Moise-e-Genivaldo. Acesso em: 31 ago. 2024. 

XAVIER, C. Leci rima Zé do Caroço com Marielle em Favela Vive 5, do ADL. [S. l.], 9 fev. 2023. Disponível em: https://vermelho.org.br/2023/02/09/leci-rima-ze-do-caroco-com-marielle-em-favela-vive-5-do-adl/. Acesso em: 30 ago. 2024. 

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