- Artista: BaianaSystem
- Álbum: Invisível
- Data de Lançamento: 2017
- Gênero: Dub / Mpb / Axé / Rock
- Categorias: Margem e Narrativa/Performance
Por Gustavo Furtuoso
A banda BaianaSystem foi formada em Salvador, Bahia, no ano de 2009. Seus membros, Russo Passapusso (voz), Marcelo Seco (baixo), Roberto Barreto (guitarra baiana) e Filipe Cartaxo (concepção visual), tiveram inicialmente a intenção de criar apenas um álbum, que levaria o nome da banda. Mas o trabalho de estreia foi bem aceito e os elevou a uma posição de destaque no estado e também nacionalmente. O álbum seguinte, Duas Cidades (2017), foi considerado um dos melhores do ano por diversos setores da mídia especializada. O som do BaianaSystem é de difícil classificação, com influência dos ritmos samba-reggae, ijexá, rap rock e ska, misturando sound system jamaicano e guitarra baiana.
A faixa Invisível foi lançada em fevereiro de 2017, como um single. O videoclipe é uma crítica às condições dos trabalhadores dos blocos de carnaval do axé-music, exclusivos para pagantes. São representados os cordeiros, catadores de lixo e vendedores ambulantes, figuras marginalizadas na festa. O vídeo reflete discussões que aconteciam no estado com relação ao formato do carnaval-negócio, com vendas de abadás e fechados a não-pagantes. Tempos depois, o interesse pelos blocos de axé pagos foi diminuindo e a pipoca – como é conhecido o carnaval de rua com blocos gratuitos e abertos, como o do BaianaSystem – foi tornando-se mais popular. (FARIAS, 2018)
Como cenário, em Invisível, temos as casas e ruas históricas de Salvador. O clipe foi filmado no bairro do Dois de Julho, no centro da capital baiana. A ambientação é composta por ruas estreitas de pedra, ladeiras, escadarias e o interior de algumas casas da região. Os locais são mostrados inicialmente vazios, com uma espécie de névoa que precede a chegada da procissão com os personagens do vídeo. Então, as ruas se inundam com a presença das figuras mascaradas, que avançam por elas. Muros e paredes antigas também são destacados, com grafites, pichações e anúncios colados.
Na faixa de áudio, não há inserção de efeitos sonoros além da própria música. A percussão, entretanto, ganha um aspecto narrativo quando a relacionamos ao carnaval. As batidas do instrumental da música são similares às batidas de blocos carnavalescos que saem pelas ruas com os foliões. Inclusive, num verso, Papapusso canta “bate bumbo, bate caixa, bate coxa, bum-bum”, criando uma aliteração na repetição de sílabas com fonética similar, que também remete aos batuques do carnaval.
A fotografia é marcada por uma paleta de cores pouco saturada. Na qual a única cor predominante além do preto, branco e cinza é o azul, utilizado nas máscaras dos personagens e na tinta das pichações. O contraste forte entre claro e escuro também é um elemento central na produção, tanto em ambientes internos quanto externos, com luzes fortes e marcadas invadindo espaços sombrios.
Outro elemento trabalhado é a presença da fumaça ao longo de todo videoclipe. Inicialmente, de maneira mais natural, como névoa ao amanhecer; mas em seguida bem mais densa, com a chegada da procissão e dos personagens que levam consigo turíbulos, objetos utilizados em cerimônias religiosas para queimar incensos. Além de criar a sensação de uma rua vazia e inabitada, a fumaça remete à uma ideia de purificação, como se invadisse as ruas e as dominasse, servindo também como uma espécie de anunciação da chegada do grupo.
A edição do clipe é simples e seu principal efeito é trazer ritmo visual ao vídeo, para que case com a trilha da canção. Inicialmente, planos estáticos mostram ruas vazias, escadas e cômodos vazios. Aos poucos, os personagens do vídeo começam a aparecer de forma individual e, em seguida, em conjunto. Eles se preparam e tomam as ruas com sua procissão, em planos que se tornam mais fechados, apreendendo detalhes, e com cortes mais rápidos, captando um pouco do caos de se estar numa multidão que caminha. Em vários trechos foi utilizada uma velocidade mais lenta de reprodução, criando um contraste que serve à ironia do clipe ao relacionar a festa do carnaval com um ritual religioso. A câmera lenta, juntamente ao figurino com tecidos brancos esvoaçantes e a fumaça, causa essa sensação de algo imponente, sagrado.
Todos os aspectos formais do vídeo foram conjugados em função de seu tema. Em Invisível, Baianasystem faz uma crítica à maneira com a qual o carnaval de Salvador tem se transformado. Não é um ataque à manifestação cultural em si, mas sim aos “[…] negócios do axé e do Carnaval, as suas práticas mercadológicas e opressoras que, muitas vezes, se misturam” (FARIAS, 2018, p.26). A forma como os blocos de rua foram se tornando eventos pagos, caros e alienados do resto da cidade e de seu povo.
Mesmo sendo o maior carnaval de rua do Brasil, Salvador havia se tornado um destino caro. Para acompanhar os principais trios elétricos, abadás tinham que ser adquiridos e as ruas eram fechadas com as cordas dos blocos, que fazem a separação física entre quem está dentro e fora da festa. Entre essas pessoas, moradores locais que trabalham no carnaval, como o ambulante que vende bebidas em isopores, o cordeiro do bloco e o catador de materiais recicláveis. Para quem está dentro do bloco, acompanhando um artista e se divertindo, essas pessoas tornam-se invisíveis; perdem sua humanidade e tornam-se figuras apagadas dos bastidores da festa.
A trama presente no vídeo é simples e mostra um grupo de pessoas que usam máscaras azuis com expressões faciais congeladas em seus rostos numa espécie de ritual religioso, como uma procissão católica, evento comum na Bahia. As roupas brancas e azuis geram um contraste com a ideia do carnaval, uma festa multicolorida. A analogia do carnaval como algo religioso ou mesmo sagrado infere que a festa popular tenha se tornado tão poderosa na cidade que ganhou um status superior.
As pessoas quando seguem os artistas no trio, assim como os fiéis do vídeo seguiam a imagem de uma figura sagrada, ficam alienadas do seu redor, da cidade, da arquitetura, da cultura e das pessoas, e invadem um espaço apenas para caminhar por ele e chegar ao próximo. A crítica também pode ser ampliada para uma conjuntura maior, sendo resultado das disparidades sociais que causam desigualdade e geram um abismo social entre aqueles que têm capital, daqueles que não o têm; aqueles que festejam enquanto outros lutam para garantir seu sustento.
A crítica ao carnaval capitalista e mercadológico da banda tornou-se resistência com a criação do Navio Pirata, um trio elétrico pipoca – como são chamados os trios gratuitos e abertos a qualquer público. No videoclipe de Invisível, há uma referência ao trio na última cena, com o rosto de pirata.
De maneira irônica, o vídeo faz uma representação artística dos estereótipos criados com relação aos ambulantes e trabalhadores de rua no carnaval. Por serem invisibilizados enquanto cidadãos por parte dos foliões que apenas os enxergam por suas respectivas funções, criou-se uma espécie de máscara que esconde seus rostos. A caixa de isopor, a corda do bloco e a sacola com materiais recicláveis substitui seus rostos, suas identidades. Como mencionado na descrição do videoclipe no Youtube, “criamos um mundo particular para nos proteger do visível”. Dessa forma, ao exagerar na representação limitada de tais pessoas, temos uma crítica a essa maneira de olhar, a essa forma de enxergar o outro.
Essa representação estilizada condiz com a ideia de que “o vídeo, dentre todas as artes figurativas, é a que menos manifesta vocação para o documento ou para o “realismo” fotográfico, impondo-se, em contrapartida, como intervenção gráfica, conceitual […] é uma arte da relação, do sentido e não simplesmente do olhar ou da ilusão” (MACHADO, 1993, p.17). Sendo assim, a composição imagética do quadro do videoclipe tende a ser estilizada e abstrata, trazendo uma reflexão que conversa com elementos externos ao vídeo, com a inserção de metáforas e referências.
Justamente, a originalidade do vídeo reside nessa forma com a qual os personagens são representados, através de máscaras que apagam sua individualidade. A identidade de todos os personagens é substituída por um objeto ou uma caixa com expressão estática. Enquanto os vendedores e ambulantes das festas de rua são representados com seus respectivos objetos de trabalho, os turistas e foliões são representados com caixas azuis e rostos abstratos pintados. A escolha de cores também é original ao usar tons monocromáticos e pouco saturados para representar o carnaval da Bahia, tão vivo de cores.
Em Invisível, há inovação na associação do carnaval à uma cerimônia religiosa. Sendo uma cidade com tradição histórica e turística, Salvador detém até hoje o posto de maior carnaval de rua do Brasil. Uma festa que definitivamente movimenta a economia da cidade e, também por isso, tão prezada e valorizada. O status que a festa alcançou a torna prioridade em diversas ocasiões, como na tomada de decisões políticas e urbanísticas, e a força com a qual o carnaval invade os espaços e as práticas foi utilizada para traçar um paralelo com a religião, também fortemente presente na cultura baiana.
A qualidade artística do videoclipe está na criação de uma manifestação tipicamente baiana, com elementos da cidade, do povo e da cultura, que denuncia os aspectos mercadológicos do carnaval. Embora tenha-se o carnaval de Salvador como um dos maiores do mundo, é uma festa em grande parte elitizada e que excluía os próprios moradores da festa. Paralelamente, Invisível também compõe uma crítica social mais ampla, apontando os abismos sociais e as diferentes visões de mundo que separam os foliões que curtem a festa dos trabalhadores que fazem a festa. Uma crítica que tenta resgatar a essência do carnaval como uma festa de rua, aberta, plural e democrática.
Referências
FARIAS, Daniel Oliveira de. Disputas afetivas políticas em torno do BaianaSystem: gêneros, territórios e experiências no contexto de Salvador-BA. Trabalho de conclusão de curso (monografia) – Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2018. https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/26784/1/Monografia_DISPUTAS%20AFETIVAS%20POLÍTICAS%20EM%20TORNO%20DO%20BAIANASYSTEM_OliveiraFarias_FINAL_.pdf <acesso em 18 de setembro de 2020>
MACHADO, A. O vídeo e sua linguagem. Revista USP, n. 16, p. 6-17, 1993. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25681/27418>. Acesso em: 23 set. 2020.
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