O documentário Juízo, de Maria Augusta Ramos (2007), é a segunda produção da trilogia da diretora sobre a Justiça brasileira. No primeiro filme, “Justiça” (2004), a cineasta acompanha a rotina de varas criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro; e em “Juízo” registra audiências de adolescentes infratores realizadas na 2ª Vara da Infância e Adolescência, também do Rio, onde são aplicadas as medidas sócio-educativas. Nesta obra, o hibridismo entre documentário e ficção acaba por destacar ainda mais o que Maria Augusta chamou de “teatro da Justiça”, como já ressaltado por Tatiana Vieira Lucinda em texto anterior.
Como pela legislação brasileira os rostos dos menores não poderiam ser mostrados, ao fazer a montagem da obra, a diretora substituiu as cenas onde eles apareciam de frente por refilmagens feitas com adolescentes de comunidades carentes que viviam em “circunstâncias de risco social” semelhantes às dos personagens do filme. Esse procedimento ficcional é informado ao espectador em cartelas que abrem o filme, assumindo de forma transparente a encenação, o que nos parece dizer, no fundo, da condição de qualquer obra documental.
É importante destacar que o uso de encenações não é novo na história do cinema documentário. Em “Nanook do Norte” (1927), por exemplo, Robert Flaherty, usou tal procedimento, substituindo personagens por atores e reencenando hábitos que não eram mais praticados na época das filmagens. Em “Juízo”, a revelação do que poderia provocar uma quebra no regime de autenticidade estabelecido pelo documentário mostra-se, ao contrário, motivo de reflexão sobre a problemática social apresentada e sobre a construção ficcional das narrativas. Ao assumir a encenação como dispositivo central, o filme nos leva a refletir tanto sobre a natureza política do tema e sua complexidade – problemas que vão da estrutura da legislação até a profunda desigualdade social brasileira – quanto sobre a potência estética do documentário. Nesse sentido, trata-se de uma obra contra-hegemônica, pois a forma utilizada pela diretora para abordar o tema, mesmo diante dos obstáculos, é distinta do enquadramento midiático tradicional. Maria Augusta consegue, com suas escolhas de filmagem e montagem, despertar novos afetos no espectador.
A solução encontrada pela diretora para o impedimento definido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), escolhendo um “outro” para as cenas de contraplano, rendeu uma experiência estética de forte impacto, que humaniza os personagens e dá ao espectador liberdade para construir seu julgamento. “Queria muito, com ‘Juízo’, humanizar a figura dos menores infratores, que é demonizada pela mídia” (Rizzo, 2008), analisa a documentarista.
Montagem e identificação
Assim como fez em “Justiça”, Maria Augusta optou por não usar entrevistas e nem narrações em off, mantendo um tom mais observativo, motivo das relações feitas entre seus filmes e o Cinema Direto. A diretora não faz perguntas, somente instala câmeras nos ambientes que investiga, sem movimentá-las, e quem conta a história são os próprios personagens. Não há muitos planos próximos, as câmeras mantém certa distância e centralidade. Este segundo filme da trilogia também preserva uma fotografia com paleta de tons mais escuros e frios, transmitindo o clima das salas de tribunais, dos corredores mal iluminados e das péssimas instalações das instituições de internamento. E também não são usadas trilhas sonoras, sendo o som composto unicamente pela fala dos personagens e os sons do ambiente.
Nas sequências das audiências, os enquadramentos são organizados da seguinte forma: em plano geral vemos todos os atores envolvidos, sendo que a promotora fica à esquerda do quadro, ocupado pela juíza ao centro e tendo o defensor público à direita. O adolescente que cometeu o delito fica de frente para a juíza e de costas para o espectador. Em local próximo, à espera do julgamento, os familiares. A juíza Luciana Fiala, que comanda nove das dez audiências editadas, domina a cena já na primeira fala e manifesta o abismo que separa seus mundos: a fala dos tribunais não é a mesma do cotidiano dos jovens. Não há diálogo nem entendimento. A juíza limita-se, em atuação já caracterizada como “espalhafatosa”, a “dar broncas” e usar de ironia, como na sequência inicial, em que diz ao adolescente que com “dois braços e duas pernas” poderia estar “vendendo bala” ao invés de roubar.
A performance desses atores sociais, bem à vontade nos papéis exercidos, destaca a dimensão teatral da vida cotidiana e contrasta com a apatia e o constrangimento dos garotos com a encenação. Os adolescentes aparecem quase sempre de cabeça baixa e mãos nas costas, sendo sujeitos a humilhações e revistas constantes no Instituto Padre Severino (IPS). Vemos que são levados por agentes que lhes dão ordens o tempo todo, guiando-os em filas por instalações precárias. Os outros personagens são profissionais reais no exercício de suas atividades: agentes da justiça, IPS e DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), órgão ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.
A fala dos atores que substituem os adolescentes consegue nos sensibilizar, mesmo sabendo que aqueles sujeitos em cena não são os mesmos aos quais a juíza se dirigiu. Conforme Guimarães (2011), o filme mobiliza “nossa crença e nossa dúvida, nossa identificação e nosso distanciamento”. Em análise do filme fundamentada em Jacques Rancière, Guimarães nos lembra que “ao mesmo tempo em que explicita a partilha como divisão efetuada no sensível – ao exibir a divisão entre o mundo das instituições (juizado de menores ou prisão) e o mundo dos jovens – o filme reconfigura a partilha como constituição da comunidade”. Redistribui, portanto, reparte de outra maneira o mundo comum no qual o universo dos “menores infratores” aparecia justamente mantido à parte, incluído por exclusão. Assim, “Juízo” revela-se um filme político “não porque exibe o que era necessário mostrar ou denunciar (a injustiça irreparável – de caráter social – que recai sobre os “menores infratores”), mas porque faz da impossibilidade (de alcançar plenamente o mundo deles) uma plataforma para a invenção estética e política”. (Guimarães, 2011).
Não se trata, contudo, de um outro tipo de relação com a realidade, mas de compreender os jogos de ilusão que são colocados em cena. É o caso de Alexandre, adolescente que responde pelo homicídio do próprio pai: “o que poderia ser um hiato perturbador entre o plano em que estão a juíza, o promotor, o defensor público e o contra-plano do ator, passa a ser a imagem de uma certa apatia e indiferença do ator/personagem com relação à Lei e ao cinema, uma apatia que veste o rosto de todos os menores infratores e que apenas reitera a ausência de perspectiva e de futuro estampada em cada face, terrivelmente comum ao ator e ao personagem” (Guimarães, 2011).
Maria Augusta fala o mesmo. Diz que seu filme fala pela primeira vez de uma geração de jovens que repetem a mesma história de exclusão e falta de perspectivas: “Qualquer jovem de favela no Rio de Janeiro vive situações muito próximas às retratadas ali e pode vir a cometer delitos. Todos esses ‘adolescentes substitutos’ poderiam estar ali na frente da juíza. […] Por isso, o desempenho deles é muito crível” (Oliveira, 2007). É mesmo dramático ouvir de um menino de 15 anos que não sabe a data de seu nascimento! Nas sequências finais vemos a menina de 15 anos que tentou roubar a câmera fotográfica de um turista. Está novamente grávida, e com o filho ainda pequeno nos braços…. Enfim, é difícil “escapar” de “Juízo” sem pesar e indignação, sem ter ao final a sensação de que tudo aquilo não termina ali.
Referências:
GUIMARÃES, César; GUIMARÃES, Victor. Da política no documentário às políticas do documentário: notas para uma perspectiva de análise. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 77-88, dez. 2011.
OLIVEIRA, Taís. Fala séria: entrevista Maria Augusta Ramos. Pílula Pop, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.pilulapop.com.br/ressonancia.php?id=95>.
RIZZO, Sérgio. “Documentário híbrido ressalta ‘teatro’ da Justiça”. Ilustrada, Folha de São Paulo: SP, 14 mar. 2008. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1403200830.htm>.
RODRIGUES, Jéssica Ferreira. Intratextos. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intratextos/article/download/2079/3370
Assista ao documentário: https://www.youtube.com/watch?v=UymNRVuilnA
Por Maria Beatriz Colucci
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