É difícil enquadrar o curta metragem KBELA (Yasmin Thainá, 2016) em um gênero específico, afinal, o teor performático das cenas transborda o documental. Um exemplo para ilustrar o hibridismo dos filmes documentais contemporâneos. Uma narrativa, na qual conta-se uma travessia em relação ao cabelo crespo e sua valorização, com cenas de mulheres negras imersas em seus processos, tão intenso quanto a dor de mulheres que lutam contra sua própria natureza, por conta de uma colonização que é também estética. O manifesto “Dogma Feijoada” proposto pela Associação de Realizadores de Audiovisial Afro-Brasileiros, [1] nos revela um crescimento do número de cineastas negrxs e, mais ainda, as questões políticas que atravessam esse cinema. Afinal, se outrora essas narrativas se deslocavam para o exotismo do outro, agora é escrito por quem as vivenciou, em sua própria pele.
O filme, inspirado no conto MC KBELA (THAYNÁ, 2012), constrói as personagens através de um espelhamento, criando um corpo coletivo que se encontra no processo de “ser mulher e tornar-se negra”. Um trabalho que busca inspirar outras mulheres negras, KBELA existe por desbravar uma memória conjunta, ao retratar um corpo que foi e ainda é isolado dos processos de autonomia, mas que batalha para coexistir com dignidade.
Esfregar o próprio cabelo para arear as panelas é afrontar a opressão ao corpo das mulheres negras, com o choque de uma resposta artística para as feridas abertas pelo racismo estrutural. Assim como quando a raiz crespa renasce, é possível sentir a máscara branca saindo da pele, como na cena em que uma personagem retira de si uma tinta branca, tão simbólica quanto o processo de transicionar: tirar da cabeça a violência – tanto fisíca quanto simbólica – de alisar os fios. A cena final reúne corpos negros vivos, pulsando em roda e com sua identidade resgatada pelo autoconhecimento. São estratégias filmicas e performativas do campo estético que reverberam politicamente na luta das mulheres negras por reconhecimento e igualdade. A transição capilar é um processo que aparenta ser simples, porém é mais complexo que a alteração dos fios para o seu aspecto natural, envolve um processo psicológico. Para algumas mulheres, o cabelo natural – que acabou se tornando um inimigo – acessa memórias intrínsecas ao preconceito racial, gerando traumas e também contribuindo para uma esquizofrenia identitária, assim como apontou por Frantz Fanon, declarar-se pretx em um contexto de genocídio é também tornar-se alvo.
Nas cenas em que se ultiliza vinagre de maçã e óleo de cozinha, o aparente não-realismo faz sentido aos espectadores que assistiram dentro de suas famílias o desespero de ocultar sua ancestralidade, que para além de uma imposição estética, acaba sendo necessidade para encarar o mercado de trabalho, afastar-se de estigmas e tentar tirar dos ombros o racismo estrutural presente no contexto brasileiro.
Se em Kbela, Yasmin Thainá explora a poética dos corpos das mulheres negras, Ana Pi, em Noir Blue (2018) coloca seu próprio corpo em cena, buscando conhecer suas origens em uma viagem tão exterior, quanto interior. O curta-metragem de Ana Pi conta uma história tão íntima e ao mesmo tempo compartilhada, fazendo com que as metáforas contidas na dança contemporânea sejam também tão antigas quanto os passos sagrados dos ancestrais.
O documentário de Ana Pi transita entre e diáspora e a descolonização, fazendo com que o azul escuro presente no fundo do atlântico, seja referência a inúmeros relatos ocultos do tráfico humano do continente africano. Ao “mergulhar nas águas abissais do oceano Atlântico” a diretora traz à tona o fato de que o sequestro intitulado escravidão não apenas gera um violento deslocamento, mas a memória é afetada. Deste modo, o regresso gera uma série de questionamentos, afinal, como ignorar o pertencimento ao espelhar-se noutros corpos? A dança é a resposta de Ana para as barreiras da linguagem, da comunicação. O ritmo gera trocas, esses instantes só poderiam reverberar em corpos iguais. A perda de identidade é manobra colonial de dominação, ir contra isso além de desafiar as imposições, é também uma forma de liberar-se.
O que se percebe nos filmes da nova geração de Realizadorxs Pretxs é uma busca pela forma de lidar com intimidade em temas que antes foram propositalmente negligenciados, contar as histórias que não foram contadas pela narrativa hegemônica e que agora buscam ocupar um lugar de protagonismo, ganhar uma visibilidade. O deslocamento da perspectiva de uma narrativa branca, traz à tona assuntos emergenciais, que sempre estiveram presentes, desbravando em telas a memória oculta de quem fora silenciado por toda a vida, fazendo emergir assim, uma outra história, contada de outro ponto de vista que não aquele dos colonizadores.
Por Renata Dorea
Referências Bibliográficas:
ARAUJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na tele novela brasileira. Editora Senac São Paulo. 2000.;
FANNON, Franz. Pele negra, máscara branca. Salvador, Fator, 1983, primeira edição em francês, Paris, Seuil, 1952.
KILOMBA, Grada. “The Mask”. In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag. 2. Auflage, 2010.
NASCIMENTO, Abdias (Org.). Teatro Experimental do Negro: Testemunhos. Rio de Janeiro: GRD, 1966.
Notas:
1 – “Debatido durante o 11o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo em 2000, o Manifesto Dogma Feijoada surgiu como resultado de encontros e articulações – formais e infor- mais – entre cineastas negros baseados majoritariamente em São Paulo. Os participantes mais ativos nos debates para a confecção do texto foram: Ari Candido, Billy Castilho, Daniel Santiago, Jeferson De, Lilian Solá Santiago, Luiz Paulo Lima, Noel Carvalho e Rogério de Moura. Os sete “mandamentos” do manifesto vinham na esteira das discussões trazidas pelo Dogma 95, movi- mento liderado pelos cineastas dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg”(Manifesto Dogma Feijoada, 2018, p. 171).
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