Um dos grande diferenciais do documentário é a palavra. Trata-se de um cinema, segundo Jean-Louis Comolli, que investe na potência dos afetos e na duração da fala, um cinema que dá espaço para aquilo que a ficção ignora. É explorando toda a riqueza de depoimentos, histórias e sentimentos de pessoas que estiveram em situação de rua que Juliana Amoreira Terra constrói o documentário “Nós”.
O filme, de 2011, foi gravado no Arsenal da Esperança, um abrigo de homens que acolhe, diariamente, 1.150 indivíduos em situação de rua. Seis deles são chamados a compartilhar suas histórias de vida, os motivos que os levaram a sair de casa, as experiências durante o período de rualização e suas expectativas para os próximos anos.
Logo que o filme começa, com cenas de pessoas em situação de rua, a voz de um dois entrevistados assumem o pano de fundo das imagens: “o simples cotidiano da rua já é terrível, né…” “É uma situação triste, vergonhosa e dolorosa…”. Quem discursa por último é um ex-músico que chegou a gravar 3 CDs e viajou pelo mundo em turnê. Durante algum tempo, ele fala em inglês no depoimento, relata que aprendeu a língua sozinho, mostra recortes de jornal com reportagens antigas sobre a sua carreira musical e toca violão.
Em seguida, outros sujeitos assumem a voz, dentre eles um ex-funcionário público, um ex-empresário de sucesso e um ex-enfermeiro. Os motivos que os levaram para as ruas divergem: desemprego, perda de um ente familiar e descontrole emocional, divórcio e consumo de drogas. Nos depoimentos, fala-se sobre o sentimento de abandono, o sofrimento diante da fome e do frio, e o arrependimento pelo envolvimento com o crime.
O ex-funcionário público diz que a vida nas ruas o ensinou que “as pessoas hoje têm um valor simbólico”, remetendo ao fato de ter sido abandonado por amigos e pessoas próximas quando perdeu tudo. Para ele, há um padrão social que exige que todos sejam vencedores na vida e isso nem sempre acontece. O ex-enfermeiro, que foi para as ruas depois de se revoltar com a morte do pai e se envolver com drogas, conta a sua experiência dolorosa na cadeia e a sensação de vazio quando alcançou a liberdade: “o que fazer?”. Outro entrevistado, que começou a consumir drogas ainda jovem, diz que perdeu muita coisa em sua vida. Um deles, preso duas vezes, relata que “não deseja o que passou para ser humano nenhum”.
Na primeira parte do filme, predominam as reflexões sobre o que experimentaram quando estavam nas ruas, com um forte apelo para o lado perverso da rualização. Em seguida, há um corte no documentário com cenas do albergue à noite e o despertar. Nos relatos seguintes, são destacados os sonhos de recomeçar e ter um novo lar, terminando com a frase de um dos entrevistados: “hoje eu sou um cidadão” e o convite entusiasmado de um dos moradores do albergue convocando os colegas: “vamos trabalhar!”.
No fundo da imagem de homens caminhando até a saída do abrigo, é inserida a canção de autoria do personagem músico, “Brasil da Floresta”, que exalta as riquezas naturais e humanas do país. O filme, então, finaliza com o close no sujeito, segurando o violão dizendo “Esse é o nosso Brasil”.
Além das aparências
Na obra de Juliana, observa-se que, diferentemente de documentários apontados por Ramos (2008) que exploram a criminalidade e o miserabilismo, o foco é a figura humana. Cada depoimento desconstrói uma série de estigmas e estereótipos acerca da população em situação de rua. O que se vê são personagens complexos, com conhecimento e bagagem cultural. Aqueles que discursam poderiam ser qualquer um dos espectadores.
O “Nós” de Juliana envolve eles, eu e vocês. Somos todos humanos. Acertamos, erramos, vencemos e perdemos. Nada deveria nos tornar “invisíveis”, como é o que acontece com tantos que estão hoje nas ruas. E ao “dar a voz” de maneira delicada, sem explorar imagens da miséria e do horror que aquelas vidas experienciaram, a cineasta abre uma perspectiva para a superação e o reforço na humanidade que reside nos personagens e em nós, possibilitando-nos uma rápida identificação.
Nós é um documentário que busca, desde o seu título, envolver o espectador. Os sujeitos da fala são despidos dos estigmas que carregam para revelar quem são e para nos inquietar quando ignoramos muitos outros que estiveram ou estão nas ruas. Um filme humano para humanos. Sobre a vida e suas intempéries. Sobre aprender a ver além das aparências e ter empatia. Um convite à reflexão e a um novo olhar.
Assista ao filme aqui: http://curtadoc.tv/curta/comportamento/nos/
Por Tatiana Vieira
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