Observatório da Qualidade no Audiovisual

O Veredicto da “Casa dos Mortos”

O documentário brasileiro “A Casa dos Mortos” relata cenas do Manicômio Judiciário de Salvador, na Bahia. Realizado pela antropóloga Débora Diniz, o filme perpassa os interiores da instituição e questiona os seus tratamentos e consequências. Os hospitais-presídios, instalações manicomiais que tem como premissas centrais a punição e exílio social do portador de transtornos mental e infrator, são, no filme, abordados pelos próprios detentos.

Bubu é um poeta com doze internações em manicômios judiciários. O poema “A Casa dos Mortos” foi escrito durante das filmagens do documentário e ambas as linguagens se intercambiaram no processo fílmico. Se tratam de, ao todo, três histórias em três atos de morte – as mortes desveladas de sentido e o suicídio; as overdoses usuais e ditas legais e a inexistência de possibilidade de uma vida no exterior dos muros –.

As histórias narram breves passagens de Jaime, Antônio e Almerindo, homens condenados à prisão – dentro dos moldes manicomiais – porque foram considerados perigosos para a vida real. O filme não procura extinguir dos pacientes qualquer tipo de culpa ou real periculosidade: a narrativa aborda, inclusive, os homicídios provocados por Jaime, drogadicto e portador de transtornos mentais, dentro e fora da instituição. No entanto, a proposta central é discutir quais são as principais consequências advindas dos modos atuais de internação.

A primeira história faz a trajetória de Jaime (“das mortes batidas sem sino”), internado por ter cometido um homicídio enquanto estava em surto. Após ter cumprido sua pena, deixou de tomar seus remédios e, sob efeito de drogas psicoativas, cometeu um novo homicídio. De volta ao manicômio e após ter matado um novo paciente da instituição, Jaime suicidou-se em sua cela.

A segunda história diz sobre Antônio, paciente com diversas passagens por manicômios. Ridicularizado pelas funcionarias, ele questiona porque não poderia usar batons, pintar as unhas ou ter seu cabelo grande. A passagem faz refletir sobre a perda da identidade e da gradual diminuição das escolhas individuais do paciente que é regido por uma instituição total.

Já a terceira cena retrata Almerindo, cujas histórias de sua internação se dirigem à uma suposta agressão à um menino na rua. O fato imputado ao paciente fora considerado lesões corporais e a pena, detenção. O caso, no entanto, ocorreu em 1981 e a sentença aplicada em 1982. Desde então, o paciente se encontra no mesmo local, sem familiares, amigos, visitas ou contatos próximos. Perguntam-no qual é seu nome e Almerindo prontamente responde: “É o seu” e logo depois: “Eu sou o governo dos Estados Unidos”. Quando a profissional volta a pergunta-lo pelo nome, a resposta elucida uma das realidades sociais destas pessoas: “Eu não tenho nome”; “Almerindo morreu”. O esquecimento e provoca as mortes das individualidades de quem lá se encontra.

A estética do documentário, em muito, é marcada pela hibridização entre filme e poesia, ambos contundentes para a transformação suscitada. Tal transformação seria, talvez, a reorganização do olhar do espectador entorno dos portadores de transtorno mental e como acontecem as medidas punitivas, até mesmo emocionalmente, no cotidiano dos pacientes. A documentarista e antropóloga Débora Diniz dá à Bubu –  personagem e autor da poesia que conduz a película – o papel de arauto dessas mudanças.

O documentário, em 24 minutos, é recitado pena voz de Bubu, o poeta da casa dos mortos. A realidade encontrada neste filme faz aparecer a ausência de cuidados paliativos, de tratamento digno e de respeito às identidades dos pacientes. Tais efeitos são também reflexos de uma sociedade e de um Estado que, ainda carregado por heranças eugênicas, não busca ouvir as angústias do transtorno. Neste contexto, há o senso de que a internação acontece por ser a única saída da loucura irreparável. No entanto, o Movimento da Luta Antimanicomial e os traços de realidade que perpassam as narrativas da poesia e do filme destacam uma outra preposição:

Existem outras saídas.

Leia o poema “A casa dos mortos”, de Bubu:

A casa dos mortos, de Bubu
A casa dos mortos
das mortes sem batidas de sino.
– Cena 1 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!
***
A casa dos mortos
das overdoses usuais e ditas legais.
– Cena 2 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!
***
A casa dos mortos
das vidas sem câmbios lá fora.
– Cena 3 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!
***
Prá começo de conversa, são 3 cenas,
são 3 cenas anteriores e posteriores
às minhas 12 passagens
pelas casas dos mortos,
que são os manicômios;
– tenho – digamos assim ! –
surtos de loucura existencial brejinhótica,
relativos à minha cidade natal,
Oliveira dos Brejinhos – Bahia – Brasil;
voltando às cenas:
… cenas que, por si sós,
deveriam envergonhar os ditames legais
das processualísticas penais e manicomiais;
mas, aqui é a realidade manicomial!
***
Pois, bem: são 3 cenas,
são três cenas repetidas e repetitivas
de um ritual satânico-sacro
com poucos equivalentes comparados de terror,
cujo estoque self-made in world
é o medicamentoso entupir de remédios,
o qual se esquece de que
A Era Prozac
das pílulas da felicidade
não produz A Era da Felicidade
da nossa almática essência de liberdade;
mas, aqui é a realidade manicomial!
***
E, ainda sobre as 3 cenas:
são 3 cenas de um mesmo filme-documentário:
Cena 1, das mortes sem batidas de sino;
Cena 2, das overdoses usuais e ditas legais;
Cena 3, das vidas sem câmbios lá fora
– que se reescrevam, então,
Os Infernos de Dante Alighieri;
mas, aqui é a realidade manicomial!
***
Reporto-me às palavras de um douto inconteste,
um doutor que rompeu o silêncio,
o jornalista Jânio de Freitas,
do jornal A Folha de São Paulo:
“A psiquiatria é a mais atrasada das ciências”
– Parafraseio Jânio de Freitas
porque a casa dos mortos,
que é a metáfora arquitetônica
pela qual designo a psiquiatria,
pede que se fale
contra si mesma!
***
E, por falar, também, em lucidez,
sou lúcido e translúcido:
a colunista-articulista Danuza Leão,
no jornal baiano A Tarde, explica:
“Lucidez é reconhecer
a sua própria realidade,
mesmo que isso lhe traga sofrimentos.”
Mas, qual, ó Bubu!:
isto aqui é a casa dos mortos,
e, na casa dos mortos,
quem tem um olho é rei,
porque esta é a máxima e a práxis
da casa dos mortos.
***
Hospital São Vicente de Paulo /
Taguatinga – Distrito Federal – Brasil, abril de 1995:
o laudo a meu respeito (eu Bubu)
é categórico e afirma sinteticamente:
“O senhor Bubu é perfeita e plenamente lúcido!”.
Mas, é que lá a psiquiatria é Psiquiatria Federal,
com P maiúsculo,
de propriedade patenteada
e de panteão da civilização;
enquanto que, aqui na Bahia,
a psiquiatria é psiquiatria estadual,
com p minúsculo,
de pôrra-louquice
e de prostíbulo do conceito clínico
(não custa nada afirmar:
eu Bubu fui absolvido
pela Psiquiatria Federal,
e eu Bubu fui condenado
pela psiquiatria estadual
– eis o mote da minha história!)
***
Isto é um veredicto!
– tomara que fosse um ultimatum
à casa dos mortos!

Confira a íntegra do documentário aqui: https://www.youtube.com/watch?v=noZXWFxdtNI

Por Iago Rezende

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