Observatório da Qualidade no Audiovisual

Pra que me chamas?

  • Artista: Xênia
  • Álbum: Xênia
  • Data de lançamento: 2017
  • Gênero: Pop
  • Categorias: Industria, Narrativa e Performance

Por Davi Barroso 

“Pra que me Chamas” é a primeira faixa do álbum solo da artista baiana Xênia França intitulado “Xênia”, seu videoclipe trata da cultura e identidade afro brasileira, que dialoga com as religiões de matriz africana. Como uma mulher preta, artista e nordestina, Xênia diz que o álbum como um todo, possui uma premissa libertadora que rompe com diversos estigmas, como o da mulher negra agressiva e forte. Algumas das influências sonoras desse projeto são músicos norte americanos negros como  Michael Jackson, Erikah Badu e James Brown, que configuram o álbum com ritmos baianos  misturados com Pop, R&B e  Soul.

Segundo a artista,  desde a infância ela se enxergava de maneira diferente a que o corpo negro é retratado na TV brasileira e  que se identificava mais com os conteúdos norte americanos com protagonistas negros. Por isso se sentia americana e é fascinada até hoje, principalmente, por Michael Jackson. 

“Foi isso que eu quis passar: que nós somos seres humanos, sensíveis como quaisquer outros. Jogaram pra cima da gente uma responsabilidade de ‘aguentar todas as dores do mundo’ e não queremos mais isso. Nesse sentido, vamos continuar cada dia mais expondo pro mundo nossa sensibilidade, até esse estigma de ‘mulher negra forte e agressiva’ acabar de vez”

Xênia nasceu no Recôncavo baiano, mas se mudou para São Paulo em 2004, onde atuou como modelo até 2008, ano em que conheceu o artista Emicida. A cantora participou das gravações do EP Sua “Mina Ouve Meu Rep” Tamém e do álbum “Emicídio” do Emicida, ambos de 2010. No ano seguinte, entrou para a banda Aláfia, com Pipo Pegoraro e Lucas Cirillo. 

Em 2017, lançou seu primeiro álbum solo, que lhe rendeu indicações ao Grammy Latino de 2018, por Melhor Álbum Pop Contemporâneo  e Melhor Canção em Língua Portuguesa (com Pra Que Me Chamas?), e também para o Women Music Award 2018. Além disso, é uma artista da Agogô Cultural, empresa participante do Brasil Music Exchange, projeto de exportação de música brasileira, realizado por meio de uma parceria entre a Brasil, Música & Artes e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos.

O álbum intitulado “Xênia” contém diversas referências da cultura Yorubá, que foi uma inspiração para a forma como a artista expressa sua espiritualidade e empoderamento. Nesse viés, “Pra que me chamas” é uma música que toca justamente nesse ponto, a identidade negra, a diáspora negra e apropriação cultural.

O videoclipe de “Pra que me chamas?” é dirigido por Fred Ouro Preto e foi lançado em setembro de 2018.  A estética e suas referências compõem um cenário visual que incorpora as religiões de matriz africana, em que as divindades são retratadas como personagens. O vídeo se passa em uma ambientação metafísica, em que essas divindades estão presentes, e utiliza-se da simbologia para retratar esta cultura para o público. Os sons da música, incorporam  instrumentos como o Batá, tambor sagrado da Santeria Cubana, além do Rum, Rumpi e Lé, todos utilizados no Candomblé. 

 “A estética dessa composição vem com uma nova roupagem para a herança musical deixada pelos meus ancestrais”, ressalta a cantora.

No videoclipe, segundo Goodwin (1992) e Holzbach (2016), a música não pode ser separada das imagens do vídeo, pois o videoclipe é um produto sonoro, uma “imagem-som”. A discussão proposta pelos autores pode ser observada no trabalho de Xênia através da letra, sonoridade da música e os visual do clipe. 

O título da faixa, “Pra que me chamas?” é uma tradução para “Pa que tu me llamas si tu no me conoces?”, oríkì muito usado em Cuba e que faz referência ao orixá Eleguá, equivalente ao Exu no candomblé brasileiro. Através desse questionamento na letra, o clipe trata, em imagens unidas ao som, de herança cultural africana que são adotados e esvaziados de seu significado original e valor por um grupo oposto e dominante, ou seja, apropriação cultural. 

O videoclipe de “Pra que me chamas?” começa com um plano aberto, onde a câmera sobrevoa um vasto corpo d’água de cor azul escura, com águas calmas e uma fonte de luz baixa. Ao mesmo tempo, o áudio da música, gradativamente se torna presente e é possível distinguir uma canção com diferentes vozes, tambores e palmas. 

A câmera continua sobrevoando, o que é possível distinguir depois que a câmera passa a filmar o horizonte, um largo rio com uma pequena e estreita faixa de terra que invade a água. A câmera situa a paisagem de cabeça para baixo com a  água para cima e o céu para baixo.

Esse aspecto da fotografia ressalta a ambientação do clipe, a câmera está de cabeça para baixo, pois o video indica que o local que vamos ser apresentados é algo diferente da perspectiva comum das coisas. 

Como a faixa foi inspirada na cultura e religiosidade Yorubá, os personagens são remetentes as divindades pertencentes a essa cultura. O que é possível dizer pelo figurino dos dançarinos, principalmente o adereço de cabeça, tradicional dessa religião.

A escolha de cenário, atrelada a sonoridade e identidade do artista, é um sistema de perspectivas da indústria fonográfica. É um dos trajetos sonoros da música popular massiva. O estudo das conexões entre música e entorno sócio-cultural é um dos alicerces do trabalho de autores que se preocuparam com a delimitação do que seria a paisagem sonora, termo tão controverso, no entanto, matriz conceitual para a nossa idéia de cenário.

O videoclipe, segue e nos apresenta cortes rápidos, dentro uma floresta com pouca luz e fumaça em algumas cenas. Por tempo maior, é revelado uma boneca branca de cabelos loiros, sendo queimada em um plano fechado cujo foco é a boneca e por trás dela se vê duas tochas com mais duas bonecas em chamas.

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Após essa sequência, o vocal de Xênia se inicia e a câmera apresenta uma divindade do Yorubá, que guarda um portão com folhas acima das portas e cercado por um muro alto e feito de pedra, com fumaça saindo pelas suas frestas. A edição do videoclipe segue o ritmo da música, através da movimentação dos cortes entre cenas.

Essa leitura é possível ser feita baseada nas vestimentas tradicionais de como essa divindade é representada na religião. A intertextualidade do videoclipe se configura por meio da cultura Yorubá, que compõem juntamente com o cenário bucólico, grande parte da fotografia do videoclipe.

Nesse momento, Xênia também cita os nomes de importantes divindades da religiosidade africana: “Ibejí” e “Calundú”. Essa sequência, das bonecas e divindades, somada a letra, evidencia o tema do videoclipe: ancestralidade africana e apropriação cultural.

Em sincronia com a batida da música, são feitos cortes rápidos entre cenas de um grupo de quatro mulheres negras dançando e cenas de Xênia com um vestido vermelho e uma peça dourada, similar a uma auréola em sua cabeça. Retratando a sua ancestralidade e a honrando através desse adereço remetente ao divino, superior.

Outras cenas que oscilam, são de Xênia em uma banheira cheia de água e folhas, usando um turbante branco, que é outra referência aos banhos de folhas sagradas da religiosidade de origem africana. E mais cenas daquele mesmo personagem que guardava o portão no início do vídeo, apenas que neste momento, existe uma linha feita com folhas e velas a sua volta até encontrar o portão.

Essa ambientação rica esteticamente e culturalmente, faz parte do mercado fonográfico e na construção da biografia do artista dentro desse meio. Como explica, Soares (2013),

“A configuração biográfica do artista é um pressuposto para a localização de cenários inscritos nas canções. Este tópico aponta para o fato de como a construção midiática de certas carreiras da indústria fonográfica se configuram em estratégias de construção de aparatos conceituais. Tais aparatos estão em consonância com as dinâmicas do star system da indústria fonográfica.” (SOARES, 2013, p.162)

Com a continuação do videoclipe, nos é apresentado um outro cenário totalmente diferente do anterior, em que a fotografia se constitui de maneira oposta as cores frias, cenários naturais e personagens metafísicos das cenas anteriores. 

Nessa cena, Xênia está em um quarto com apenas uma comunicação cor de rosa que preenche a cena. Ela está de frente para a câmera, que a enquadra em  primeiro plano, junto com outras três mulheres a sua volta em cima e ao lado de uma cama, utilizando uma máscara de neve, que deixa apenas os olhos a mostra, o que pode ser uma releitura do adereço de cabeça que as divindades utilizam no outro cenário do clipe. 

Esta cena, se mostra como uma representação da identidade afro brasileira moderna. Xênia está usando um short jeans, uma blusa curta, pulseiras e anéis grandes, unhas postiças e com cabelos soltos. Suas colegas estão usando roupa similares. Além disso, nesse mesmo cenário, Xênia e as outras personagens com as máscaras, são mostradas lendo alguns livros que tratam de temas sociais e políticos sobre negritude, como: “Quem tem medo do feminismo nergro” e  “Na minha pele”. O que traduz a forma como Xênia decide representar a negritude em seu videoclipe em geral.

Em outro momento, Ela está deitada em um sofá com muitas pipocas espalhadas em sua volta. A pipoca possui, dentro de alguns rituais da religiosidade yorubá, no candomblé e umbanda, o poder de cura e está ligado a divindade obaluaê.

O clipe de Xênia opta por uma espécie de clipe socialmente consciente, recondicionando o sentido presente na canção. Por clipe socialmente consciente, entende-se o audiovisual que tem sua narrativa ancorada na representação de idéias que vão de encontro aos ideais da cultura burguesa dominante (KAPLAN, 1987, p. 123).

Como encerramento, diversos cortes rápidos ocorrem, entre cenas já exploradas no clipe, essa edição reforça toda narrativa e simbologia presente no produto. O final é feito da mesma maneira que o início do clipe, o mesmo rio com a mesma faixa de terra é mostrado, mas dessa vez sem estar invertido e a câmera se afasta ao invés de se aproximar. Após isso, é cortado para os créditos em um fundo preto. Traduzindo visualmente o fim daquela experiência, a volta daquele espaço, o fim.

O clipe carrega muitas simbologias, conta com uma produção cinematográfica, socialmente consciente, moderna e  com um storyline pautado nas referências culturais da ancestralidade e identidade afro brasileira. Além da composição sonora que bebe dessas mesmas fonte, criando um produto de qualidade artística elevado devido sua profundidade cultural, artística e intertextual.

Os objetos que compõe a sonoridade inspirada na diáspora, que Xênia cria como uma artista, categorizam suas obras, dentro da  indústria fonográfica, como um produto que ressoa com a identidade e política contemporânea presentes dentro da Cultura de mídia e ao público. São esses e outro elementos que demonstram a originalidade e autenticidade da artista.

Referências 

GOODWIN, A. Dancing in the distraction factory: music television and popular music. Mineápolis: University of Minnesota, 1992.  

HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016.

SOARES, T. A estética do videoclipe. João Pessoa: Editora Universitária, 2013.

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