Observatório da Qualidade no Audiovisual

Presença de Anita

Presença de Anita, minissérie em dezesseis capítulos exibidos pela Rede Globo entre 7 e 31 de agosto de 2001 é uma trama de Manoel Carlos livremente inspirada no livro homônimo de Mário Donato. Segundo o livro “Autores: Histórias da Teledramaturgia”, Manoel Carlos teve acesso à obra original (proibida na época) aos 17 anos, sendo arrebatado pela história. A trama já havia sido adaptada para o cinema em 1951 com roteiro do próprio Mário Donato. Ivani Ribeiro, em 1964, também se inspirou no romance para conceber a novela A Outra Face de Anita na extinta TV Excelsior. Em 1992, Manoel Carlos demonstrou sua vontade de adaptar a história em formato de minissérie, sendo assim Boni, diretor da Rede Globo na época, comprou os direitos. Contudo, o projeto foi engavetado por “ser forte demais”. Apenas em 2001, com o núcleo de Ricardo Waddington, o projeto saiu da gaveta.

Apesar do fascínio de Manoel Carlos pela obra original, Presença de Anita entrega apenas a atmosfera e alguns personagens da literatura de Mário Donato. Carregada de erotismo, mistérios, tensão, sensualidade e sensibilidade, o programa conta a história do triângulo amoroso entre Anita (Mel Lisboa), Fernando (José Mayer) e Zezinho (Leonardo Miggiorin).

Anita, então protagoniza esta história, sendo uma garota de dezoito anos, misteriosa e de espírito livre, que se muda para a fictícia cidade de Florença com a intenção de viver no sobrado onde ocorrera a morte de dois amantes num crime passional. Fernando, ou Nando, um homem de quarenta anos, imaturo, egocêntrico e insatisfeito com a vida conjugal vai para Florença com sua esposa e filhos passar as festa de fim de ano. Contudo, uma briga com o pai de Lúcia (Helena Ranaldi) o faz querer voltar prontamente para São Paulo, e, para esfriar a cabeça, vaga pelas ruas da cidade desconhecida de interior, conhecendo assim Anita e desenvolvendo uma paixão instantânea pela ninfeta. A decisão de voltar para São Paulo é afetada por um acidente de carro que obriga a família a regressar a Florença. Nando então busca novamente Anita e trai sua esposa. Tremendamente apaixonada por Nando, Lúcia descobre aos poucos a infidelidade do marido. Ao mesmo tempo, Anita se envolve com Zezinho, um adolescente de quinze anos do interior de Minas Gerais, inexperiente, medroso, sobrevive trabalhando no armazém em frente ao sobrado recém-alugado por Anita. Zezinho começa a amá-la e se propõe a enfrentar diversas vezes Nando. O final trágico é o destino dos personagens que “morrem por amor”.

O elenco da produção ainda conta com Vera Holtz (Marta), Carolina Kasting (Julieta), Noemi Gerbelli (Suzana), Walter Breda (Antonio), Umberto Magnani (Dr. Eugênio), André Cursino (Anselmo), Alexandre Barros (Heitor) e Linneu Dias (Venâncio).

No Plano da Expressão, destacamos os seguintes indicadores: ambientação, caracterização dos personagens, trilha sonora, fotografia e edição.

A minissérie tem ambientação em seu primeiro capítulo na cidade de São Paulo e o restante na fictícia cidade de Florença. Para compor o ar de cidade de interior, as externas de praça e ruas foram realizadas nas cidades de Vassouras e a locação da fazenda da família de Lúcia em Valença, ambas no interior do estado do Rio de Janeiro. Uma cidade cenográfica foi construída nos Estúdios Globo, antigo Projac, para abrigar o sobrado de Anita e o armazém onde trabalha Zezinho.

presenca1.mp4_snapshot_00.41.54_[2017.05.15_11.34-tile

A cidade interiorana estagnada no tempo e repleta de casarões antigos e ruas de paralelepípedos dialoga com o conservadorismo de Venâncio, ex-prefeito da cidade e pai de Lúcia, Julieta e Marta. O político, que tenta reeleição, se mostra explicitamente machista e homofóbico em vários diálogos, e por isso em quase todas as ocasiões é reprovado pelos outros personagens. Como, por exemplo, o diálogo do penúltimo capítulo, quando Venâncio comenta sobre a questão de sua reputação na cidade após o conhecimento público da infidelidade de Fernando: “Qual é o homem aqui que não dá suas puladas de cerca? Que não se enfia em bordel quando vai a São Paulo, hein? Todo mundo! Agora… se fosse coisa de viado… Desculpe, Edgar. Aí sim, pegava mal.”.

A ambientação rústica da fazenda comandada por Marta vai ao encontro das atitudes racistas e escravocratas da personagem, principalmente em relação a André (Taiguara Nazareth). Na cena de chegada de André para ser empregado, exibida no segundo capítulo, Marta o avalia pelo seu físico. Já no quarto capítulo, a personagem num diálogo com Neusa (Joanna Tristão) julga o relacionamento entre ela e André: “depois tem que ver… ele é negro, outra raça. […] Você é moreninha, moreninha clara, pode muito bem conseguir um rapaz branco”.

presenca1.mp4_snapshot_00.30.02_[2017.05.15_11.30-tile

O segundo indicador analisado no plano da expressão é a caracterização dos personagens. Assinado por Helena Gastal, o figurino de Anita ressalta a multiplicidade de personalidades da jovem. Quando se apresenta como Cíntia, o tom adolescente é demonstrado pelos vestidos e blusas de cores variadas, calças jeans, shorts curtos e tênis baixos; já como Anita, a personagem veste apenas uma calcinha de algodão, blusa de alça ou camisa masculina e uma gargantilha de estrela. Em contraponto, o figurino de Lúcia, que disputa Fernando com Anita, é composto de tecidos e cores suaves explicitando o romantismo e o pudor que caracterizam a personagem interpretada por Helena Ranaldi.

presenca2.mp4_snapshot_00.00.05_[2017.05.15_11.38-tile

Já a trilha sonora tem como base músicas em francês que escolhidas pelo próprio autor (MEMÓRIA GLOBO, 2008). Nos momentos de felicidade, Anita coloca em seu rádio “Pigalle” (de Georges Ulmer), já nos de tristeza sua música-tema é “Ne me quitte pas” (interpretada por Maysa). A escolha da versão de Maysa dialoga diretamente com sua personalidade passional e interpretações musicais eloquentes, compatíveis com a figura de Anita. A canção também é tema de abertura, a sequência é uma construção simbólica e didática sobre a temática da minissérie. Na abertura Anita “brinca” com uma casinha em miniatura. Num primeiro momento retira o ursinho de pelúcia de cena e, em seguida, retira um boneco masculino da cama onde estava com outra boneca. Isto é, esses dois momentos representam, respectivamente, a dualidade entre a ninfeta com ares infantis e a devassidão do adultério que estão presentes na narrativa. No fim da sequência, o fogo que, também considerado purificador, consome tudo.

presenca1.mp4_snapshot_00.01.00_[2017.05.15_11.43-tile

A trilha instrumental de Presença de Anita ajuda o telespectador a identificar a intenção da cena que está no ar. Esse aspecto pode ser observado na primeira cena do primeiro capítulo em que a trilha eletrônica no fundo indica tensão, assim como o jazz ressalta a sedução, já as músicas no piano fazem menção à melancolia dos personagens.

A fotografia, assinada por Elton Menezes, não apresenta interferência no universo ficcional proposto. A única exceção ocorre para demarcar as cenas de flashback onde Fernando se recorda de Anita utilizando de um efeito de clareamento de imagem atenuando os tons de branco.

presenca1.mp4_snapshot_01.09.25_[2017.05.15_11.45.05]

Na edição encontra-se a maior diferença da adaptação para televisão e a obra de Mário Donato. Isto é, a trama segue a ordem cronológica, enquanto o livro transcorria em flashback. Também pela edição ficam claros os sentimentos que Anita nutria por seus parceiros, nas cenas com Nando são usados cortes rápidos, ritmo acelerado, demonstrando a sexualidade presente na relação dos dois. Já nas sequências de Zezinho os cortes são longos e pausados, indicando o romantismo e a adoração que o jovem sentia por Anita.

O uso da câmera em Presença de Anita busca trazer o ar de mistério, sensualidade e do proibido. As cenas fazem referência aos voyeurs que observam de suas janelas o que acontece no vizinho. Como, por exemplo, no arco narrativo central, com Zezinho e Antonio observando Anita e Nando de seu quarto, e também no secundário onde Marta espia o sexo de André e Neusa no quarto do rapaz. A utilização do recurso busca também representar as possíveis reações do telespectador quanto ao que está sendo apresentado. Já o erotismo presente na trama é demonstrado na presença de nudez feminina e masculina, closes e passeios lentos da câmera pelo corpo dos atores.

presenca2.mp4_snapshot_01.01.45_[2017.05.15_11.46-tile

O efeito de câmera lenta é utilizado nas cenas com maior tensão como, por exemplo, no acidente da família no segundo capítulo e no desespero de Zezinho no penúltimo capítulo, onde acaba sendo atropelado.

No Plano do Conteúdo, iremos destacar os seguintes indicadores: intertextualidade, escassez de setas chamativas, efeitos especiais narrativos e recursos de storytelling. A intertextualidade esteve presente em momentos pontuais da história, o primeiro deles é quando Luiza (Julia Almeida), filha de Nando, conhece o sobrado de Anita e diz que a varanda da sacada lhe lembra “Romeu e Julieta”, tragédia de Shakespeare que também culmina na morte de dois amantes. Em outro momento, é quando Lúcia e Julieta citam Menotti del Picchia. Menotti teve relação direta com Mario Donato, quando os dois trabalharam juntos na União Jornalística Brasileira. Entretanto, essas referências externas ao universo ficcional de Presença de Anita não interferem na compreensão da narrativa.

Apesar de ser uma trama com poucos capítulos e em ordem cronológica a minissérie usa constantemente as setas chamativas para ajudar o telespectador a se inteirar dos arcos narrativos. Como, por exemplo, a personagem Marta que se torna confidente e, diversas vezes, dialoga com Lúcia sobre o que ela descobriu sobre a traição. As conversas entre as personagens fazem uma espécie de resumo para o telespectador, apresentando os principais desdobramentos do casamento de Lúcia. Os voyeurs também cumprem este mesmo papel, cada de Nando a Anita é prontamente narrada no armazém. Além disto, Anita sempre lembra em seus diálogos que o sobrado onde vive foi palco de uma tragédia entre dois amantes, retomando o acontecimento em questão para o público.

O indicador de efeitos especiais narrativos não foi observado. A minissérie apresenta clímax e reviravoltas que já são esperadas na trama, não surpreendendo o telespectador a ponto de ele ter de reconsiderar tudo que lhe foi apresentado.

Os recursos de storytelling são pouco utilizados em Presença de Anita, assemelhando a minissérie do formato da telenovela: as analepses são usadas de forma didática. O artifício é utilizado para relembrar algum fato importante já exibido, como, por exemplo, o isqueiro de Fernando esquecido no sobrado de Anita, e também para aprofundar o passado de Anita.

presenca5.mp4_snapshot_00.25.30_[2017.05.15_11.49-tile

Através do flashback descobrimos que Anita era pobre e, aos 11 anos foge de casa, se deixa pintar nua por Armando, de quase 50 anos. Também nestas cenas, fica explícita sua carência afetiva.

Por fim, também um recurso possível de storytelling, as sequencias fantasiosas (não anunciadas, que causam uma dúvida temporária e esforço de compreensão no telespectador), não foram também constatadas na minissérie.

Por Léo Lima

* Todas as imagens da minissérie usadas nesta análise são capturas de tela.

Referências:

Autores: Histórias da Teledramaturgia. MEMÓRIA GLOBO. Globo: Rio de Janeiro, 2008

 
Ficha Técnica:

  • Autoria: Manoel Carlos, livremente inspirado na obra Presença de Anita de Mário Donato
  • Direção: Edgard Miranda
  • Direção-geral: Ricardo Waddington e Alexandre Avancini
  • Direção de núcleo: Ricardo Waddington
  • Número de capítulos: 16
  • Período de exibição: 07/08/2001 – 31/08/2001
  • Horário: 22h30

Observatório da Qualidade no Audiovisual

Comentar