Observatório da Qualidade no Audiovisual

Profano

  • Artista: Jaloo
  • Álbum: MAU
  • Data de lançamento: 2024
  • Gênero: Pop/Alternativo
  • Categorias: Margem e Narrativa/Performance 

Por Paulo Medeiros

Videoclipes, com suas narrativas e imagens disseminadas, fornecem símbolos, mitos e recursos que ajudam a construir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo, de forma transnacional e global (Sá et al, 2015). Desta forma, o objeto audiovisual visa passar uma mensagem através de diversos elementos visuais, narrativos, estéticos e, para isso, alguns recursos do cinema também são incorporados, como elementos de cenografia, roteiro, direção de arte e diversos outros. 

O videoclipe de Profano, faz parte do álbum MAU da cantora Jaloo. Ao longo de sua carreira, a cantora explorou diversas facetas de sua identidade, culminando na trilogia de álbuns que se encerra com MAU. Este álbum marca uma fase significativa de sua trajetória, em que Jaloo adota publicamente pronomes femininos e celebra sua identidade feminina. Esta análise irá se debruçar sobre o videoclipe de Profano, pretendemos refletir de que modo a identidade e os temas que perpassam este conceito são abordados e quais elementos estéticos e intertextuais compõem este conteúdo audiovisual.

Desde o lançamento de seu primeiro álbum, Jaloo tem desafiado as convenções musicais e sociais. Sua trilogia de álbuns, que se encerra com MAU, é um testemunho de sua evolução artística e pessoal, pois além de marcar sua transição, também explora temas de prazer e autoaceitação. A artista utiliza sua música como uma plataforma para refletir suas experiências e promover a visibilidade da comunidade LGBTQIAPN+, como ressaltado em entrevistas e declarações públicas.

Em MAU, Jaloo usa sua música para enfrentar e desconstruir as normas de gênero e sexualidade, abordando suas experiências pessoais de forma direta e sensível. A trilogia de álbuns da artista, especialmente MAU, é um reflexo de sua jornada de autodescoberta e aceitação, oferecendo ao público uma visão íntima de suas lutas e triunfos. O álbum é descrito como uma obra que encapsula a complexidade de sentimentos e experiências de Jaloo, desde o prazer até a vulnerabilidade.

Em entrevista para o Papelpop, ela reflete: 

Uma das coisas que mais penso em relação aos meus próprios discos é o quanto o ser humano muda. A gente sempre pensa que é incapaz de se transformar, mas quando o tempo passa e você consegue olhar para si mesma, dá pra ver que deixamos de ser tantas coisas (Papelpop, 2024, On-line)

Dirigido por Dauto Galli, que já produziu vídeos publicitários, campanhas de moda, fashion films, video arts, programas de televisão e curtas metragem, em Profano Jaloo celebra a vida, explorando sua liberdade em uma noite uma noite na balada com amigos, incluindo à cantora Urias. Além disso, ela também nos mostra alguns encontros casuais com homens, que acabam acontecendo em algumas dessas noites e reflete sobre essas questões à partir de sua sexualidade. Como é possível observar logo no início do videoclipe, em que a cantora aparece gritando debaixo da água na banheira após o término de um desses encontros.

Esta cena pode ser interpretada como uma releitura do clássico Requiem for a Dream (Darren Aronofsky, 2000), que por sua vez se inspirou no animê Perfect Blue (Satoshi Kon, 1997), e obteve os direitos da cena para reproduzi-la em seu filme que atualmente é considerado um grande clássico do cinema contemporâneo. 

Após essa intertextualidade, a música começa com o potente verso: “E agora sou tão profano; E você, quem diria, sagrado, amor; Oh, uou; Essa vida louca que não pára de surpreender; E é você quem me vê; Voar“, enquanto Jaloo se deita ao lado de um homem que, aparentemente, acabou de ter um encontro. A palavra “profano” carrega uma carga simbólica poderosa, geralmente se refere a algo que é visto como impuro ou sacrílego. Na sociedade, a transexualidade muitas vezes é vista como “profana” por aqueles que não compreendem ou aceitam essas identidades. No entanto, Jaloo subverte esse conceito, apresentando a transexualidade como algo belo, poderoso e digno de celebração. Este paradoxo reflete as lutas enfrentadas pela comunidade LGBTQIAPN+, que continua a desafiar e a resistir às normas opressivas.

O uso de cenários simples, como uma cama com lençóis brancos, tecidos leves, nos momentos de intimidade com os homens, contrasta com a intensidade das emoções representadas. A ambientação reforça a ideia de pureza e vulnerabilidade, ao mesmo tempo que subverte essas noções com a exploração do desejo e da sensualidade.

Logo nos primeiros minutos do videoclipe, observamos Jaloo encontrando a cantora Urias em uma festa e, após cruzarem os olhares, elas começam a dançar juntas. É possível perceber que o vínculo se estabelece como uma relação de amizade, visto que, Urias se apropriou publicamente de sua identidade de gênero antes de Jaloo. Deste modo, nas entrelinhas é como se Urias estivesse ali como um apoio, um ombro amigo, para Jaloo, que só apareceu publicamente como transexual agora com seu mais recente trabalho, MAU

Os close-ups no videoclipe são utilizados para capturar a intensidade das expressões faciais, transmitindo a profundidade emocional da conexão entre Jaloo e Urias. Esses ângulos criam uma sensação de proximidade e intimidade, permitindo ao espectador sentir a vulnerabilidade e a paixão das artistas. A iluminação dramática e a paleta de cores quentes, com predominância de tons em vermelho, dourado e azul, evocam uma atmosfera de paixão e desejo, que são reforçadas pelo saxofone que faz parte da canção. A luz e as sombras são usadas simbolicamente para destacar a dualidade da vulnerabilidade e do poder na intimidade. 

No fim dessas noites de celebração de sua identidade, Jaloo têm alguns encontros que são também representados no videoclipe. Em um deles, ela sai de moto com um homem e a cena faz referência, mesmo que indiretamente, ao videoclipe de Ride da cantora estadunidense Lana Del Rey.

No início do videoclipe de Lana Del Rey a cantora está recitando um poema e este texto também pode ser correlacionado com a fase em que Jaloo está tanto de sua carreira como de sua vida pessoal. 

Porque eu nasci para ser uma mulher diferente… que não pertencesse a ninguém e que pertencesse a todos. Que não tinha nada, que queria tudo… com ânsia por todas as experiências e uma obsessão pela liberdade que me assustava a tal ponto que eu não era capaz de pensar em falar nisso e que me levou a um momento nômade de loucura que me deslumbrou e me deixou zonza…” (tradução do YouTube).

Na cena seguinte, vemos a cantora usando o mesmo vestido que usava enquanto estava na moto com o homem, porém dessa vez ela está correndo coberta de sangue e isso é refletido na frase que abre a música. Aqui, ela troca “voar” por “sangrando”, fazendo referência direta à cena em questão. “E agora sou tão profano; E você, quem diria, sagrado, amor; Oh, uou; Essa vida louca que não pára de surpreender; E é você quem me vê; Sangrando

Jaloo, figura transformadora na música brasileira contemporânea, é conhecida por suas músicas que trazem suas vivências, identidade e capacidade de desafiar normas através de sua arte. O álbum MAU é uma expressão íntima e visceral das experiências de Jaloo. Profano, uma faixa deste álbum, é um exemplo potente de como a artista utiliza o audiovisual para expressar sua identidade e emoções. O videoclipe, dirigido por Dauto Galli, narra as próprias experiências da cantora, mas também amplia a discussão sobre a realidade das pessoas trans no Brasil. Jaloo usa sua visibilidade para destacar as dificuldades enfrentadas pela comunidade, ao mesmo tempo em que celebra a beleza e a força da identidade trans. Essa abordagem torna MAU um álbum com apelo além de artístico, mas também social.

A realidade da transexualidade no Brasil é marcada por um paradoxo doloroso: o país é um dos que mais mata travestis e transexuais, mas também um dos maiores consumidores de pornografia envolvendo essas identidades. Esta contradição pode revelar uma sociedade hipócrita e violenta, onde a aceitação pública e a segurança das pessoas trans ainda são uma luta constante (Mota Junior; Gutmann, 2021). Jaloo, ao adotar publicamente sua identidade feminina e explorar abertamente temas de sexualidade em sua música e videoclipes, desafia essa realidade brutal e utiliza sua arte como uma forma de resistência e visibilidade.

A carreira de Jaloo é um exemplo de como a arte pode ser um poderoso meio de expressão e resistência. Através de suas músicas e videoclipes, a cantora entretém, mas também provoca reflexões profundas sobre identidade, intimidade e aceitação. Sua trajetória é um reflexo das lutas e conquistas da comunidade LGBTQIAPN+ e Profano é um testemunho de sua capacidade de transformar experiências pessoais em uma arte que ressoa com muitos.

Referências

Jaloo e URIAS dançam agarradinhas no clipe de “Profano”, que acaba de sair. PAPELPOP, On-line, 2024. Disponível em: https://bit.ly/46RNLg9 Acesso em: 21 ago. 2024 

Jaloo, que canta nesta sexta (5) em SP: “É divertido ver as várias personas que habitam em mim saírem para passear”. PAPELPOP, On-line, 2024. Disponível em: https://bit.ly/3WXJfIc . Acesso em: 21 ago. 2024 

MOTA JUNIOR, E. A., & GUTMANN, J. F. #EstamosVivas: corpo travesti em performances no videoclipe Oração de Linn da Quebrada. Esferas, v.19, p.13-23, 2021. DOI https://doi.org/10.31501/esf.v0i18.12344 

SÁ, S. et al. Cultura Pop. Salvador: Edufba, 2015.

20 anos do Dia da Visibilidade Trans no Brasil: pelo 15º ano consecutivo, o país lidera o ranking mundial de quem mais mata pessoas trans. APUBHMG+ Sindicato dos Professores, 2024. Disponível em: https://bit.ly/3X2qWSu  Acesso em: Acesso em: 21 ago. 2024  

 

 

 

 

 

 

 

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