Por Gustavo Furtuoso
De um lado, uma criança famosa, inconsequente e mimada, mas amada pelo público e pelos patrocinadores. Do outro, uma subcelebridade caindo no ostracismo, mãe, supostamente divorciada, ainda um pouco inconsequente, porém corajosa, independente e que sabe muito bem onde quer chegar. O embate entre essas duas Samanthas, a criança do passado que integrava a Turminha Plim Plom e a atual, mãe solteira que tenta reaver a fama a todo custo, é o grande eixo norteador da série de comédia Samantha! lançada pela Netflix em 2018 e composta de duas temporadas, de sete episódios cada.
A trama é criada por Felipe Braga, com direção de Luis Pinheiros e Julia Jordão, e roteirizada por Roberto Vitorino, Patricia Corso, Rafael Lessa e Filipe Valerim. Segundo Felipe, em entrevista, a ideia surgiu de uma protagonista feminina “com nome, papel e título”, descrevendo a personagem como inteligente, orgulhosa por suas conquistas, tanto no trabalho quanto na esfera familiar, e que se posiciona enquanto uma líder com vontade de ocupar novamente o espaço de destaque que tinha no passado.
Essa relação com o passado é um ponto no qual a série faz grandes apostas, explorando a nostalgia de programas infantis que permeavam não somente a televisão brasileira, mas de diversos países pelo mundo. Isso porque, sendo desenvolvida em parceria com a produtora Los Bragas, a produção chegou ao público brasileiro após o sucesso das duas primeiras séries originais produzidas pela Netflix Brasil, O Mecanismo e, sobretudo, 3%, distopia que foi composta por quatro temporadas e que alcançou reconhecimento internacional. Nesse contexto, Samantha! foi lançada com a intenção de ser a primeira comédia nacional da plataforma e tentando, também, dar continuidade ao sucesso que as duas produções anteriores.
A protagonista é apresentada ao público em duas linhas temporais que são chave para a trama. A Samantha criança (Duda Gonçalves), está sempre caracterizada enquanto integrante da Turminha Plim Plom, grupo infantil de sucesso do qual fez parte na infância. Raramente temos momentos da personagem usando roupas comuns ou em algum ambiente que não seja o estúdio de gravação de seu programa de TV [Figura 1]. Essa recorrência do figurino e da ambientação ajudam a construir a narrativa de que ela foi uma criança precoce, que cresceu em meio ao show business e foi privada de uma infância comum, como de outras crianças.
Já a Samantha adulta (Emanuelle Araújo) apesar de ainda usar as roupas chamativas para se apresentar nos palcos, aparece em tela com roupas comuns, acompanhada de seus filhos, seja nos locais onde faz shows ou em casa, já que a personagem não tem separação entre sua vida pessoal e sua vida pública. Mesmo assim, está preparada para as câmeras e não dispensa uma produção no cabelo e na maquiagem. Ela já não tem a petulância que sua versão criança tinha, embora seja bastante teimosa, e se mostra como alguém que ama seus filhos e amigos e que evoluiu ao longo das últimas décadas.
A narrativa acompanha a personagem nas tentativas de retornar ao sucesso e na gradativa reconciliação com seu suposto ex-marido Dodói (Douglas Silva). Sendo um ex-jogador de futebol recém saído da prisão por um crime pelo qual levou a culpa, o retorno de Dodói para casa traz consigo paparazzis e o interesse da mídia, motivo pelo qual a protagonista o aceita de volta, pensando que isso pode alavancar sua carreira novamente. Porém, com o desenrolar do tempo, os dois vão percebendo que ainda são apaixonados e eventualmente reatam o romance.
Completando o núcleo principal temos os filhos do casal: Cindy e Brandon. Os quatro formam o grupo de personagens que permanece recorrente ao longo de todos os episódios das duas temporadas. Cindy é uma garota que está entrando na adolescência e que se identifica com diversas causas sociais. Ela se mostra como uma jovem consciente, conectada e que tem dilemas com a mãe ser um ícone dos anos 80 que representa uma série de valores que já se tornaram ultrapassados. Já Brandon é o caçula da família, mas não se sente uma criança. Ele gosta de ler, escrever e tem aversão a quaisquer brincadeiras ou comportamentos infantis, vendo-se como um jovem adulto. Enquanto Cindy usa roupas mais básicas, sem muitas peças marcadamente femininas e muitas blusas com estampas das causas que defende, Brandon usa roupas de um estilo nerd, sempre com seus óculos e livro de memórias que está escrevendo. Ambas as caracterizações reforçam as premissas dos personagens e dos arcos que vão desenvolver [Figura 1B].
Além do núcleo principal, temos outros personagens que aparecem de forma recorrente, mas não estão sempre presentes nos episódios. Alguns deles são Marcinho, o empresário, Laila, a influencer, e Tico e Bolota, parceiros de Samantha da época dos Plim Plons. Como será abordado a seguir, a aparição desses demais personagens não se dá de forma isolada e, consistentemente, os eventos de cada episódio se fazem presentes nos seguintes, seja a partir de diálogos, índices ou arcos inteiros.
Dos holofotes aos bastidores
Dentro dos eventos da trama, podemos destacar apenas Samantha e Dodói como tendo arcos mais proeminentes, que evoluem ao longo das temporadas e promovem uma transformação nos personagens. No caso da primeira temporada, o objetivo principal de Samantha é retornar aos holofotes, mas no último episódio, após todas suas tentativas, amadurece e abre mão da fama para ficar com sua família. Dodói também inicia como sendo um pai inexperiente, mulherengo e irresponsável, mas chega à season finale tendo conquistado o coração de Samantha novamente e construído uma boa relação com os filhos.
Já na segunda temporada, temos um novo caminho para a personagem: com uma biografia não-autorizada sendo produzida para difamar sua imagem, ela precisa mostrar – aos personagens da série e aos telespectadores – que não é mais imatura como seu antigo eu, da época dos Plim Plons. Ao fim da série, e após superar traumas de seu passado – ela atinge esse objetivo e se consolida enquanto uma atriz de teatro aclamada. No fim da segunda temporada, temos uma resolução também do arco vivenciado pela Samantha criança, através dos flashbacks, quando acompanhamos ela largando o programa de TV e conseguindo, enfim, uma vida de criança normal, longe do ambiente abusivo e traumático dos estúdios.
A segunda temporada também insere uma nova personagem no núcleo familiar: Socorro (Zezeh Barbosa), a mãe de Dodói. Além de oferecer um contraponto à narrativa de Samantha em ser uma órfã e ter traumas por nunca ter tido contato com sua própria mãe, a adição contribui para o arco de Dodói, que tenta ser mais independente e encontrar um novo sentido para sua vida que não seja uma forma de agradar aos outros, mas sim aquilo que realmente tem vontade. Personagens como Cindy, Brandon e Laila também amadurecem e evoluem ao longo da série, mas com arcos menos destacados que o do casal principal.
Para Mittell (2017) o piloto de um seriado cumpre algumas funções, como testar a equipe numa dinâmica de produção, apresentar de forma rápida e efetiva os personagens e tramas principais, manejar as expectativas do público quanto a gêneros e apresentar a estrutura narrativa que vai nos guiar pelos episódios. Dessa forma, o piloto tem uma carga de explicação muito maior para que possamos adentrar este novo universo que se coloca diante dos telespectadores. No caso de Samantha!, por exemplo, podemos observar no piloto uma recorrência bem maior de flashbacks do que nos demais episódios da série, visto que muitos dos aspectos atuais da vida da protagonista são justificados ou relacionados a acontecimentos de sua infância enquanto artista. Esses flashbacks também são bastante didáticos no sentido de serem feitos a partir de transições muito demarcadas, seja por um movimento de câmera ou pelo posicionamento de um objeto ou personagem. Essas marcações colaboram para explicar ao telespectador que estaremos constantemente alternando entre algumas linhas temporais, tendo duas delas como principais, e que existe uma relação de causa e consequência entre situações do passado e do presente.
A sequência de abertura da série é significativa neste sentido, pois consegue apresentar as raízes de Samantha enquanto uma criança que cresceu em meio aos estúdios de TV e imediatamente contrastá-la com sua versão adulta, decadente e nostálgica com relação a seu sucesso. Com o mesmo movimento de câmera e enquadramento, além da mesma coreografia executada pelas atrizes, temos um corte com elipse temporal que avança décadas na vida de Samantha, para a vermos num palco pequeno, mal iluminado e diante de uma plateia desmotivada. Há uma continuidade na música que ela canta nas duas partes da cena – a música da turminha Plim Plom [Figura 2]. Além da música, o figurino também é semelhante, assim como o cenário e a presença de Zé Cigarrinho, porém desta vez tudo soa meio fora de lugar, como se uma mulher adulta usasse roupas de criança. Após alguns segundos, um lettering informa que estamos em 2018.
O final do piloto, com a morte de Zé Cigarrinho, traz outra camada para a narrativa, um tema que é central à trama e que reverbera no interior da protagonista: a morte simbólica dos valores e ideais que moldaram sua infância, como o absurdo de uma publicidade de cigarros num programa infantil. Se a televisão do passado era problemática, Samantha é o resultado de todos esses problemas. Tendo crescido num ambiente que valoriza mais a busca pela audiência que a construção de um conteúdo de qualidade, ela se moldou a partir dessas referências e, hoje, num outro momento da sociedade e da televisão, ela vai ter que se adaptar para não perpetuar tais ideais e não ser cancelada diante de uma audiência mais consciente e com mais voz que há quatro décadas.
Tratando da construção visual da série, a primeira ambientação com a qual temos contato é o estúdio de gravação do programa dos Plim Plons. Este é um espaço importante, pois é o núcleo de toda a série. Foi ali onde Samantha cresceu enquanto criança, sem o cuidado de seus pais, e educada pelos produtores e companheiros de palco com quem convivia diariamente. Isso gerou um trauma na personagem que só é revelado na segunda temporada, quando descobrimos que ela é órfã, mas que é a raiz de toda a personalidade da personagem e também dos obstáculos que ela terá que superar ao longo da série. O cenário é bastante colorido, com uma iluminação intensa, excessiva, criando um clima artificial de alegria.
O estúdio é um local ao qual só temos acesso através das memórias dos personagens, com sequências que aconteceram no passado e não compõem a linha temporal do presente dos personagens. Assim, quando estamos neste espaço, temos uma configuração específica dos recursos visuais usados na série, como uma iluminação exagerada, figurinos coloridos e artificiais que dialogam com o cenário, trilha sonora do grupo infantil tocada de forma recorrente, além de enquadramentos que mimetizam a gravação de um programa de auditório [Figura 3].
Tais recursos são contrastados com a composição utilizada para a fase adulta de Samantha, com predominância de cores neutras nos cenários e uma iluminação mais natural. A principal ambientação nesta temporalidade é a casa da personagem, que contribui para caracterizar não somente ela, mas também os outros membros de sua família [Figura 4]. Apesar de às vezes um pouco bagunçada, o ambiente é claramente um lar, evidenciando que mesmo com as dificuldades em serem pais – Samantha, por ter que cuidar de sua carreira, e Dodói por estar só agora tendo que lidar com as responsabilidade da paternidade – ambos são figuras presentes e que zelam pelos filhos.
A fotografia não é um elemento narrativo tão central no sentido de revelar sentimentos de personagens ou criar atmosferas para momentos dramáticos. Tratando de uma série de comédia, é coerente que o aproveitamento de tais recursos seja no sentido de ressaltar situações cômicas, como a série faz ao demarcar cenas que envolvem gravações de comerciais, apresentações na TV ou outras situações do tipo. Recursos que vão desde enquadramentos e movimentos de câmera até a adição efeitos e outros recursos gráficos dialogam para criar alguns momentos que podem ser vistos como paródicos. O terceiro episódio da primeira temporada, que traz o show de talentos, é exemplo disso com o enquadramento usado para capturar Samantha e a apresentadora, tomando as personagens de frente para a câmera e olhando diretamente para ela. Planos como esses constroem uma composição imagética semelhante a de um programa transmitido ao vivo [Figura 5]. Além disso, nas cenas do programa dos Plim Plons, a textura da imagem e a tonalidade das cores também foram modificadas para remeter a uma filmagem em VHS, feita com câmeras analogicas, trazendo uma autenticidade à imagem e reforçando a verossimilhança do universo ficcional.
Neste episódio e em outros que trazem programas de TV ou lives em redes sociais, grafismos são utilizados para representar tais meios. No episódio em questão, cards com os nomes dos personagens foram utilizados, como se assistimos ao programa ao vivo . Anúncios de patrocinadores e vinhetas do próprio programa também foram incorporados na tentativa de trazer mais detalhes e texturas à paródia criada dentro da série [Figura 6]. As lives realizadas por Samantha quando a personagem finge que foi para Paris mimetizam os comentários e curtidas do Instagram, por exemplo, e a mensagem póstuma de Zé Cigarrinho também traz a moldura de um player de vídeo que ocupa toda a tela. Esses artifícios são recorrentes ao longo de toda a série, satirizando diferentes formatos consolidados em diversas formas de mídia.
A atuação do elenco colabora na criação desse universo duplo, no qual os atores se apresentam para câmeras que captam, de fato, suas performances, ao mesmo tempo que seus personagens também performam para câmeras ficcionais que fazem parte da ação desenvolvida no episódio. Na primeira temporada, por exemplo, podemos perceber isso quando Dodói se prepara para vencer o nervosismo e gravar um comercial. Neste momento, Douglas Silva, interpreta duas camadas de seu personagem, uma enquanto não está gravando e outra enquanto está de frente para as câmeras. Também podemos perceber isso nas personagens de Samantha – que muda sua postura quando está atuando em comerciais ou programas de auditório – e até mesmo com Cindy, quando se apresenta no show de calouros.
Essas variações colaboram com a criação de uma atmosfera que revela, aos telespectadores, um pouco dos bastidores da indústria do entretenimento, trazendo uma sensação de que, quando não estão de frente às câmeras na série, os personagens estão sendo pessoas comuns, gerando identificação. Os cenários metalinguísticos com essas cenas de bastidores, que mostram o contraplano com relação às imagens gravadas, são mais um elemento que tornam efetiva essa construção [Figura 7]. Como Samantha! trabalha muitos elementos transmidiáticos, trazendo elementos da ficção para as redes sociais como se fossem parte da realidade cotidiana, é fundamental que o texto da série também reforce isso, fazendo o reverso e criando situações que demarcam a inserção da realidade na ficção, como ao mostrar, intencionalmente, as câmeras e microfones ou convidar estrelas conhecidas como Gretchen para habitar o universo ficcional.
No que diz respeito à edição, a série trabalha na maior parte do tempo com um ritmo acelerado, com delimitação de objetivos que logo são perseguidos pelos personagens em cada episódio. As duas temporalidades são apresentadas de forma paralela muitas das vezes, com o arco narrativo que se desenrola no presente tendo alguma relação com um fato narrado no passado, de maneira a fortalecer as relações que Samantha guarda com sua infância e de salientar como elas moldaram sua identidade na fase adulta.
Uma visão da TV construída pelo streaming
A partir de alguns critérios de qualidade usados para identificar a forma com a qual a obra estimula habilidades interpretativas, críticas e de produção criativa no público, podemos perceber como a Netflix tenta acionar algumas memórias e referências sobre o ambiente televisivo brasileiro das décadas passadas. Com um tom de humor, a plataforma faz críticas ao conteúdo da programação que ia ao ar, em especial em programas infantis. Além de propor uma releitura desse período a partir de valores e entendimentos atuais, pode-se perceber também um discurso elaborado por uma das maiores empresas de streaming no mundo sobre o broadcasting televisivo, meio com o qual a plataforma disputa atenção do público e patrocínio de anunciantes. Os criadores da série aproveitam do teor cômico para exagerar em suas caricaturas, criando uma visão que reforça aspectos negativos da TV, sobretudo à busca por audiência a todo custo e às concessões que frequentemente faz para a publicidade, visto que atua em modelo comercial.
Por recorrerem à memória coletiva dos programas infantis dos anos 1980, podemos identificar o parâmetro da oportunidade utilizado pela Netflix em acionar a nostalgia de seus usuários. De forma estratégica, o tema poderia ter sucesso no mercado nacional ao mesmo tempo que gera identificação com telespectadores de outros países que também tiveram figuras semelhantes na TV. A similaridade da trajetória de Samantha com figuras conhecidas como Xuxa, e dos Plim Plons com o grupo Balão Mágico, configura uma forma com que a produtora conseguiu interpelar o público a partir de referências nostálgicas, acionando memórias que construíram em sua relação com a televisão no passado.
E isso não se restringe apenas às gerações que viveram o momento capturado pela estratégia nostálgica, funcionando também com uma audiência mais jovem que não teve contato direto com tais programas na TV, mas possuem tais referências devido à circulação de vídeos e memes na internet que resgatam esse período da televisão. Como aponta Lizardi (2014), por não terem a experiência vivida, os jovens interpelados por ações que envolvem nostalgia tendem a relacionar-se com o conteúdo de maneira mais afetiva que crítica, pois não possuem os contextos culturais e políticos nos quais aquele produto ou estética se consolidou. O uso de efeitos na imagem produzida por câmeras digitais, simulando uma captura analógica, ou a referência à publicidade do cigarro num programa infantil, são traços que criam sentidos para o telespectador jovem, mas não da mesma maneira que impactam as gerações anteriores.
Com tudo isso, a Netflix pode se apropriar de toda essa memória e atenção que o tema já tinha para apresentá-lo de forma atualizada e a partir de um olhar mais crítico, trazendo novos valores e discussões para problematizar questões como a publicidade infantil, por exemplo. Além disso, traz na trama o olhar de duas gerações diferentes, destacados principalmente nas discussões entre Samantha e Cindy, com a filha tendo o ponto de vista mais sensato entre as duas. O choque de gerações ajuda a trazer a discussão para próximo das famílias brasileiras e a inserir outros tópicos que ainda geram debate na sociedade, como o feminismo, valorizando a contribuição que as novas gerações podem trazer para as mais velhas.
O debate geracional colabora para a ampliação do horizonte do público, percebida em Samantha a partir das discussões sociais e ambientais que promove, e também na crítica a alguns comportamentos e visões de mundo que permeavam a televisão das décadas passadas. Além disso, a trama busca evidenciar como diversos produtos midiáticos são construídos, salientando as desconexões entre as situações de bastidores e aquilo que vai ao ar. Isso pode ser percebido em diferentes momentos da série, como no caos que acontecia nas gravações dos Plim Plons, apesar de o público sempre ter acreditado que eles eram amigos ou do dia a dia de Samantha no programa de namoro, que acompanhava sua vida, porém com todas as situações sendo manipuladas ou fabricadas.
Esse conflito de gerações é também uma marca da diversidade retratada pelo programa. As discussões sobre feminismo, concentradas entre Cindy e Samantha, mas não restrita somente a elas, dão voz a dois pontos de vista antagônicos e presentes na sociedade, enriquecendo o debate e ajudando a torná-lo mais palatável para pessoas não inseridas no assunto. Dodói e Brandon também discutem questões raciais, sobre identificação e pertencimento, visto que Brandon é branco, como sua mãe, e tinha dificuldades em perceber todas as nuances de sua identidade racial.
A série faz bastante uso de estereótipos na hora de criar personagens caricatos e situações engraçadas, mas não cai no senso comum sobre quais figuras utilizar. Por tratar da busca de Samantha por um espaço nos holofotes, o programa brinca com figuras da mídia e do entretenimento, como o empresário canalha, a produtora apressada, a diretora de teatro excêntrica e a influencer desesperada por atenção. Esses estereótipos são facilmente identificáveis pelo público e provocam o riso ao serem representados de forma exagerada.
Os meios também são encarados de forma estereotipada, com a televisão sendo uma mídia extremamente comercial e que atende às vontades dos patrocinadores, o teatro um ambiente demasiadamente artístico e irreverente e reality shows como produções demasiadamente manipuladas. A trama, inclusive, aborda diretamente o uso de estereótipos na filmagem de um comercial de cerveja com teor machista, no qual Samantha toma atitudes para reconfigurar a cena proposta e valorizar a posição da mulher.
Um dos pontos de originalidade da série é a opção por uma anti-heroína feminina como protagonista e os elementos usados para desenvolvê-la. Tradicionalmente, a figura do anti-herói costuma caracterizar tramas com temas mais densos, na esfera do drama criminal, policial ou outras variações, com protagonistas masculinos. Em Samantha, temos uma mulher de moral dúbia não por ser uma criminosa ou mesmo por ter um lado mau, mas por buscar a fama a qualquer custo, o que compromete sua índole em alguns momentos e que faz com que a reconheçamos como alguém passível de falhas. Para destacar esse lado bom da personagem, ela é frequentemente contrastada com outras figuras que também trabalham no ramo do entretenimento mas que são ainda mais inescrupulosas que ela, trabalhando a ideia de moral relativa (Mittell, 20170 que faz com que tomemos a protagonista como alguém que pode cometer erros, mas em quem podemos ter esperança de redenção.
A série também experimenta ao criar dinâmicas específicas para alguns episódios/temas trabalhados, sem comprometer o andamento mais geral da narrativa. Isso acontece, por exemplo, no episódio do show de talentos, em que há muitas vinhetas que demarcam um ritmo cômico que contrasta o nome do programa fictício – Enjaulados Kids – com situações extremas ou nada adequadas para crianças. Em outro episódio, em que Samantha participa de um reality show de namoros, também há uso de câmera na mão num estilo documental, assim como relatos de confessionários para que os personagens comentem as próprias ações. Isso não teria lugar em outro momento da temporada, mas enquanto telespectadores, conseguimos compreender que aquela estrutura é motivada pelo tema representado e extrair camadas de humor propiciadas por ela.
Um outro aspecto de originalidade, ao qual será dado maior destaque ao tratar das estratégias de transmidiação utilizadas para a série, é o de mesclar o universo ficcional com o repertório do público a partir de referências televisivas, aparições de celebridades e da criação de marcas fictícias que funcionam como patrocinadores dos programas retratados. Quando vemos Gretchen conversando com Samantha como se fosse sua amiga e Luciana Gimenez ou Nicole Bahls fazendo testes para interpretar a protagonista em seu filme biográfico, cria-se a sensação de que a personagem é que foi transportada para o mundo real e não o contrário. Como será abordado no segundo texto desta análise, voltado à dinâmica de transmidiação da série, tais estratégias foram ampliadas através de publicações no Instagram oficial da personagem, que funciona como um perfil pessoal e posta momentos inéditos de sua vida nas redes e com os quais podemos interagir, como outra celebridade qualquer.
Criação audiovisual e competência midiática
Como já tratado, os recursos empregados pela série para criar paródias de formatos midiáticos são um ponto de experimentação que Samantha! desenvolve com resultados bastante efetivos. A composição imagética que mimetiza formatos consolidados na TV, na publicidade ou no teatro, recorrente em diversos episódios, é elaborada de forma a ativar uma memória do público com relação a esses meios, brincando com algumas de suas características de forma caricata para provocar humor.
Além disso, o estabelecimento de uma relação entre os sucessivos episódios também é uma solução criativa que o programa opera de maneira interessante. Tais ganchos criam uma estrutura narrativa que favorece o binge watching, visto que, sendo normalmente um acontecimento ou personagem novos, que aparecem de forma descontextualizada, criam uma curiosidade no telespectador para assistir ao início do próximo episódio. Esses ganchos são desenvolvidos numa lógica recorrente de causa e consequência. Por exemplo, quando a personagem vai gravar um comercial de TV, Samantha reencontra uma antiga amiga de sua época, que ao final do episódio entra em contato para lhe oferecer uma vaga na bancada de jurados de um show de calouros.
Essas costuras reforçam a lógica de causalidade que é extremamente importante para a série, que reaproveita elementos já presentes na história para fazê-la avançar de maneira sucessiva. Essa causalidade também marca a relação entre as duas temporalidades que acompanhamos, com o passado justificando atitudes, eventos ou traços de personalidade que existem no presente. Os arcos episódicos representam as diferentes peripécias de Samantha em busca da fama, já os arcos seriados dialogam com a infância da personagem e sua identidade enquanto uma mulher adulta. Com isso, percebemos uma tentativa de experimentar com uma estrutura que utiliza a relação de causa e consequência para articular os recursos narrativos num formato mais comumente presente em dramas, que possuem episódios com duração mais longa e, consequentemente, personagens mais aprofundados.
Embora a série promova certa desorientação temporária, como característico de narrativas complexas, exemplificada nesses ganchos entre episódios, é possível notar a presença de setas chamativas que auxiliam o mecanismo da narrativa a balizar o entendimento do telespectador sobre a trama. Tipicamente, séries de comédia vão fazer uso de algumas deixas como atuações mais demarcadas, efeitos sonoros, enquadramentos específicos e até mesmo risadas e palmas da plateia, no caso de sitcoms. Samantha faz uso de alguns desses elementos em momentos que buscam ressaltar algumas piadas, como olhares de reprovação de Cindy para falas da mãe ou Laila divagando para a câmera enquanto faz suas lives no Instagram.
Sequências que intercalam entre distintas temporalidades também são construídas de maneira didática, com os flashbacks, por exemplo, sendo motivados por uma memória ou objeto, que se mantém em tela conforme viajamos no tempo, promovendo uma continuidade no enquadramento que evidencia a transição [Figura 8]. A cena de abertura da série já nos familiariza quanto a isso, pois cria uma transição da Samantha criança no palco do programa infantil, para Samantha adulta e decadente num palco de boate. A música, o movimento de câmera, enquadramento e a pose da atriz são todos mantidos, numa espécie de tutorial que antecipa outras construções do tipo que ocorrem ao longo dos episódios. Mesmo o figurino de Samantha é similar, com a mesma tiara na cabeça, o que trabalha no sentido de apresentá-la como uma criança que envelheceu, mas ainda guarda muitas relações com e similaridades com quem era anos atrás. Ou seja, a transição não somente nos transporta no tempo, mas a continuidade dos demais elementos nos indica que a personagem ainda vive, de certa forma, no passado.
Um efeito especial narrativo acontece numa história quando temos acesso a uma informação ou presenciamos um evento tão significativo que muda nossa forma de encarar os personagens, suas relações e as expectativas que tínhamos para o futuro. No caso de Samantha, podemos identificar um momento do tipo na segunda temporada, quando a personagem descobre um trauma ao encenar uma peça de teatro. Sem conseguir pronunciar a palavra “órfã”, que encerra seu monólogo, ela tenta uma terapia não convencional para desbloquear memórias que escondia de si mesma. Ao fim do processo, descobrimos que na verdade Samantha é uma criança órfã, que cresceu sem os pais e foi criada por membros da equipe de seu programa infantil. Essa revelação provoca um efeito especial narrativo, pois ela justifica o comportamento da personagem tanto no passado quanto no presente e faz com que tenhamos ainda mais aliança com ela.
Samantha não era uma criança malcriada, inconsequente e malvada, mas uma garota solitária, sem uma rede de apoio e que foi explorada desde jovem ao trabalhar na televisão. E Samantha adulta não é uma mulher relapsa, sem senso ou limites, ela apenas foi, literalmente, criada pela televisão aberta e todos os valores que eram veiculados para a sociedade. Ela representa uma geração que se espelhou nas figuras que via na mídia e que, conforme a série captura, não eram referências tão boas assim. Com isso, entendemos melhor as motivações e falhas da personagem e a vemos mais como vítima da situação, do que uma agente de seu destino que está vivendo a consequência de suas escolhas.
Tal efeito narrativo, de só em certo momento revelar uma informação que já era fato na série desde seu princípio, foi obtido a partir de recursos de storytelling que possibilitam aos telespectadores acessar informações da trama que não se mostravam para nós e que demandam arranjos específicos para acontecer. No caso da revelação de que Samantha é órfã, foi criada uma situação na diegese – a personagem participa de uma sessão de hipnose para lidar com um trauma de sua infância – que justificava a abordagem mais fantástica da sequência em questão. Pela primeira e única vez na série, temos um encontro entre as duas versões de Samantha em um mesmo espaço, interagindo entre si [FIGURA 9]. O pretexto da hipnose permite com que o público aceite o acontecimento, por mais que vá de confronto com as regras definidas pelo universo ficcional, pois conseguimos compreendê-lo como uma sequência onírica, que reflete o inconsciente da personagem enquanto acessa memórias até então recalcadas e faz as pazes com sua situação. Além dessa sequência atípica, os inúmeros flashbacks são outro exemplo de recursos narrativos utilizados para dinamizar a história e apresentá-la a partir de um percurso planejado, que nos conduz pela trama a partir de uma intenção, e não apenas num desenrolar mecânico de acontecimentos.
Outro aspecto que chama atenção em Samantha são as referências intertextuais exploradas As paródias que a série faz de outros tipos de programas, como já citado no texto, só são compreendidas quando o público as compara com as versões originais. Isso permite perceber como há um exagero na representação feita pela série e, com isso, provocar situações de humor. Uma referência que também é usada de forma implícita é do reality show A Fazenda, que reconhecidamente conta com a participação de celebridades fora do auge de suas carreiras, como é o caso de Samantha. Algumas piadas são feitas com ela aludindo ter participado do programa e dizendo que não se deu bem com os bichos. Mesmo não tendo citado o nome A Fazenda – na série, ela usa o termo “aquele reality” – o público é capaz de perceber a referência feita. Isso também contribui para reforçar a ideia de que Samantha é, de fato, alguém da vida com um passado na televisão.
Ao tentar mesclar ficção e realidade e construir um universo narrativo consistente, Samantha! se configura como uma série de comédia com diversas camadas. Apesar de não chegar a ser uma comédia complexa (Mittell, 2017), a produção está repleta de referências e piadas implícitas, tanto a elementos extra diegéticos quanto a momentos internos da trama que são retomados em episódios posteriores, demandando atenção do público para atingir os efeitos propostos. Além disso, trata de convenções e construções usadas na TV e no audiovisual, de forma geral, para tecer comentários a respeito de como a televisão, há não muito tempo, conteúdos que hoje não seriam igualmente aceitos. Isso gera identificação com os telespectadores a partir da nostalgia e posiciona a Netflix – a partir do discurso construído – como plataforma consciente com relação aos ideais de qualidade e produção/curadoria de conteúdo na atualidade.
Referências
LIZARDI, M. Mediated Nostalgia: Individual Memory and Contemporary Mass Media. Londres: Lexington Books, 2015.
MITTELL, J. Complex TV: The poetics of contemporary television storytelling. Nova York: NYU Press, 2015.
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