Observatório da Qualidade no Audiovisual

Poéticas tecnológicas: mapeamento de obras digitais narrativas e interativas (1990-2010)

Caracterização do Problema

“…quando surge um novo meio de produção de linguagem e de comunicação, observa-se uma interessante transição; primeiro o novo meio provoca um impacto sobre as formas e meios mais antigos. Num segundo momento, o meio e as linguagens que podem nascer dentro dele são tomados pelos artistas como objeto de experimentação.” (Kac apud Santaella, 2003, p. 156)

As artes sempre foram produzidas com os meios de seu tempo. Percebemos que, ao longo do século XX, inúmeros diálogos foram estabelecidos entre as mídias e as artes. O advento da tecnologia digital e a consequente convergência midiática trouxeram novos desdobramentos para esta relação e promoveram o surgimento de novas formas de expressão artística e comunicativa que refletem, principalmente, as hibridizações de linguagens disponibilizadas por esta tecnologia.

O conceito de artemídia (media arts em inglês) vem sendo adotado para refletir sobre esta confluência das mídias com as artes. Machado (2008, p. 7) define o termo como “formas de expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos das mídias e da indústria do entretenimento, ou intervêm em seus canais de difusão, para propor alternativas qualitativas”. O termo compreende tanto as experiências de diálogo, colaboração e intervenção crítica nos meios de comunicação, quanto quaisquer experiências artísticas que utilizem recursos tecnológicos.

Por seu turno, Arantes (2009, p. 24-5) estende esta definição, preferindo usar o termo artes em mídias digitais que abrange “as formas de expressão artísticas que se apropriam de recursos tecnológicos desenvolvidos pelas indústrias eletrônico-informáticas e que disponibilizam interfaces áudio-tátil-moto-visuais propícias para o desenvolvimento de trabalhos artísticos, seja no campo das artes baseadas em rede (online e wireless), seja na aplicação de recursos de hardware e software para a geração de propostas estéticas off-line.”

Neste sentido, é importante refletir sobre as formas pelas quais estes conceitos estão se entrelaçando com o intuito de propor novas poéticas na contemporaneidade. Muitas delas são estruturadas a partir da hipermídia, a linguagem por excelência da cultura digital. Para Gosciola (2003: 34-5) o conceito de hipermídia agrega um conjunto de linguagens como a fotográfica, a sonora, a visual, a audiovisual e a cinematográfica, diferenciando-se da multimídia por ser mais interativa e permitir o acesso não-linear de links e conteúdos, bem como do hipertexto, por apresentar mais conteúdos audiovisuais. Os elementos estruturantes da hipermídia são os links e os conteúdos, sendo a repetição dos links responsável pelo ritmo e pela unicidade da hipermídia.

Santaella (2003, p. 95) ressalta que na cultura digital a negociação entre o sujeito e a máquina se processa por meio de uma nova linguagem, um sistema interativo configurado através de uma sintaxe a-linear que possui um modo de ser múltiplo, associativo, fragmentário e rizomático que se aproxima do próprio modo de ser do conhecimento humano: complexo, paradoxal e reticular. Com isso, podemos afirmar que os traços definidores da hipermídia são a Hibridização de linguagens; a Capacidade de armazenar informações por meio de bancos de dados; a Não-linearidade; a Navegação: o mapeamento e a imersão e a Interatividade: as interfaces e as janelas.

Manovich (2001, p. 218) argumenta que os meios digitais, ao permitirem o acesso à informação de uma forma pontual e não-linear, estimularam o desenvolvimento dos bancos de dados, explorando assim as suas potencialidades. O autor defende que o banco de dados é a principal forma de expressão cultural na era do computador, representando o mundo como uma lista de ítens não ordenados. Define o conceito como uma coleção estruturada de dados que permite a busca rápida e o acesso fácil pelo computador. Pela sua natureza aberta, o banco de dados pode ser alimentado frequentemente com novas informações, além de empreender uma nova forma de estruturar a nossa experiência no mundo.

“Se depois da morte de Deus (Nietzsche), o fim das grandes narrativas do Iluminismo (Lyotard), e o surgimento da internet (Tim Berners-Lee), o mundo nos é dado como uma coleção infindável e desestruturada de imagens, textos e outros registros de dados, é legítimo que o modelemos como um banco de dados. Mas também é legitimo que queiramos desenvolver uma poética, estética e ética deste banco de dados (Manovich, 2001: 219)”.

Tendo em conta o repto lançado por Manovich, mostra-se relevante empreender uma reflexão sobre a possibilidade de se desenvolver uma poética, uma estética e uma ética dos bancos de dados, criando outros elementos além da ordenação constante que o sistema informático pode gerar, ou seja, usando o próprio potencial do meio para criar novas linguagens e novos fazeres artísticos e comunicativos.

Diversos artistas têm explorado o potencial das mídias digitais para a criação de estruturas narrativas que dependem da interação do usuário. Waxweb, de David Blair foi uma das primeiras obras a usar um site na internet para oferecer ao usuário a possibilidade de construir a sua própria versão de um filme. A obra Soft Cinema de Manovich e Kratky procurou levantar a discussão sobre a estrutura narrativa, em que cada parte da história é composta num banco de dados e torna-se matéria- prima de um número ilimitado de filmes.

Outro exemplo é a obra Tulse Luper Suitcases, de Peter Greenaway, que re-cria o universo excessivo do autor a partir da articulação e da inter-relação entre personagens, imagens, histórias e objetos. A insistência do autor nos sistemas classificatórios, numéricos, alfabéticos e/ou taxonômicos levou a que a obra fosse construída como uma grande enciclopédia em que estes ítens estão disponíveis para serem acessados a qualquer momento. Neste sentido, a tecnologia digital permitiu que o cinema de Peter Greenaway fosse expandido da tela cinematográfica e potencializou os modos de expressão do seu projeto artístico criando uma teia intersemiótica em que várias mídias dialogam e complexificam a narrativa (Borges, 2009).

Para os dispositivos móveis têm sido criados aplicativos que exploram a interatividade e as potencialidades do meio. Mestre (2012) analisa o aplicativo desenvolvido para Ipad da narrativa The fantastic flying books of Mr. Morris Lessmore, que interrelaciona as linguagens cinematográficas, literária e hipermídia, propondo o conceito de página-plano para entender as especificidades deste produto cultural.

Torres e Portela (2012) ressaltam que a experimentação visual e intermídia originou novas formas literárias em mídias eletrônicas e a multimodalidade passou a ser um dos materiais mais importantes na exploração dos ambientes virtuais atualmente. As mídias digitais criaram as condições para um novo encontro entre a tradição de trabalhos intermídia e os novos espaços em rede, online e programados. Nestes espaços encontram-se obras que utilizam técnicas como caligrafia, fotocópia, colagem, grafiti, holografia, entre outras e práticas como instalação, happening e performance, que também exploram o potencial dos arquivos digitais para representar e simular diversas obras de intermídia que foram criadas previamente à era digital.

Diversas obras também têm aproveitado o potencial criativo da convergência entre a televisão e a internet. Uma experiência pioneira que podemos destacar é a obra Diário de Sofia, um programa de TV direcionado ao público infanto-juvenil e emitido em episódios de 5 minutos que contava com a participação do público para a escolha do episódio seguinte. Criado para ser exibido em multiplataforma, o programa não apenas produzia micronarrativas, mas contava ainda com outros desdobramentos na internet e na mídia impressa. Programas desta natureza estão relacionados com um conceito com o qual temos trabalhado nos últimos anos que é o de qualidade no audiovisual. A qualidade entendida no sentido em que cada produto audiovisual apresenta elementos técnicos, estéticos e éticos que o caracterizam e o diferenciam no mercado audiovisual.

O carácter rizomático da Internet, e das obras artísticas e comunicativas criadas para serem veiculadas e acessadas por este meio, permitem aos interatores uma nova relação com a narrativa, que perde a sua linearidade e se compõe a partir das decisões do próprio interator, termo cunhado por Murray (2003) que agrega a ideia de um agente que interage com a obra ao mesmo tempo em que atua como um ator. A narrativa se compõe como o resultado de um acordo entre o autor e o interator que suspende temporariamente o seu julgamento, permitindo que os diferentes elementos propostos comecem a operar.

Do mesmo modo, com o advento da televisão digital acirra-se a discussão sobre o desenvolvimento de novas narrativas que explorem o potencial desta nova tecnologia. Scolari (2008) propõe o termo hipertelevisão para entendermos a dinâmica deste meio e as diferenças em relação à neotelevisão, termo cunhado por Eco (1983) e que carateriza-se pela diluição das fronteiras entre ficção e informação e pela representação que a televisão começa a fazer de si mesma nos anos 1980. A hipertelevisão reflete as mudanças ocorridas tanto no comportamento do espectador, que aprendeu a interagir com múltiplas mídias e especializou-se nas textualidades fragmentadas, quanto nas próprias formas narrativas que começaram a ser disponibilizadas também em decorrência destas mudanças.

Scolari ressalta que a especificidade da hipertelevisão se encontra na expansão narrativa em diferentes meios, muito mais do que na extensão das suas histórias. O conceito de narrativa transmídia, cunhado por Jenkins (2010, p.188), tem sido adotado para compreender a ficção desenvolvida nas narrativas multiplataformas. As narrativas transmídias envolvem a criação de universos ficcionais compartilhados por diferentes meios, sendo que cada um deles desenvolve programas narrativos próprios, mas de modo articulado e complementar com os demais. As histórias que começam a ser contadas na tela do cinema têm continuidade na televisão e, depois, na tela do computador, como ocorreu com Star Wars; ou aquelas que surgem nas telas de computador, como o Tomb Raider, desdobram-se na tela do cinema e depois chegam à televisão. Além disso, presenciamos novas formas de consumo e novas lógicas participativas.

Jenkins (2010, p. 29-30) pontua que um dos principais aspectos da convergência dos meios é a cultura participativa, pois a circulação de conteúdos entre vários sistemas de mídia depende da participação ativa dos consumidores. Sendo assim, o autor enfatiza que a verdadeira convergência não ocorre por meio de aparelhos, mas dentro dos cérebros dos consumidores individuais e nas suas interações sociais com outros. Ele entende o termo inteligência coletiva de Pierry Levy no sentido em que ninguém pode saber tudo, mas que podemos partilhar aquilo que sabemos, a fim de unirmos ao que os outros sabem, assim o consumo se torna um processo coletivo.

Lemos (2012) chama a atenção para uma nova forma de sociabilidade presente na rede que denomina socialidade, isto é, um conjunto de práticas cotidianas que escapam ao controle social; formas de experiência que se dão em situações lúdicas, comunitárias e imaginárias, lastreadas por uma partilha de sentimentos e emoções. A socialidade caracteriza-se pela efemeridade, imediaticidade e empatia. Inspirado em Maffesoli, Lemos entende as comunidades da internet a partir do conceito de tribalismo, isto é, do sentimento de pertencimento vivenciado por um grupo num determinado período de tempo.

Neste contexto de convergência midiática, este projeto tem o intuito de mapear e analisar as especificidades das novas formas de expressão surgidas com o advento da tecnologia digital com enfoque nas propostas de criação e transcriação de formas narrativas, bem como da criação de novas dramaturgias que requerem diferentes formas de participação do interator em termos interventivos e colaborativos. Vários trabalhos de levantamento e análise de obras de artemídia já foram realizados no contexto brasileiro, nomeadamente por Machado (1993, 2008), Santaella (2003), Leão (2005) e Arantes (2009) que fez um mapeamento mais recente, concernente ao período 1990-2009, entre outros autores que apresentam contextos internacionais, tais como Colson (2007), Rees et all (2011), Ryan (2004), Rieser e Zapp (2002), Lister et all (2009). Porém, este trabalho se diferencia pelo fato de centrar-se no levantamento e análise de propostas de artemídia que trabalham com a construção de narrativas ficcionais.

O corpus da pesquisa abrange assim produtos culturais que contemplam, em linhas gerais, os seguintes aspectos: Obras de ciberliteratura; Formas híbridas de práticas verbi-voco-visuais; Obras que exploram interfaces áudio-tátil-moto-visuais; Obras de poesia intermídia; Obras experimentais que apresentam uma recodificação de estruturas narrativas e dramatúrgicas e que podem ter sido realizadas para concorrer em festivais e/ou serem exibidas em museus; Micronarrativas desenvolvidas para aplicativos de dispositivos móveis. É necessário fazer a ressalva de que as formas de expressão aqui elencadas não são exaustivas, no sentido em que, durante o processo de recolha de dados, pode ser possível que novos formatos, considerados relevantes, também venham a compor esta amostra.

Este mapeamento terá como foco o período de 1990 a 2010, porém não serão desconsideradas obras produzidas anteriormente e que, de alguma forma, apresentam características pioneiras e relevantes para a discussão que será estabelecida durante a fase da análise.

A análise das obras será realizada a partir da criação de uma metodologia própria que contemple as especificidades dos produtos culturais estudados. Contudo, esta terá como ponto de partida a estrutura arquivística, de composição de bancos de dados, que é uma das características básicas da hipermídia, bem como os diversos percursos de navegação e interatividade. É importante ter em conta que as novas formas de escrita multimídia, intermídia e hipermídia proporcionam uma renovação de práticas literárias previamente existentes, tais como a colagem, a escrita automática, as permutações narrativas e a poesia intermídia, entre outras.

A hibridização de linguagens permite também que os conceitos de intermidialidade e tradução intersemiótica (Plaza, 1987) sejam relevantes neste contexto de pesquisa. Além disso, uma das questões que será levantada está relacionada com a discussão da qualidade midiática sob as mais diversas perspectivas, ressaltando os aspectos técnicos, estéticos e éticos destas obras.

Sendo assim, uma questão central que se coloca nesta problemática é até que ponto estas novas formas artísticas desenvolvem, de fato, novas propostas narrativas ou apenas mimetizam e reciclam formas narrativas já existentes.

O mapeamento e a análise destas obras têm o intuito de dar a conhecer e discutir as novas formas narrativas e dramatúrgicas que surgem a partir da utilização das potencialidades da tecnologia digital.

Portanto, consideramos que a relevância desta proposta está atrelada não apenas a um mapeamento do que foi produzido nos últimos vinte anos, mas também a criação de novas metodologias de análise que consideram as idiossincrasias destes novos produtos culturais.

Objetivos

Os objetivos deste projeto são os seguintes:

– Realizar uma pesquisa exploratória a fim de apresentar um mapeamento sobre a produção de novas formas narrativas ficcionais com o advento da tecnologia digital
– Criar propostas metodológicas para a análise destas novas formas de expressão narrativa, considerando as suas especificidades;
– Explorar as potencialidades criativas da tecnologia digital;
– Promover uma formação integrada sobre as mídias digitais, com especial atenção às particularidades da internet e dos dispositivos móveis;
– Desenvolver uma reflexão sobre os conceitos fundamentais para a criação de narrativas hipermidiáticas para os meios digitais.

Metodologia e Estratégias de Ação

Este projeto de pesquisa será desenvolvido nas seguintes fases:

Fase 1: Levantamento e coleta de dados

– Levantamento bibliográfico sobre literatura digital e produção estética digital;
– Levantamento de obras artísticas que exploram criativamente a narrativa;
– Levantamento da fortuna crítica a respeito destas obras;
– Levantamento de festivais de arte digital no Brasil e no exterior.

Fase 2: Análise das obras

– Seleção das obras a serem analisadas conforme a relevância para o estudo;
– Criação de metodologia de análise;
– Análise das obras.

A definição da metodologia será realizada a partir das especificidades estéticas e narrativas das obras a serem analisadas.

Resultados e os impactos esperados

Este projeto tem o intuito de dar a conhecer o mapeamento de novas formas narrativas e dramatúrgicas que surgem com o advento da tecnologia digital, centrando-se no período de 1990- 2010. Será também criada uma metodologia própria de análise de obras que, de certa forma, apresentam novas características técnico-estéticas e narrativas e por isso requerem novos olhares e modos de compreensão e abordagem. Os resultados do projeto serão divulgados em eventos científicos e em publicações acadêmicas. Pretendemos ainda organizar um colóquio internacional para a discussão do tema junto aos alunos da FACOM/UFJF. Este projeto é parte integrante de um projeto mais extenso desenvolvido no PPGCOM/FACOM que pretende disponibilizar a produção de conteúdos experimentais numa plataforma hipermídia na internet, a qual possibilitará a sistematização e a divulgação dos resultados finais. Esperamos que este projeto tenha impacto no ensino e na pesquisa de pós-graduação e de iniciação científica na área das mídias digitais, especialmente no que diz respeito às pesquisas sobre narrativas e dramaturgias digitais.

Referências

Arantes, Priscila. Arte e Mídia – perspectivas da estética digital. São Paulo, Senac, 2005. Bairon, Sérgio. Texturas sonoras. Áudio na hipermídia. São Paulo, Hacker Editores, 2005.
Borges, Gabriela. “O Cinema Expandido de Peter Greenaway: uma análise do projecto The Tulse Luper Suitcases”. In: Actas do VI Congresso da Sopcom. Lisboa, 2009. p. 3387 – 3401.
. “Programação infanto-juvenil de qualidade: o caso da RTP2”. In: E-Compós
(Brasília). , v.8, p.8 – , 2007.
Colson, Richard. The fundamentals of digital art. Lausanne, Ava Publishing, 2007.
Gosciola, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do game à TV interativa. São Paulo, Editora Senac, 2003.
Jenkins, Henry. Cultura da convergência. São Paulo, Ed. Aleph, 2010.
Leão, Lúcia (org.) O chip e o caleidoscópio. Reflexões sobre as novas mídias. São Paulo, Ed. Senac, 2005.
Lemos, André. Ciber-Socialidade. Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. In: Revista Hermes, Disponível em . Consulta em 26/09/12.
Lister et all (org). New media. A critical introduction. Nova York, Routledge, 2009. Machado, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro, Jorge Sahar, 2008.
. Máquina e Imaginário. São Paulo, Edusp, 1993. Manovich, Lev. The Language of New Media. MIT Press, 2001.
Mestre, Ana Isa Bernardino. Literatura digital, uma leitura reinventada: estudo de caso do livro interativo The Fantastic Flying Books of Mr.Morris Lessmore. Dissertação de mestrado. FCHS, Universidade do Algarve, 2012.
Murray, Janet. Hamlet no Holodeck. O future da narrative no ciberespaço. São Paulo, UNESP, 2003.