Por Eutália Ramos
Em 2020, enfrentamos um período inimaginável para o mundo e para o Brasil: pandemia, quarentena, isolamento social e crise financeira em extensa escala. Devido às medidas de prevenção necessárias, o virtual passou a ser o ponto comum de encontro para muitos. O uso da internet cresceu exponencialmente, empresas adotaram o trabalho remoto, escolas e faculdades passaram a ter aulas por videochamada e as compras realizadas em sites e aplicativos de entrega cresceram. Segundo artigo no site Tecnoblog, esse tráfego, em comparação ao mesmo período em 2019, subiu cerca de 112% do uso da internet apenas no Brasil.
Se antes as nossas rotinas já estavam cada vez mais mediadas por telas, seja em tarefas do dia a dia, atividades de lazer ou trabalho, durante a pandemia o uso foi insetificado. Pesquisas apontam para o crescimento do consumo de programas de TV, computadores e celulares com internet. Consequentemente, seu padrão foi alterado, pois o uso diário se transformou em um dia de domingo, em que as pessoas estão mais livres e sem obrigações profissionais, por exemplo. A partir dessas mudanças iniciais, fomos nos adaptando diante às incertezas e buscando a compreensão da dimensão do vírus – e, até os dias atuais, continuamos nessa tentativa.
É a partir dessa lógica do único local possível de encontro que verificamos como o virtual ampliou sua dimensão na vida cotidiana e se tornou uma ferramenta potente diante dos desafios do tempos atuais. Pessoas que vivem longe de familiares ou moram sozinhas e a incerteza que paira sobre a duração da pandemia – agora em agosto são mais de quatro meses em isolamento social –, transformaram as plataformas de interação social em aliadas nesse momento em que sentimentos como saudade, amor, tristeza e medo ganharam novos significados e grandezas.
Tudo isso ocasionado pela Covid-19, uma doença que ainda não possui vacina ou cura medicamentosa. A transmissão do vírus nos países se deu de forma rápida e nem sempre controlada. Em consequência e para evitar o contágio, cada lugar passou a viver em isolamento social. No Brasil, iniciamos o procedimento ainda em março, tomando todas as medidas necessárias. Decretos municipais e estaduais impediram o funcionamento de setores e estabelecimentos comerciais, até praias e parques “fecharam” para deter a disseminação. Com isso, houve uma corrida por uma readaptação, empresas passaram a buscar formas de comunicar e manter cliente, público e consumo ativos mesmo com portas fechadas. Surge “o novo normal”, um termo que vem sendo usado constantemente para indicar as mudanças na forma de conviver e lidar com o vírus: o uso obrigatório de máscaras, higienizar as mãos com álcool em gel 70%, entre outros. Além disso, a expressão está atrelada a questões de mudanças nos modos de vivência e sociabilidade de pessoas enquanto cidadãos, funcionários e consumidores.
Então, o que resta para as empresas? A reinvenção daquilo que era comum nos principais setores mercadológicos, bem como na relação empresa-cliente-consumidor. Uma pesquisa realizada pela Kantar no início de abril de 2020 – quase um mês após o início do isolamento social no Brasil – afirma que as marcas devem pensar em como afetam a sociedade e como ela traz benefícios para o coletivo, apresentando assim, a sua importância. “É necessário evoluir o propósito de marca para abraçar o impacto humano e social, além de adaptar sua comunicação para essa nova realidade” (KANTAR, Online, 2020). Por meio desta ótica, nos atentamos à seguinte questão: Como uma marca em tempos de pandemia e no Dia das Mães, a segunda data comemorativa de maior movimentação do comércio brasileiro, se apresenta para a sociedade através da publicidade?
Segundo Casaqui (2014, p. 180), a partir dos pensamentos de Orlandi (2003), “A publicidade, como linguagem arraigada no momento histórico em que é produzida, responde a um cenário sociocultural a partir do qual se posiciona”. O autor aponta três sentidos: o estratégico, ao escolher a forma do seu discurso; o ideológico, ao apresentar sua visão; e o plástico, ao unir imagens que vão apresentar e validar o seu discurso. Assim, por meio da campanha desenvolvida pelo Bradesco, uma instituição financeira privada, para o Dia das Mães cujo mote é “Reinvente o seu futuro com as relações do presente”, identificamos o interesse da marca em se manter ativa e presente para os seus clientes, funcionários e brasileiros em tempos de pandemia. A peça lidera a audiência do YouTube em maio, de acordo com o YouTube Ads Leaderboard e foi produzida pela equipe de Redes Sociais da empresa.
Nossa análise está baseada em três dos indicadores propostos por Ferrés e Piscitelli (2015): linguagem, estética e ideologia e valores. Assim ela está inserida no campo da literacia midiática, que propõe desenvolver a compreensão crítica e as habililidades criativas dos indivíduos em relação aos produtos da comunicação social em meio a uma cultura participativa em constantes transformações tecnológicas. A promoção dessas competências nos parece bastante urgente em relação às mensagens mercadológicas, uma vez que através da publicidade são difundidos padrões sociais idealizados, estereótipos e valores.
A mensagem principal da campanha do Bradesco, objeto deste estudo, possui uma reflexão sobre o tempo e as nossas relações com as mães. Além da comemoração de uma data especial como o Dia das Mães, há a intenção de se manter presente – de forma afetiva – nas casas e na memória dos seus clientes – ou não clientes – com uma mensagem de acolhimento no momento de crise. A linguagem utilizada fortalece a importância do estar presente valorizando os momentos em família e possui um texto que descreve através de lettering essa vivência.
“Passamos mais tempo conversando
Passamos mais tempo nos divertindo
Passamos mais tempo cuidando
Passamos mais tempo sentindo saudade
Que nunca falte tempo para passar mais tempo com ela
Reinvente o futuro com as relações do presente.”
A empresa buscou representar o novo cenário de isolamento social através da participação ativa do público, que gravou as próprias cenas domésticas e enviou para a criação do vídeo, resultando em um mosaico de como diferentes famílias estão vivendo, convivendo e se comunicando. Este processo é informado para o espectador por meio do uso de letterings na tela no início da peça. Ao adotar essa estratégia criativa, o Bradesco destaca os seus consumidores como protagonistas de sua mensagem e busca gerar identificação na audiência, que – possivelmente – se reconhece ou se vê representada nas cenas. A exploração da publicidade colaborativa e das habilidades comunicativas do público, além de se adequar às necessidade atuais, favorece o engajamento em torno da marca, agora ele não apenas assiste ao conteúdo da empresa, mas também contribui na sua produção – estreitando os laços afetivos. O processo de escolha dos personagens para o filme demonstra que para o banco é relevante apresentar diversidade étnica, social e de gênero. De mesmo modo, buscou retratar como as famílias estão em situações distintas lidando com a pandemia, algumas com diversão e brincadeiras, outras com divisão de tarefas domésticas e também aquelas mães que estão trabalhando nas ruas, como por exemplo, o registro de uma mãe policial conversando com o filho por videochamada.
Através do tom emocional da linguagem, a marca procura se inserir em contextos de significados singulares para mães e filhos, representando particularidades que envolve emoção e afeto. A construção do texto, como apresentado anteriormente, juntamente com as imagens das vivências familiares, reforçam apelos, sentimentos e sensações. Recortamos dois momentos da peça em que essa relação é evidenciada, possibilitando assim conexões individuais a partir da situação em que cada um está inserido. O apelo está ligado a dois mundos: o de ter o tempo para curtir a presença e para sentir a falta dela, ou seja, ter saudade. Temos emoções opostas que são refletidas pelas imagens do cotidiano. Nos quadros expostos acima, visualizamos quatro famílias que estão juntas em casa com mais horas livres para produzir ou brincar. Já ao lado, enxergamos a realidade de um outro grupo familiar que lida com a falta do contato físico e se comunica através de telas.
Dessa forma, percebemos que o discurso narrativo escolhido para construir a peça, também se apresenta fortemente através da montagem de cenas para compor o comercial. Os frames escolhidos tanto da imagem, como das falas captadas, demonstram o tom apelativo que a composição da obra adota. Como, por exemplo, nos trechos em que uma criança fala “Vamos fazer isso todo dia?” (0:36) e uma mãe afirma “Pode ligar toda hora. Porque sente saudade e pode se ver” (0:46). Esses destaques nos mostram como a valorização do tempo e do estar presente é a chave para a campanha e se transforma em um dos modos de representação dos valores da empresa para os clientes e público durante este período.
Destacamos também o uso da temática sobre o tempo como forma de cativar e engajar o espectador. Não só em momentos que a abordagem sobre as relações entre mães e filhos são ressaltadas, como no trecho que surge em lettering na tela: “Que nunca falte tempo para passar mais tempo com ela”. Uma espécie de conselho para o público que assiste e que está ligado diretamente às emoções de cada ser humano, principalmente para os que estão distantes de entes queridos. Mas em como o uso dos conceitos do tempo presente e tempo futuro é abordado. A ideia de que devemos repensar as nossas rotinas, as relações e os modos de viver da atualidade para projetar um futuro melhor, pensar em como serão os nossos dias após a pandemia e em como construir momentos felizes para esquecer o sofrimento das situações tristes do período – apesar do vírus.
É uma proposta otimista inserida por uma empresa do setor bancário em um momento de profunda instabilidade, já que o efeito do fechamento do comércio, shoppings, das atividades de turismo e de serviços, além do desemprego, geraram uma crise financeira extrema. Segundo uma notícia do Portal IG, a adversidade do novo coronavírus provocou a mais ampla turbulência econômica global desde os anos de 1870. Contudo, esse otimismo vem acompanhado de uma responsabilização do indíviduo com o prórpio futuro diante da emêrgência sanitária, o que já é evidenciado no slogan da campanha, repetindo “Reinvente o seu futuro com as relações do presente”. Desse modo, é atribuído às atitudes de cada um diante à situação e de como conduz os seus afetos o seu bem-estar posterior, alienando a organização coletiva e a responsabilidade das autoridades na superação dessa fase. A mensagem é, em outras palavras, que só depende de você ser feliz depois que isso tudo passar e o Bradesco, de forma implícita, se apresenta como companheiro nessa travessia. Não há no vídeo, além da logo no topo direito da imagem, uma ligação da marca, enquanto setor financeiro e o impacto ocasionado pela crise, com as cenas do vídeo. Com isso, a representação da presença do Bradesco em meio ao mercado publicitário está em consonância com o que Casaqui (2014) expõe sobre o posicionamento da marca em um cenário histórico, o reforço de sua importância na sociedade.
Referências
CASAQUI, V. Imaginar a produção, o consumo e a nação: estratégias sensíveis da comunicação publicitária. Matrizes, v. 8, n. 1, enero-junio, 2014, p. 179-190. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/82937. Acesso em: 15 de jul. 2020.
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183/11521. Acesso em: 15 jul. 2020.
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