Por Luma Perobeli
Bruno Aleixo é um personagem de animação digital português dos criadores João Moreira, Pedro Santos e João Pombeiro (Guionistas e Argumentistas Não-Alinhados – GANA). Estreou no YouTube em 2008 e na emissora portuguesa SIC Radical em 2009. Ao longo dos anos, acumulou diversos programas e séries para as diferentes plataformas, tais como O Programa do Aleixo, Aleixo na Escola e Aleixo no Brasil.
De meia idade e personalidade forte, Bruno tem a aparência de um cachorro (mas só a aparência). É um sujeito que se irrita facilmente, ranzinza, sincero nas palavras, e que se apega às minuciosidades dos diálogos, mudando de assunto quando lhe convém. Suas conversas não fluem sem antes vasculhar o sentido e intenção de cada palavra dita pela outra pessoa com a qual conversa.
O universo Aleixo utiliza uma linguagem rudimentar, feita por um software automático surgido em 2007 e que só anima bocas e olhos. Além de Bruno, outros cinco seres de aparência estranha convivem num mundo perfeitamente normal. São personagens secundários, amigos de Bruno, que também compõem as tramas desenvolvidas ao longo dos anos: Busto (um busto falante de Napoleão), Renato Alexandre, Homem do Bussaco, Dr. Ribeiro (médico invisível que tem problemas com álcool) e Nelson (porteiro do prédio em que Bruno mora).
Nascido na web através dos esquetes de humor, o personagem já passou pela TV, recentemente estreou um filme sobre a sua vida, e ainda hoje mantem página no Facebook, Instagram e Twitter, além de um programa de rádio que já está na sua quarta temporada. Nascido em Coimbra, Portugal, o personagem também tem ascendência brasileira e por isso flerta com o modo de ser dos dois povos, tendo caído na graça dos espectadores do Brasil pelo fenômeno que se tornou na internet.
O conteúdo selecionado para esta análise é a série Aleixo Psi, exibida pela SIC Radical em 2017 e composta por seis episódios de aproximadamente 24 minutos cada. Uma produção de O Som e a Fúria, a série trata das seis sessões de psicoterapia que o personagem foi judicialmente obrigado a fazer, e está disponível no site da emissora.
No plano da expressão, destaca-se a os códigos visuais pouco complexos, limitados pelos recursos do software de animação utilizado. Predomina a câmera fixa, com ponto de vista objetivo, ângulo quase o tempo todo normal (visão frontal), e plano médio. As imagens são estáticas e por vezes há o uso de fotografias para marcar movimento e passagem de tempo. Os cortes são na maioria secos, mas fade in e fade out também são comuns.
A iluminação é naturalista e os cenários são poucos, sendo a sala de atendimento do psicólogo o que mais aparece. Nesta série, além dos personagens animados, que têm sempre a mesma personalidade, maquiagem e modo de se apresentar ao público, há também a inserção de personagens humanos na trama, com atenção especial à figura do psicólogo, interpretada pelo ator Henrique Guerra, que mostra aparência e atuação verossímeis ao profissional que representa, corroborando com o mundo perfeitamente normal trazido pela série.
Nos códigos sonoros, o diálogo caracteriza quase todo o roteiro. De suma importância para a trama, é o principal recurso utilizado para transmitir a mensagem que se deseja diante da limitação da linguagem animada escolhida (que não possibilita outros meios para a comunicação, como cenários detalhados, imagens dinâmicas ou expressões corporais dos personagens).
Narrações em off não aparecem, mas músicas de fundo, barulhos e ruídos que contribuem para a narrativa são bastante explorados. Para o personagem Homem do Bussaco, que tem uma dicção de difícil entendimento, há legendas na tela para facilitar a compreensão do espectador.
No que se refere aos códigos sintáticos, a narrativa é, sobretudo, linear, mas com a presença de imagens que voltam a situações do passado – antigo ou recente – da vida de Bruno. Sobre o ritmo do programa, uma sequência narrativa determina os seis episódios, que mostram as idas de Bruno Aleixo ao psicólogo.
Dos códigos gráficos, é pertinente mencionar o papel da vinheta de abertura da série. Feita por imagens conhecidas dos conteúdos anteriores (de lugares, pessoas, menções a diálogos e demais referências do universo), uma composição das brasileiras Tássia Holsbach e Tayana Dantas – interpretada por Tássia – já indica essa relação da produção portuguesa com a cultura brasileira. Intitulada “Menino Bruno”, a canção foi lançada em 2014, três anos antes do lançamento da série, e seu título faz referência à Aleixo na Escola, série do YouTube que narrou a vida do personagem na escola, chamado enquanto criança de “menino Bruno”.
Com relação ao plano do conteúdo, pode-se considerar que a série aqui analisada faz uso da oportunidade para a construção da sua narrativa. Não por se pautar pela agenda midiática, mas por trazer à tona temas e assuntos do dia a dia da sociedade portuguesa. Ao final do quarto episódio, por exemplo, exibido em 19 de maio de 2017, imagens relembram um jogo de tabuleiro entre Bruno e seu irmão mais novo, “Toninho”, quando este, ainda criança, menciona que ciganos constroem casas em estacionamentos, fazendo referência ao grande problema enfrentado por Portugal, que é o da falta de habitação digna para a população de etnia cigana.
Sobre a ampliação do horizonte do público e a diversidade, não podemos destacar que esses indicadores partem da trama. Narrativas ou temas novos não são trazidos para o público, ou, se levantados, são rápidos e superficiais. Além disso, a linguagem limitada e o pequeno número de personagens também diminuem as chances de temáticas mais diversas serem abordadas. Entretanto, por parte do público esta ampliação pode ser suscitada e vai depender das capacidades críticas e interpretativas de seus receptores.
A personalidade de Bruno, persuasiva e manipuladora, que se pauta em repetições de arquétipos já conhecidos da sociedade, deixa pouco espaço para que haja diversidade de pontos de vista, uma vez que a dele é a que domina a narrativa. Diante disso, esbarramos em outro indicador de qualidade do conteúdo: a afirmação ou desconstrução de estereótipos.
Há o reforço de estereótipos quando o personagem principal emite suas opiniões, geralmente ancoradas em pressupostos e consensos grosseiros da sociedade. É o que acontece, por exemplo, pouco depois dos 8min do primeiro episódio, quando Bruno desconfia das capacidades do seu psicólogo e coloca em cheque a utilidade da sua profissão: “Não há ou não quer dizer? Se as pessoas souberem da tabela, qualquer um pode ser psicólogo, né? E vocês têm medo disso. Ficavam todos sem empregos”. Da mesma forma, no minuto 14 Bruno revela uma opinião bastante preconceituosa de sua parte, o que pode acabar por reafirmar uma implicância. Quando a secretária pergunta ao personagem se há algum caso de distúrbio psicológico na família, Bruno responde: “Tenho um sobrinho que é vegetariano”.
Na mensagem audiovisual, podemos considerar que o indicador originalidade/criatividade é presente na trama. Manter vivo há mais de 10 anos um conteúdo feito por uma estética de animação arcaica – ainda hoje que a tecnologia avançou tanto –, torna o formato original e diferente no contexto das grandes produções (possibilitadas pelas tecnologias modernas), o que exige dedicação e criatividade no roteiro, única forma de prender a atenção de quem assiste.
Por tudo isso, observamos que a clareza da proposta é bem sucedida na série, uma vez que é feita sob um formato bem delimitado, caracterizado, entre outras coisas, pelo uso do minimalismo dos planos expressivos.
Por outro lado, com relação aos parâmetros que dizem mais sobre o espectador do que sobre a narrativa que é construída na trama, algumas características podem nos ajudar a entender o papel de quem assiste. Pensando na solicitação da participação ativa do público, por exemplo, há indícios de que esse indicador seja bastante identificado na história. A série aqui analisada é parte de um universo transmídia que convida o espectador a conhecer os outros conteúdos através das lembranças que tem com o seu terapeuta. Na trama, essas lembranças voltam a situações do passado da vida de Bruno e aparecem na tela sob a forma de imagens cujo formato remete aos conteúdos anteriores do universo, podendo instigar a curiosidade do público.
Essa solicitação também aparece no começo do primeiro episódio, quando o personagem indaga como o terapeuta pode não o conhecer, já que ele tinha um programa na televisão e, portanto, era uma figura conhecida. Tal questionamento acaba vindo para o espectador, que caso não possua algum repertório do universo Aleixo, pode vir a ter a sua curiosidade aguçada para acessar as histórias anteriores. Dessa forma, há também aí a alusão à presença do indicador diálogo com/entre plataformas, pois chamar a atenção do espectador para as narrativas antigas é automaticamente dialogar com as outras plataformas que compõem o universo.
Por parte da produção aqui analisada não há a desconstrução de estereótipos, mas o fato de Bruno ser na televisão o retrato de um indivíduo comum da vida real pode gerar no espectador reações que vão além dos indicadores identificados nela, justamente pela brecha que deixa para o público completar os sentidos apresentados. Com os absurdos que saem da boca do protagonista, há uma crítica ao modo de ser das pessoas. E os embates – ainda que mínimos – travados pelos outros personagens que conversam com Bruno devido aos pensamentos que emite, contribuem para a possibilidade de o espectador tomar ciência dessa crítica e então refletir sobre o que vê.
Além disso, observamos a escassez de setas chamativas em Aleixo Psi como outro recurso capaz de contribuir para a interação do espectador. Pautando-se nas idas de Bruno Aleixo à psicoterapia – judicialmente obrigado a frequentar – percebemos que os motivos reais que o conduziram a tal procedimento não são colocados para o espectador. Entretanto, ao longo da história a narrativa vai nos mostrando, de forma não explícita, que a própria personalidade peculiar do protagonista pode justificar a necessidade dessas sessões.
E para além desses sentidos que vão sendo preenchidos ao longo da série, esse recurso pode levar o espectador a crer que a explicação exata para o tratamento se encontra nas histórias anteriores do universo. Assim, estimulado a interagir e a procurar outros conteúdos para preencher com mais profundidade as lacunas que são deixadas, o engajamento com a ficção fica maior.
Outro exemplo é o que ocorre com os anúncios da Mister Cimba Viagens e Utilidades, empresa fictícia que satiriza as empresas de excursões e televendas. Quando aparecem, causam confusão no espectador, que pode não entender qual o objetivo das interrupções abruptas da narrativa. Somente o último episódio que explica se tratar de uma empresa que o protagonista trabalhou dando dicas de produtos para vender.
A intertextualidade se faz presente na trama pela essência cotidiana que tem de trazer assuntos do dia a dia da sociedade. Com o uso de referências externas ao universo ficcional, o espectador é estimulado a completar as mensagens para uma compreensão mais apurada da mesma. É o que acontece, por exemplo, no último episódio da série, quando os personagens citam Multibanco, GPS, Água das Pedras, as cidades de Mealheiro e Coimbra, e mostram rapidamente na tela a foto de Kevin O’Leary, importante empresário canadense que participa do Shark Tank, série de game show norte-americana exibida em Portugal pela SIC Radical – mesma emissora que transmite Aleixo Psi –, que mostra pequenos inventores apresentando ideias para grandes empreendedores que buscam novos investimentos.
Na tela por menos de um segundo, a aparição surpresa deixa intencionalmente esta lacuna para que o espectador possa completar a ideia com as referências que possui. Caso não possua este repertório, a estratégia servirá para, no mínimo, aguçar a curiosidade e fazê-lo buscar as informações que vão dar a ele as pistas necessárias para preencher esta mensagem.
Nesses mais de 10 anos de vida, o projeto se concretizou como uma narrativa transmídia por expandir, a cada plataforma, um aspecto da vida de Bruno Aleixo, de personalidade e características definidas já no primeiro formato em que apareceu (esquetes com pouco mais de 1min na série para o YouTube Os conselhos que vos deixo).
Sem grande dedicação às expressões estéticas, o foco e a graça da série aqui analisada estão no roteiro. Os diálogos estabelecidos por Aleixo Psi revelam, naturalmente, sinceridades que no mundo real pareceriam absurdas. O riso se torna possível porque a idiossincrasia de Bruno gera no espectador, de alguma forma, identificação: seja por tornar real no imaginário de quem assiste o ridículo mostrado na ficção; ou por lembrar a esse espectador alguém que se assemelhe com o personagem.
E para além desse envolvimento com o humor direto, sincero e “parvo”, as estratégias adotadas nesta série são vistas também em outros conteúdos do universo Bruno Aleixo, como em Aleixo no Brasil, nos programas de rádio ou nas publicações do Facebook, e sempre com a mesma intenção: engajar os mais diversos públicos nas suas diferentes plataformas.
* Todas as imagens usadas nesta análise são capturas de tela.
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