Observatório da Qualidade no Audiovisual

A remixabilidade de Euphoria no TikTok

Por Lucas Vieira e Daiana Sigiliano

Produzida pelo canal pago estadunidense HBO a série Euphoria (2019-atual) é considerada um fenômeno cultural (MARGHITU, 2021). Como pontua Marghitu (2021), a trama é pautada por uma narrativa complexa em que os personagens ultrapassam questões dialéticas entre o bem e o mal. No seu primeiro ano de exibição a série de Sam Levinson, baseada na minissérie israelense homônima (2012), conquistou fãs no mundo todo, desde a maquiagem até a trilha sonora foram reproduzidas e incorporadas ao cotidiano dos jovens. A trama é protagonizada por Rue (Zendaya), uma adolescente viciada em drogas desde a morte do pai. A série foca nos conflitos e traumas de um grupo de estudantes e mostra como cada um deles lida com seus problemas.

Para esta análise realizamos um levantamento dos vídeos publicados no TikTok durante a segunda temporada de Euphoria, exibida pela HBO entre janeiro e fevereiro de 2022. Os conteúdos analisados abrangem as seguintes hashtags: #EuphoriaChallange e #Euphoriapov. Apesar das seis dimensões (linguagem, tecnologia, processos de interação, processos de produção e difusão, ideologia e valores e estética) da competência midiática estarem em operação nos vídeos criados pelos telespectadores interagentes iremos focar em três. Segundo os Ferrés e Piscitelli (2015), além da capacidade de interpretar, avaliar, analisar, compreender e correlacionar diversos códigos, formatos e gêneros midiáticos, a dimensão Linguagem está relacionada com a habilidade de produzir e ressignificar conteúdos a partir de diversos modos de representação e produção de sentido. 

Neste contexto, a dimensão pode ser observada na capacidade de remixagem do público. O remix literacy relacionado ao processo de remixagem, abrangendo a compreensão que o interagente da arquitetura operacional das plataformas digitais até a efetivação da circulação dos conteúdos (STEDMAN, 2012). O autor (2012, p. 107-110) afirma que o termo pode ser sistematizado em três etapas: o entendimento crítico de um conteúdo específico, o domínio das ferramentas e o compartilhamento. Segundo Stedman (2012) o remix literacy tem como base um profundo conhecimento que do público tem de algo (filme, séries, artista, etc.). É a partir deste entendimento apurado de um determinado contexto que se desdobram as ressignificações.

Deste modo, ao compreender pontos recorrentes do universo ficcional do Euphoria e ampliar a produção de sentido, inserindo novas camadas interpretativas os fãs exploram a remixabilidade da trama. Isto é, abarcando não apenas distintos formatos, mas as técnicas, a estética e seus pressupostos fundamentais.

Para Ferrés e Piscitelli (2015, p.5-15) a dimensão Ideologia e Valores ressalta a capacidade de avaliar, analisar, reconhecer os conteúdos considerando seus distintos recortes culturais e sociais, identificando e questionando os estereótipos (de gênero, raça, etnia, classe social, religião e etc.) e os mecanismos de manipulação. Além da habilidade de elaborar e modificar os conteúdos midiáticos, se comprometendo com a cidadania, a fim de transmitir valores e colaborar para a melhoria da sociedade. 

A dimensão pode ser observada na capacidade de leitura crítica que o fã tem sobre a obra, considerando seus valores como sociedade. Exercendo essa dimensão, os fãs se comprometem socialmente avaliando e analisando seus consumos e a forma como repercutem em suas produções. O fandom realiza a leitura crítica e criativa sobre o universo ficcional, identificando aberturas, lacunas e outros paralelos de acordo com suas referências sociais ou de consumo e se expressam refletindo seus posicionamentos. Uma das formas de expressões são as produções criativas, na qual o fandom exerce seu discurso crítico e se permite “brincar” e “reimaginar” o universo de acordo com seus referenciais.

No fandom de Euphoria no TikTok, a dimensão está em prática nas produções criativas que identificam características do universo da série e repercutem e satirizam fazendo paralelos com a vida real ou reimaginam situações de interações entre os personagens. Nesses vídeos, trends e challanges dentro do TikTok pelo fandom, existe uma criticidade sobre as formas como a série retrata determinados momentos e recursos da linguagem narrativa audiovisual, como é o caso do vídeo produzido pelo interagente @lucenawilgner.

Na produção, três jovens se vestem inspirados nas caracterizações das personagens de Euphoria, seguindo estéticas do figurino, maquiagem, expressões e formações de “squad”. Com a contextualização de “As meninas de Euphoria indo comprar pão”, os jovens desfilam dramaticamente até o momento em que a personagem caracterizada como a personagem Rue, ludicamente, flutua, fazendo uma alusão dos momentos representados da série em que a personagem está sob efeitos de droga. Ao contrário da série, a produção de fã (chamada de POV, sigla para ponto de vista, em inglês), ignora que a linguagem lúdica não é diegética aos acontecimentos da série e nela os outros personagens são capazes de reagir ao estado emocional da personagem.

Ainda no primeiro caso de satirizar os elementos da série, o interagente @edipo.montgomery satiriza a realidade estadunidense representada em Euphoria, reimaginando uma situação da segunda temporada em uma realidade brasileira, utilizando de cenários e uniformes de uma escola do ensino médio no Rio de Janeiro. O interagente contextualiza o POV com a frase “Se Euphoria se passasse num CIEP carioca” e retrata um momento da série em que a personagem Maddy descobre que sua amiga Cassie a traiu com seu namorado. Como legenda das falas originais, o interagente adapta a realidade periférica carioca, utilizando o termo “talarica” e a ação de raspar o cabelo de mulheres que se relacionam com homens dentro de outro relacionamento sério. Dessa forma, o fã exerce a leitura crítica de compreender a situação narrativa da série e correlacionar com sua própria realidade, e se expressa criativamente na releitura audiovisual.

Segundo Ferrés e Piscitelli (2015, p.5-15) a dimensão Estética se refere à capacidade de relacionar e identificar referências intertextuais, explorando novas camadas interpretativas, e também de produzir conteúdos pautados na criatividade e na originalidade.  Neste contexto, podemos observar que os fãs possuem seus conhecimentos técnicos e de consumo estético como referência de suas leituras e compreensão do universo narrativo. Sendo assim, a análise dessa competência considera os recursos visuais, sonoros, audiovisuais, caracterização, entre outros, como elementos que expressam as habilidades do fã e como colocam em prática na produção crítica e criativa.

No fandom de Euphoria no TikTok, são utilizadas referências da série como a trilha sonora original, recursos da linguagem audiovisual, caracterização de figurinos, maquiagens e cenografias, mas a prática de fã subverte essas referências de acordo com suas propostas de discurso. Em suas criações, os interagentes compreendem a linguagem das produções no TikTok, assim como as propostas dos challanges, POVs e trends para reproduzirem suas próprias narrativas. Desse modo, colocam em prática a dimensão Estética em sua competência midiática.

Nos mesmos vídeos analisados na linguagem Ideologia e Valores, ambos os interagentes compreendem o formato que seus point of views demandam narrativamente e como demandam na caracterização desses universos.

No vídeo de @lucenawilgner, dramatizam a linguagem audiovisual como forma de criar a ambiência e as relações das personagens, junto a caracterização proposta no andar, no figurino e na maquiagem. O momento em que a personagem que representa a Rue flutua, também exerce uma função estética replicada e satirizada pela fã.

Já no vídeo produzido por @edipo.montgomery, a ambientação satirizada da realidade carioca também implica na prática da dimensão através da caracterização. É utilizada a imagem de uma escola do Rio de Janeiro, o figurino, maquiagens, roupas e efeitos para remeterem, de forma satírica, personagens e a cena indicada pelo POV. O exagero nessas características indica o reconhecimento da proposta da expressão criativa e a função cômica desempenhada pela produção.

Por fim, o terceiro vídeo, produzido pelo user @nashmalf0y reimagina um diálogo de personagens da série em uma situação não canônica. O vídeo acompanha uma janela de mensagens, com a repercussão dos estados das personagens, suas personalidades e construções narrativas através de recursos textuais e visuais. Acompanhado aos textos, que utilizam de caixa alta, gírias, nomes dos contatos, também há o recurso sonoro, com voz que lê as mensagens utilizando ritmos e expressividade vocal que apontam o conhecimento estético em prática pelo fã.

Referências

FERRÉS, J; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v.9, n.1, p. 1-16, 2015. Disponível e: <https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183>. Acesso em: 29 mai. 2022.

MARGHITU, S. Teen TV. Nova York/Londres: Routledge, 2021.

STEDMAN, K. Remix Literacy and Fan Compositions. In Computers and Composition, v.29, n.2, p. 107-123, 2012. Disponível em: <https://bit.ly/2QoAV1a>. Acesso em: 29 mai. 2022.

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