Observatório da Qualidade no Audiovisual

AmarElo

  • Artista: Emicida
  • Álbum: AmarElo 
  • Data de lançamento: 2019
  • Gênero: Hip-Hop/Rap/Neo-Samba
  • Categorias: Indústria e Narrativa 

Por Rebeca Telles

Desde suas origens, o videoclipe foi um espaço de experimentação (GOODWIN, 1992; SOARES, 2013). Nos anos 80, a MTV transformou os videoclipes no principal meio de divulgar uma música, mas não apenas isso, criou imagens inéditas que marcaram a cultura pop para sempre (HOLZBACH, 2016). Como, por exemplo, o clipe icônico de Material Girl, ou mesmo o filme de terror que alavancou Michael Jackson. Se havia um espaço para inovação era o videoclipe. Entretanto, com a chegada da internet, os artistas tiveram que encontrar meios para se adaptar ao novo cenário. Curtas, sessions, álbuns visuais ou até longa-metragens, são formatos explorados por artistas como Beyoncé, Baco Exu do Blues e Kendrick Lamar. Assim, seguindo o caminho da inovação que Emicida lançou clipe de AmarElo com Pabllo Vittar e Majur em 2019. 

Emicida é um rapper paulistano, considerado um dos maiores expoentes de sua geração. Com uma carreira de mais dez anos, o artista conseguiu sair do nicho underground, “hypar” nas rádios e se tornar referência em diversas áreas, além da música. Contrariando as previsões, o rapper lança o projeto transmídia AmarElo, composto por um clipe homônimo, disco, vídeos documentais e dois formatos de podcast. Mas o que realmente fisgou o público e a crítica foi a abordagem de AmarElo. Nadando contra a corrente do álbum “porrada”, Emicida demonstra que a “a serenidade é revolucionária”

Em relação ao disco, – o terceiro de uma trilogia – a atmosfera de calma e resistência foi bastante destacada pela crítica. A reportagem do UOL afirma que “Emicida mostra o grito da periferia deprimida”. Em entrevista para o jornal Nexo, o rapper deixa claro: “Não é uma carreira, é uma causa”. A manchete do portal Metropóles ressalta: Emicida usa afeto para seu grito de protesto em AmarElo. Já o Estadão destaca: “Emicida ganha força ao despolarizar o discurso do rap”.

O videoclipe AmarElo foi o primeiro produto do projeto que Emicida tem chamado de “experimento social”. Abraçando o experimentalismo e a inovação que a internet permite, o artista produziu um curta que busca trabalhar a temática central do seu projeto: saúde mental. Sem as amarras da televisão, a música que dá nome ao disco ganhou um clipe de quase 9 minutos registrado no Complexo Morro do Alemão, com direção de Sandiego Fernandes e roteiro do próprio Emicida.

A ambientação do clipe já aponta alguns pressupostos da trama proposta: o tema, a aproximação com a linguagem cinematográfica e o contraste com o restante da obra. A narração, através de um áudio, assim como em um filme, tem papel fundamental para localizar o espectador sobre o tema que vai ser tratado: saúde mental. “A intenção de começar com uma história tão densa é assumir que na dor somos todos irmãos”, contou Emicida em entrevista ao jornal O Globo. Logo no início do clipe, surge então esse depoimento real recebido por Emicida de um amigo pessoal que está enfrentando a depressão. Esse recurso é utilizado de forma didática na tentativa de verbalizar como alguém com depressão se sente. 

Mas é na união do áudio com as imagens que a mensagem ganha força. A maneira como a cidade é mostrada, em tons frios, contraste baixo, com cortes rápidos e planos fechados em espaços inabitados, trazem o pessimismo e o isolamento das palavras do áudio. As diferentes imagens da cidade intercaladas com o áudio, corroboram com a discussão das diversas patologias psicológicas presentes na vida urbana. Emicida avisa na canção Cananéia, Iguape e Ilha Comprida “Metrópoles sufocam, são necrópoles que não se tocam. Então se chocam com o sonho de alguém”. Inclusive o semáforo – símbolo do trânsito e da correria urbana – é utilizado para introduzir o AmarElo da música. É um aviso do que está por vir.

Quando a música inicia sentimos um novo clima em AmarElo. Nesse momento, o clipe apresenta um diferente enquadramento (razão de aspecto). Se antes as bordas do vídeo eram mais fechadas, causando uma sensação quase claustrofóbica, agora as bordas se abrem, trazendo um enquadramento mais aberto. As primeiras imagens que acompanham a música ainda são de planos mais fechados, como se estivessem nos introduzindo a um novo cenário, mas já se percebe um movimento de câmera bem mais fluído que antes. Além disso, nota-se os efeitos de edição mais dinâmicos: o crop (corte de imagem) acompanhando a batida da música e o light leak (vazamento de luz) nas transições. Ou seja, nessa segunda parte do clipe a construção visual é diferente: as cores quentes, os movimentos fluídos e os cortes rápidos dominam a narrativa. 

A partir de uma nova ótica, mais alegre e esperançosa, acompanhamos o sample de Belchior atrelado as imagens de apresentação dos personagens. Com um tom muito mais pessoal que antes, mas ainda sem apresentar o rosto dos personagens, o diretor Sandiego Fernandes usou lentes com aberturas grandes para gerar um efeito de desfoque e assim, concretizar os planos detalhe.

Mas é quando Emicida entra em cena que o clipe chega ao seu clímax. A linguagem cinematográfica, valorizando os planos longos e movimentos lentos, é substituída por uma fotografia com movimentos de câmera dinâmicos e giratórios que ressaltam o ritmo e os planos mais abertos e que finalmente revelam os rostos dos personagens. A dinâmica da edição, as cores vivas dos figurinos e o ritmo da fotografia são elementos que permeiam todo o restante do clipe. Se antes a sensação era de desamparo e isolamento, esse momento do videolipe provoca emoção e entusiasmo. 

É interessante notar que os principais efeitos sonoros estão em momentos de transição da música. Assim que acaba o áudio da primeira parte do clipe, podemos ouvir um efeito semelhante ao som de mensagem enviada pelo Whatsapp. Já durante o clipe, podemos observar que as transições visuais acompanham as viradas da música. Outra combinação que se destaca é, quando Emicida surge pela primeira vez no vídeo, subindo o efeito de vazamento de luz (light leak) junto ao som de batidas do coração, simulando leitores de batimento cardíaco. 

O tema do videoclipe é explorado de algumas formas: através do áudio expondo a dor de um amigo pessoal de Emicida, da resposta esperançosa de Emicida através da canção e da presença da cor amarelo em grande parte do clipe (cor símbolo de prevenção ao suicídio). Contrastando com o conteúdo pessimista do áudio, a música de Emicida atrelada a imagens frenéticas dos personagens – a bailarina saltando, a costureira sendo coroada e o atleta fazendo seu lançamento – carrega uma mensagem de esperança, ânimo e bom humor. Além disso, essas imagens acabam desconstruindo estereótipos ao mostrar pessoas pretas em ascensão e representando diversas profissões na sociedade.

A intertextualidade pode ser observada no uso do sample “Sujeito de Sorte” de Belchior, artista que conseguiu sintetizar em suas obras a desolação humana. Além disso, Emicida trouxe ainda mais representatividade ao trazer as artistas Majur e Pablo Vittar, que representam o movimento LGBTQI+, “As duas trazem, em suas vivências e em suas obras, histórias bonitas a respeito de acreditar em si e de lutar contra o mundo para ser quem são”, disse Emicida em entrevista a Rolling Stone.

Emicida, como um artista que se envolve em diversos projetos além da música, prima pela inovação em AmarElo. Em relação ao formato, o videoclipe foge das narrativas tradicionais ao trazer uma produção nos moldes de um curta-metragem com direito a narrador nos primeiros minutos e divisão de atos: a parte do áudio, o clímax com as performances dos artistas e o desfecho dos personagens. AmarElo une o formato de narrativa e performance – quando Emicida, Majur e Pablo Vittar aparecem – para narrar uma história de superação e para discutir saúde mental. Além disso, o videoclipe ganhou outros desdobramentos como minidocs sobre a história dos personagens, vídeos de bastidores e um podcast homônimo, no qual Emicida revela suas referências sonoras, visuais e sensoriais para compor o projeto. 

Em relação a originalidade, pode-se destacar a forma como os temas de saúde mental e superação foram abordados no clipe, através do uso de um relato pessoal pelo Whatsapp. Emicida transformou uma dor coletiva em uma obra esperançosa e entusiasmada. Outro ponto de destaque é o contraste entre a parte narrada em relação ao restante do clipe. Se na primeira parte acompanhamos o relato através de imagens frias e cruas, com movimentos lentos próximos a uma linguagem cinematográfica, no resto assistimos Emicida, Majur e Pablo Vittar através de cores quentes – se aproximando da bandeira do Brasil – movimentos de câmera dinâmicos e uma edição ágil e ritmada.

A qualidade artística do videoclipe AmarElo reforça o discurso social de Emicida: “Mais do que conceber uma carreira, eu tenho uma causa, que transcende simplesmente um produto que a indústria vende. Essa construção se compõe com base em um monte de outras coisas que não são apenas musicais.” Através de um relato pessoal, do trabalho de fotografia e da construção da narrativa, a obra traz à tona uma discussão relevante e atual da sociedade: depressão e saúde mental. Por isso, o videoclipe em questão sintetiza a proposta experimental e social do projeto transmídia AmarElo.

Referências

GOODWIN, A. Dancing in the distraction factory: music television and popular music. Mineápolis: University of Minnesota, 1992.

HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016.

SOARES, T. A Estética do videoclipe. João Pessoa: Editora da UFPB,2013. 

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