Observatório da Qualidade no Audiovisual

Carne Doce

  • Artista: Carne Doce
  • Álbum: Princesa
  • Data de Lançamento: 2017 
  • Gênero: Indie Rock / Rock Psicodélico
  • Categorias: Narrativo/Margem

Por Gustavo Furtuoso 

Com heranças do cinema, em especial os filmes musicais, e da videoarte; o videoclipe, enquanto um gênero, é resultante da união de uma canção e uma concepção visual com a finalidade de divulgar uma faixa, um álbum e/ou um artista de modo geral (SOARES, 2013). Localizado entre duas dinâmicas distintas de produção – a da indústria fonográfica e a dos sistemas de comunicação em massa -, ele reúne uma equipe de profissionais que cria uma interpretação audiovisual da música em questão. Sendo assim, a “[…] canção, além de agente “influenciador”, é guia dos códigos secundários – onde se apresenta o videoclipe” (SOARES, 2013, p. 282). Estes incluem fotografia, coreografia, direção de arte, concepção sonora, entre outros. 

Lançado em 2016, o videoclipe de Falo, da banda Carne Doce, faz parte da divulgação do álbum Princesa, do mesmo ano. A canção explora as tensões vividas por uma mulher numa sociedade machista patriarcal e o videoclipe traz um grupo de mulheres que se juntam em uma noite para vingar-se de uma figura masculina. O título da canção faz um jogo de palavras com o termo falo, podendo significar ação (a voz da mulher que fala em primeira pessoa) ou fazer alusão à imagem do órgão genital masculino. A letra é a manifestação de uma mulher que decide falar sobre o domínio masculino nas diferentes esferas da vida – profissional, doméstica, artística – e sobre a forma com a qual os homens têm consciência e não abrem mão disso.

Capa de Princesa (2016)

A banda de indie rock se formou em Goiânia, no ano de 2013, e a sua formação atual é Salma Jô (voz), Macloys Aquino (guitarra), João Victor Santana (guitarra e sintetizadores), Aderson Maia (baixo) e Frederico Valle (bateria). As letras com forte carga de ironia e teor político permeiam seus três discos, sendo Princesa seu segundo trabalho. Neste projeto, a banda trata bastante do protagonismo feminino, com a vocalista Salma Jô participando da composição de todas as faixas. Princesa ficou com a segunda posição na lista dos melhores álbuns nacionais de 2016 pelo site Miojo Indie.

O videoclipe de Falo foi dirigido por Bruno Alves, que também assinou o vídeo de Artemísia, single anterior do disco. Com gravações feitas numa fazenda do interior de São Paulo e roteiro co-assinado por Salma Jô, Falo evidencia a força da mulher e do coletivo.

Com relação à ambientação, o videoclipe de Falo se revela em camadas. Inicialmente, temos o grupo de mulheres num quarto, sentadas na cama, passando balaclavas umas para as outras. Elas são apresentadas juntas, sem destaque para nenhuma de forma individual. A mobília e as vestimentas indicam que estão numa fazenda. Conforme o vídeo avança, os planos se tornam mais abertos e é possível vê-las em conjunto, assim como mais detalhes do espaço onde se encontram. Elas caminham pela casa às escuras até um quarto de ferramentas onde se munem de foices e enxadas. 

Em seguida, é apresentado o personagem masculino, um homem de meia idade, sozinho numa igreja, com a bíblia em mãos. As mulheres, com ferramentas e tochas acesas se dirigem da casa onde estavam até esta igreja. O percurso é mostrado, mas o ambiente está escuro e não revela muito do local onde se desenrola a trama, possivelmente uma fazenda ou vilarejo rural. Ao chegarem na igreja, suas sombras se projetam sobre a arquitetura pesada, cena que traz alguns traços expressionistas. Por fim, capturam o homem, o amarram e dançam em torno dele e de uma fogueira, como num ritual. Ele é molhado com gasolina e quando um fósforo é riscado para lhe pôr fogo, o mesmo acorda em sua cama, revelando que tudo era apenas um pesadelo.

Com essa revelação, é possível compreender melhor as escolhas feitas durante o vídeo, como os ambientes bastante escuros, as luzes quentes das tochas e fogueira e as sombras bruxuleantes projetadas contra as paredes, como se fossem criaturas infernais que vieram buscar uma alma, numa inversão irônica de papéis. Do outro lado, a igreja mais iluminada, com arquitetura sólida, paredes brancas e atmosfera religiosa que caracteriza o personagem masculino. Composição esta que se mantém na cena em que ele desperta do sonho, aliviado por perceber que aquilo não acontecia na realidade. 

Apesar de termos indícios sobre o tipo de ambiente no qual a história acontece, não temos como precisar muito bem em qual época ela está inserida. O figurino, a arquitetura e a cenografia são elementos que, se comparados a uma estética contemporânea, parecem um tanto datados ou obsoletos. Ao mesmo tempo, a atmosfera rural permite que interpretemos a trama como pertencendo também à atualidade.

Na faixa de áudio, não há uso de efeitos sonoros inseridos além da própria canção. Entretanto, ela está em sincronia com alguns trechos do vídeo de forma que ambos se somam, seja num efeito narrativo ou para a criação de um clímax com base no ritmo. No início do videoclipe, por exemplo, quando as mulheres estão sentadas na cama e colocando os gorros, o instrumental se assemelha a um tique de relógio antigo, num ritmo mais acelerado que o normal. Como relatado por Salma, intérprete e compositora da canção e co-autora do roteiro do videoclipe, Falo é sobre “[…] uma indignação legítima, um acúmulo de pequenas injustiças cotidianas”. Este som que se assemelha a ponteiros de relógio gera uma certa ansiedade, como um tempo que passa, uma espera prolongada: a espera dessas mulheres pela chance de vingança.

A ironia e a metalinguagem presentes na música também são trabalhadas para produzir novas camadas de sentido através da sincronia entre som e imagem. Quando a letra fala “Já tá cansado da minha voz por que? / O tempo todo um timbre feminino / Pra maioria algo enjoativo / Que tal se agora entrasse um homem aqui?”, o ‘’aqui’’ refere-se à própria canção, tratando da voz da intérprete e ironizando que muitas pessoas poderiam ter se enjoado de sua voz e seu timbre feminino, que seria interessante que uma voz masculina se fizesse presente. Entretanto, no vídeo, quando o verso é pronunciado temos a imagem de uma das meninas de balaclava abrindo a porta da casa. O movimento é mostrado em detalhe e repetido, num encavalamento temporal que busca enfatizar a ação. Como o trecho está no início do vídeo e ainda não temos muitos detalhes sobre o que acontece, cria-se um duplo sentido de que “bom” seria se entrasse um homem no vídeo, naquele lugar, para enfrentar a ira e a vingança daquelas mulheres. 

Outro momento em que a sincronia entre áudio e vídeo cria um efeito para a trama é quando o personagem masculino caminha pela igreja em direção à porta para encontrar o grupo de mulheres armadas que estão esperando por  ele. Nessa caminhada, a música também avança  para seu clímax e a letra dispara uma série de acusações ao masculino, com a voz da intérprete ficando cada vez mais enérgica e criando um crescente de tensão, que para o espectador funciona como um gerador de suspense, uma vez que indica a iminência do conflito. Como a composição lírica imprime uma carga emocional de raiva e ira à canção, já fica sugerido que o encontro entre o homem e as garotas terá um fim violento.

A fotografia do vídeo privilegia uma iluminação em cores quentes para todas as cenas em que aparece o grupo de mulheres. A presença do fogo justifica a escolha tanto num contexto técnico quanto num contexto narrativo, representando a ira e a sede de vingança presentes na letra. Já para o homem, temos tons mais frios e sóbrios, tanto na igreja – local onde o mesmo se sente, de certa forma, seguro e protegido – como em seu quarto, ao acordar. 

Com relação aos enquadramentos, o vídeo cria um suspense no início ao usar planos bastante fechados, que não revelam logo de cara quem são as personagens e nem onde elas estão. A presença recorrente de sombras e espaços escuros,contribui para isso. O uso de planos detalhe também se dá com certa frequência, destacando elementos cenográficos que contribuem para a caracterização dos personagens.

Ao longo de todo videoclipe há imagens tomadas com a câmera na mão, com planos mais sujos e tremidos. Essa escolha cria um efeito de nos tornar testemunha da ação. Não é um dispositivo que está lá para capturar a cena de um videoclipe, mas um olhar que observa os acontecimentos e os acompanha de perto. 

Na cena da igreja onde o homem caminha para a porta e depara-se com as mulheres, ele é tomado inicialmente de baixo para cima, sob um mosaico de Jesus no teto que assemelha-se a um olho. Conforme ele avança, a câmera vai subindo e toma-o primeiro de frente e, quando já perto de sair da igreja, de cima para baixo. A variação do plano e a composição imagética podem referir-se à segurança que a religião e a instituição da igreja trazem para ele, como se por associar-se a este universo ele tivesse seus pecados redimidos e sua conduta aceita. Mas ao sair da igreja, perde este local de privilégio e é diminuído do sagrado ao mundano, tornando-se um mero mortal que irá enfrentar seu destino. 

A edição do vídeo se dá de forma linear, com começo meio e fim claros. Essa linearidade é importante para a manutenção do mistério e criação do suspense junto ao espectador. É utilizada da montagem alternada para se intercalar as cenas entre o grupo de mulheres e as cenas do homem orando dentro da igreja, como feito tradicionalmente em sequências que contrapõem perseguidor e perseguido. 

No encerramento do vídeo, temos um plano final que serve como moldura para a narrativa por completo. É um recurso também bastante utilizado no cinema, como na obra canônica do cinema expressionista O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene (1920). Nele temos uma sequência final que subverte toda a narrativa anterior ao revelar que os apuros apresentados pela trama não passavam de delírios na mente de um personagem com transtornos mentais. 

Em Falo, a cena final do homem acordando em sua cama transforma a história que acompanhamos até ali. Percebemos que as cenas mostradas fazem parte de um ambiente onírico, pertencente ao mundo dos sonhos – neste caso, um pesadelo. Narrativamente e tematicamente, a cena gera um efeito interessante, pois mostra que essa vingança ao masculino não se concretiza na materialidade, continua como uma vontade por parte dessas mulheres, ou melhor, um medo por parte da figura masculina. Um “universo em que meninas, unidas, são a manifestação do pior medo que um homem poderia ter”, como comenta o diretor Bruno Alves.

O tema da canção tensiona as relações entre o masculino e o feminino presentes na sociedade. Ela trata de questões de autoria, subvalorização e desdém simultaneamente em relações pessoais e profissionais. Os versos “eu já não suporto te explicar o óbvio/ você finge me tratar como igual / mas seu arroto é pura condescendência” explicitam a consciência desse jogo de forças na sociedade; das reivindicações feministas e da réplica de uma sociedade patriarcal que, ao mesmo tempo, valida e concorda com tais apelos, mas os ignora ao não criar formas práticas de lidar com eles de uma maneira definitiva.

Comentando sobre o videoclipe e a canção em entrevista à Vice, Salma Jô revela que tratam do “machismo sutil dos homens que são íntimos de gente, que são nossos parceiros afetivos ou profissionais. Não é um protesto contra o machismo mais violento e não atende às mulheres que são oprimidas de forma violenta”. E completa dizendo que a construção da personagem na música busca atender a uma “complexidade da mulher, e não tratá-la somente como vítima, pois não gosto de atender a esses ideais, nem de poder, nem de submissão”.

A narrativa construída e as personagens representadas no clipe subvertem alguns dos estereótipos que historicamente foram associados aos papéis de homens e mulheres. O personagem que age ativamente na trama, por exemplo, é o grupo de mulheres, enquanto o homem reza e espera passivamente pelo seu fim. Desde o início, são elas que conduzem o enredo, munem-se de armas, acendem tochas e utilizam máscaras de “bandidos” para cometer um crime. Mesmo que motivadas por um discurso legítimo, a ação representada no clipe representa um ato violento e passível de punição. E isso representa mais uma quebra, uma vez que no cinema e na televisão as personagens femininas levaram um tempo muito maior que os homens para se desvencilhar de condutas morais em prol de suas próprias vontades. 

Em contrapartida, temos o personagem masculino associado a um ambiente religioso. Na mesma entrevista à Vice, Salma Jô conta que queria representar o homem como um líder, um moralista, um religioso. Essa visão reforça a legitimidade do apelo feito pela música, que enxerga todas as questões problemáticas do machismo como tendo uma tolerância na religião, nas leis, na política e na ideologia dominante de uma sociedade patriarcal. 

No vídeo, pode-se identificar uma certa intertextualidade com a história de Joana D’arc, retratada em livros e filmes. A heroína francesa canonizada pela igreja católica tornou-se uma mulher icônica na história ao lutar na Guerra dos Cem anos pela França e ser depois  entregue aos ingleses e queimada na fogueira sob acusações de bruxaria. No videoclipe de Falo, temos uma inversão de figuras com a cena da fogueira ao final, em que as mulheres preparam-se para queimar o homem na porta da igreja. Os movimentos feitos por elas em torno da fogueira assemelham-se a um ritual pagão ou de bruxaria, numa espécie de vingança simbólica. Antes disso, a cena quando o grupo de mulheres se aproxima da igreja munido de armas rudimentares e tochas, também remete à uma época medieval, de caça às bruxas. 

A originalidade do videoclipe de Falo está na forma como foi criado um ambiente que não conseguimos precisar à qual época faz parte. Devemos levar em conta que “ouvir música é uma experiência localizada numa determinada cultura, o que requer uma série de inferências acerca das relações construídas num contexto sócio-histórico” (SOARES, 2013, p. 166). A se observar pelo videoclipe, a história narrada se passa no interior do Brasil, tipo de região onde valores patriarcais e conservadores se fazem presentes de maneira mais forte. Os avanços trazidos com as últimas décadas no debate da igualdade de gênero chegam com mais dificuldade e defasagem em regiões mais afastadas ou isoladas.  O vídeo brinca com esses dois contextos temporais, trazendo personagens e discussões que encontram lugar nos dias de hoje, mas com elementos e uma forma de vingança arcaicos, evidenciando a demora na resolução de tais questões e, consequentemente, a permanência da tensão proveniente delas. 

A inovação do videoclipe está na construção de um ambiente onírico, sombrio, de pesadelo para incorporar os sentimentos e tema da música. Tratar da reivindicação do lugar da mulher na sociedade, seja no âmbito doméstico, profissional ou artístico, como sendo um elemento de pavor do homem. A estética de terror correspondendo a algo construído e vivido através da perspectiva subjetiva de um personagem. Ao escolher o homem como detentor do ponto de vista que gera o sonho, inverte-se o imaginário e os valores de referência que são traduzidos nas escolhas de fotografia, arte e edição do videoclipe.

A qualidade artística de Falo mostra-se presente com a cena moldura ao final, que ao mesmo tempo justifica as escolhas artísticas feitas no vídeo ao revelar que tudo tratava-se de um pesadelo, e também exprime um sentimento de revolta e inquietação ao percebermos o personagem masculino aliviado ao despertar do sonho. Todo o sentimento de catarse e satisfação tidos com a vingança exibida nas cenas anteriores dissipa-se e percebemos que aquele momento de fazer o homem pagar por seus erros ainda não havia chegado. Esse momento de confronto permanece presente apenas no imaginário feminino como uma vontade, no masculino, como um medo, e na própria canção, como uma ameaça: “E é bom que você se cuide / Não vai ter quem lhe acude quando eu quiser te capar”.

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