- Artista: Gabeu
- Data de lançamento: 2019
- Gênero: Sertanejo/Queernejo
- Categorias: Margem e Narrativa/Performance
Por Rebeca Telles
“Não só de Pop vive a Poc”. Numa tentativa de resgatar suas raízes sertanejas, mas a partir do seu próprio ponto de vista, Gabeu, filho do sertanejo Solimões, se lançou como cantor de queernejo, estilo que ele mesmo tem ajudado a moldar. “Por muito tempo tentei negar o sertanejo, por não me identificar com a narrativa, nem com as figuras heteronormativas”, disse Gabriel em entrevista para CNN. O gênero mistura elementos do sertanejo tradicional com toques de funk, brega, música eletrônica e outros ritmos. Mas sempre trazendo ao protagonismo a perspectiva de uma pessoa LGBT.
Em 2019, Gabriel Felizardo ressignificou a narrativa dominante ao lançar o clipe “Amor Rural”. A música fez barulhos nas redes ao contar a história de dois homens apaixonados, e os críticos a denominaram como “Pocnejo”, já que o artista também busca referências no universo pop. Porém, depois de muitas trocas com outros representantes dessa cena musical, o nome Queernejo foi adotado para incluir mais pessoas do espectro, além de meninos gays.
Como o título antecipa , Amor Rural narra uma história de amor ambientada no interior do Brasil, mais especificamente Franca (SP), onde cresceu Gabeu. Uma música de sertanejo falando sobre romance e sofrência não é lá novidade, certo? Essa não é a essência do sertanejo? Certo, mas ao trazer o ponto de vista de um homem gay, o videoclipe renova a narrativa do gênero.
“O meio sertanejo é muito masculino e totalmente heterossexual. Os maiores nomes são homens héteros e as mulheres chegam para falar da sofrência, do amor, de bebedeira, mas da perspectiva delas. O pocnejo chega com esse papel de mostrar outra perspectiva. É um garoto gay cantando sobre outro homem, mas continua sendo o amor, a sofrência. Essa é a essência do sertanejo”, afirma Gabeu em entrevista ao UOL.
Amor Rural é ambientado em apenas dois cenários, são eles: uma maquete simulando uma fazenda e um estúdio. A narrativa se desenvolve na fazenda de brinquedo, enquanto as cenas de performances do artista acontecem no estúdio. Nas cenas da maquete, somos apresentados aos personagens e aos objetos de cena que dialogam com o conceito sonoro da música. Já as cenas performáticas, misturam elementos rurais – capim, berrante, cachaça – com detalhes modernos, como a bota de oncinha e o brinco de cavalo. Nesse sentido, a direção de arte e as ambientações reforçam a temática do videoclipe e situam o espectador ao cenário rural.
Esses elementos visuais e estéticos, como figurino e objetos de cena, além de moldar a história, se apresentam como intertextualidade. Pois,faz alusão ao cenário rústico presente no sertanejo raiz como exemplo, o berrante que compõe o cenário do estúdio, é pertencente ao pai de Gabeu, o cantor Solimões.
Mas a intertextualidade não se limita a unidade imagética do clipe. A letra da canção é repleta de duplos sentidos, como “Por quanto tempo mais vamos amar no escuro?/ Vamos assumir o nosso amor rural”. Inclusive, o enredo da música é quase autobiográfico, pois se assemelha à experiência vivida por Gabriel, que saiu do “escuro do armário” a cinco anos atrás ao se assumir para família.
Em um vídeo para seu canal no Youtube Gabeu conta que queria provocar um sentimento de nostalgia no espectador. Com esse conceito em mente, a escolha do diretor de fotografia, Henrique Suenaga, em utilizar câmera VHS não é mera coincidência. Durante a narrativa o uso da câmera VHS remete uma estética caseira, presente também no cenário, com bonecos de pano, casinha e cerca de palito e brinquedos de plástico. Já nas imagens de estúdio, a VHS é substituída pela câmera digital. Com um novo enquadramento e cores mais neutras contrastando com o figurino do artista, as cenas de performance brincam com a metalinguagem, visto que Gabeu está dentro de um estúdio gravando um clipe e as imagens deixam claro isso.
A edição do clipe é linear e ajuda construir a história de “amor rural” dos dois peões. Além disso, alterna entre as cenas narrativas e as imagens de performance, trazendo maior dinamismo e metalinguagem para o videoclipe.
Amor Rural não explora muitos efeitos sonoros, mas há o uso de um som, no início e no fim do clipe, que se assemelha a uma televisão fora do ar. Esse efeito reforça a estética caseira presente no videoclipe, ainda mais unido aos créditos iniciais e finais que fazem alusão aos programas rurais da TV.
Gabeu é considerado um dos precursores do Queernejo, cena musical que visa trazer representatividade e diversidade ao gênero sertanejo. Nesse sentido, o clipe Amor Rural se consolida como um marco no movimento, trazendo elementos típicos do sertanejo raíz, mas desconstruindo estereótipos presentes no gênero.
Em relação à originalidade, pode-se destacar o contraste entre o estilo tradicional sertanejo com o visual ressignificado de Gabeu. Ao invés de usar a estética da “ostentação”, presente em muitos clipes do gênero, o artista investe numa estética mais caseira e menos industrial.
Através da narrativa, do visual ressignificado e dos versos recheados de duplo sentido, Amor Rural promove uma discussão social. O clipe nos incentiva a desconstruir as figuras heteronormativas que dominam o imaginário popular do gênero sertanejo.
Referências
GOODWIN, A. Dancing in the distraction factory: music television and popular music. Mineápolis: University of Minnesota, 1992.
HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016.
SOARES, T. A Estética do videoclipe. João Pessoa: Editora da UFPB,2013.
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