Por Júlia Garcia
Bad & Breakfast (2019) é uma série de ficção científica escrita por Miguel Leão e produzida pela Comicalate, coletivo audiovisual independente que reúne artistas de diversas áreas. O projeto é parte da iniciativa RTP Lab, desenvolvida pelo canal público português RTP, tendo como objetivo o estímulo a novas formas de produção, baseadas em narrativas de caráter experimental e inovador. As séries criadas sob esse selo são veiculadas na plataforma RTP Play, assim como demais programas da emissora.
Com cinco episódios de aproximadamente quinze minutos, Bad & Breakfast se passa numa Lisboa futurista dominada pelo turismo. Nesse contexto, as amigas Lenita (Carolina Torres) e Susana (Ana Valentim), com dificuldades de se estabelecerem economicamente como artistas, passam a limpar Airbnbs alugados por turistas. No entanto, o trabalho é apenas uma fachada para atrair os visitantes e inserir neles chips chamados Libelinhas Roxas, uma manobra desenvolvida pela organização secreta Welcome to Lisbon Underground Club. Esse dispositivo permite controlar pessoas através do app Rent-a-Tourist, com funcionalidades como limpar e cozinhar. Contudo, após o afastamento do sócio Rui (Frederico Serpa), que se ausentou para ir a um retiro espiritual, Mr. Pauls (Isac Graça) começa a matar os turistas para produzir carne enlatada e servi-la no bar onde a sociedade secreta opera.
No plano da expressão, em relação aos códigos visuais, a série é ambientada em Lisboa, capital portuguesa, em um futuro próximo. Sendo assim, várias localizações reais da cidade são mostradas ou citadas, como Moscavide e o bar Tokyo Lisboa, onde, inclusive, os artistas da produtora Comicalate se apresentam toda segunda-feira no Monday Special. Esse mesmo bar, na série, é gerido por Mr. Pauls (Isac Graça) e Rui (Frederico Serpa) e, além disso, alguns personagens são interpretados pelos próprios colaboradores da Comicalate. Pode-se perceber, portanto, uma espécie de metalinguagem na narrativa, já que os artistas portugueses da Comicalate estão interpretando o papel de artistas portugueses que se apresentam no mesmo bar frequentado pela produtora.
Por ser ambientada no futuro, é possível observar ao longo da narrativa a utilização de vários gadgets e inovações tecnológicas pelos personagens, como o chip Libelinha Roxa, jaquetas que emitem sons ao serem feitas certas poses e ligações de vídeo feitas pela mente, com imagens exibidas diretamente pelos olhos.
A fotografia – seguindo a concepção de um futuro tecnológico e se assemelhando, de certa forma, a características estéticas do audiovisual cyberpunk – utiliza iluminação neon, especialmente em cenas noturnas internas. No entanto, quando são apresentadas as ruas de Lisboa, nada parece indicar presença de tecnologia avançada ou mudanças no cenário urbano; a cidade é retratada, de modo geral, da mesma forma que se apresenta atualmente. Os carros, por exemplo, são os mesmos utilizados hoje em dia, e as protagonistas andam de tuk tuk, veículo de três rodas comum em países como Índia e Tailândia e frequentemente usado em passeios turísticos por Lisboa. Sendo assim, a fotografia das cenas externas segue um padrão naturalista, o que, somado à representação da cidade do modo como ela se encontra hoje, dá a ideia de um futuro não tão distante, passível de ocorrer a qualquer momento. Esses elementos dão verossimilhança à narrativa e aproximam as discussões temáticas ao presente, facilitando a associação, por parte do público, das temáticas discutidas pela série às questões enfrentadas atualmente.
Ao longo da narrativa são apresentados, ainda, alguns flashbacks durante os quais há o esmaecimento da fotografia, com pouca saturação, deixando clara a mudança de temporalidade. Entretanto, há sequências oníricas e fantasiosas que não vêm acompanhadas por tal alteração na fotografia, o que requer, nesse caso, que o espectador reconheça a utilização dessas estratégias mediante o contexto, e não por meio dos recursos técnico-expressivos.
Em relação à caracterização dos personagens, as roupas e cortes de cabelo são, em geral, modernos, mas não futuristas. O mesmo ocorre com a maioria dos objetos cenográficos, à exceção de alguns gadgets. Em certas cenas, inclusive, há a retomada do passado, mediante o figurino, cenografia e maquiagem, por exemplo. Mr. Pauls (Isac Graça) corta o cabelo em uma barbearia antiga e lê um jornal que ele próprio denomina vintage. Da mesma forma, pode-se ver uma série de pôsteres de filmes antigos no apartamento de Lenita (Carolina Torres) e Susana (Ana Valentim). Além disso, o estilo de Gigi (Inês Faria) é notadamente pin-up, remetendo às décadas de 40 e 50. Pode-se observar, portanto, imbricadas relações entre passado, presente e futuro. Mr. Pauls parece querer retomar o passado, enquanto o espectador se encontra no presente e Lisboa, em um futuro não tão distante.
A mistura de temporalidades também é percebida na trilha musical, inserida nos códigos sonoros, a qual é constituída, principalmente, por canções ligadas ao Soul, Jazz e R&B, que remetem ao passado. Além disso, a banda sonora também é composta por trilhas instrumentais, usadas frequentemente nas sequências oníricas. Nessas sequências – e em alguns outros momentos da narrativa – a edição, referente aos códigos sintáticos, possui marcas evidentes de enunciação, ou seja, se torna autoconsciente, quebrando, de certa forma, a diegese. A divisão da tela ao meio, mostrando um personagem de cada lado, é um exemplo da utilização desse tipo de recurso de edição. Em um dos episódios, ainda, foi inserida uma sequência animada, que serviu como um flashback para contar o passado de Mr. Pauls (Isac Graça). Sendo assim, nem sempre a edição é feita linearmente, apesar de a narrativa ser apresentada de maneira cronológica na maior parte do tempo.
Além disso, é válido pontuar que a história é contada, em diversos momentos, em primeira pessoa por Susana (Ana Valentim), que atua como uma espécie de narrador-personagem. Em voz over, Susana narra várias cenas da série, inclusive se dirigindo diretamente ao público algumas vezes. Na sequência em que dirige o tuk tuk em direção à faculdade para fazer uma prova, Susana, como narradora, expõe seus pensamentos no momento e, por fim, acaba por dizer: “já sei, vocês devem estar a perguntar do que Mr. Pauls está a vingar; é um autêntico filme, na verdade, então…”. A frase serve como mote para iniciar a sequência animada que conta o passado de Mr. Pauls (Isac Graça).
Quanto aos códigos gráficos, há a inserção de grafismos para a indicação de algumas mudanças temporais ou determinadas informações, como o nome do Inspetor (Mauro Hermínio), que é colocado na tela durante o flashback que o apresenta, contado pelo Barbeiro (José Raposo). Embora não haja vinheta inicial, após alguns minutos de cada episódio há sempre a inserção do título da série na tela, com letras amarelas riscadas envoltas por um contorno roxo. Essa mesma fonte é utilizada na vinheta final, que apresenta os créditos ao som de uma música Soul animada.
No plano do conteúdo, o storyline foca nas amigas Susana (Ana Valentim) e Lenita (Carolina Torres), que trabalham para Mr. Pauls (Isac Graça) no Welcome to Lisbon Underground Club, uma organização secreta que busca angariar turistas para controlá-los através de chips. As meninas limpam os Airbnbs utilizados pelos turistas e, posteriormente, os seduzem, dando a eles pirulitos que os fazem dormir, permitindo, então, que elas insiram os Libelinhas Roxas. Com os chips inseridos, basta utilizar o app Rent-a-Tourist para ordenar as mais diversas tarefas aos turistas, totalmente controlados pelo aplicativo. A iniciativa foi ideia de Mr. Pauls e Rui (Frederico Serpa), que contaram com tecnologia desenvolvida pelo engenheiro Paulo Armando (Francisco Ferreira).
Incomodados com o turismo predatório, que transforma Lisboa em uma cidade cada vez mais dos turistas e cada vez menos dos moradores, Mr. Pauls e Rui criaram a cadeia de Airbnb Bad & Breakfast para servir como fachada e atrair seus alvos. O nome faz alusão ao termo bed and breakfast, um tipo de acomodação na qual é alugada uma casa ou apartamento de moradores locais, ao invés da hospedagem em hotéis. A substituição do termo bed (cama, em português) para bad (ruim ou mau) já dá indícios de que há algo errado com o serviço. Quando Rui viaja para um retiro espiritual e deixa Mr. Pauls à frente do negócio, o homem passa a ordenar que os turistas sejam levados a matadouros, para que sirvam como matéria-prima para carnes enlatadas. É nesse momento, com Rui já afastado, que Mr. Pauls conhece Lenita e a convida para o empreendimento.
Dessa forma, a série aborda temas como a dificuldade de subsistência de artistas, as possibilidades tecnológicas para o futuro, as implicações morais e éticas de se fazer justiça com as próprias mãos e, principalmente, a situação do turismo em Lisboa. Nesse contexto, são apresentados personagens que são, em sua maioria, moradores da cidade. Lenita (Carolina Torres) é uma musicista independente e decidida, que não hesitou em participar da empreitada de Mr. Pauls (Isac Graça). Susana (Ana Valentim) é uma estudante de cinema que, a princípio, parece ser convencida por Lenita a participar do Lisbon Underground Club. No terceiro episódio, contudo, descobre-se que Susana, na verdade, já sabia de tudo, e estava atuando como uma infiltrada para cessar as atividades de Mr. Pauls, a pedido de Rui (Frederico Serpa). Mr. Pauls é um homem excêntrico, descendente de uma família de imigrantes ingleses que se estabeleceu em Portugal. Ele herdaria o restaurante da família, que era motivo de orgulho, mas o prédio acabou sendo vendido para a criação de um Airbnb. Mais tarde, seus pais morreram em um acidente causado por um tuk tuk, o que fez Mr. Pauls jurar vingança ao turismo, em nome de seus pais e da cidade de Lisboa. Há, ainda, personagens como o Inspetor (Mauro Hermínio), irmão de Susana e também infiltrado, e Sérgio (Ângelo Rodrigues), turista que caiu na armadilha de Mr. Pauls, mas que não foi enviado ao matadouro por Lenita, que, ao invés disso, passou a utilizá-lo como brinquedo sexual.
Em relação à encenação e dramaturgia, as atuações e os recursos técnico-expressivos são construídos de modo a trazer verossimilhança ao conteúdo. No entanto, apesar de ser uma ficção científica e trabalhar com temáticas, de certa forma, sombrias – como a transformação de turistas em carne enlatada – Bad & Breakfast o faz de modo leve e divertido, sem, contudo, transformar a narrativa em algo extremamente risível ou caricato. Como exemplo tem-se o vídeo institucional do Lisbon Underground Club, que Mr. Pauls (Isac Graça) mostra a Lenita (Carolina Torres). O vídeo opera de forma expositiva, pontuando os problemas do turismo invasivo e as soluções encontradas pelo grupo para responder à problemática – no caso a inserção dos chips para controlar os turistas. Nesse contexto, ao abordar a transformação dos turistas em carne enlatada, o vídeo mostra imagens de latas com rótulos como “patê de francesinha”, “almôndega italiana” e “salsicha alemã”, sendo que cada vez que uma lata aparece no ecrã é inserido um som agudo, simbolizando a apresentação de uma boa ideia. Enquanto o vídeo institucional possui tom cômico, os personagens o tratam com seriedade, estabelecendo equilíbrio entre a verossimilhança da narrativa e a comicidade da edição. Outras cenas cômicas, como Lenita brigando no trânsito com um taco de beisebol após dizer que é uma motorista calma e tranquila, são contrapostas a sequências mais sérias, como a apresentação do passado de Mr. Pauls. Esse equilíbrio entre humor e seriedade permeia toda a narrativa.
No âmbito dos parâmetros de qualidade, a oportunidade pode ser observada à medida que a série utiliza como tema principal o turismo invasivo em Lisboa, questão atual e presente na agenda do público português. Do mesmo modo, Bad & Breakfast ainda discute possíveis inovações científicas em um futuro próximo, o que dialoga diretamente com o contexto tecnológico no qual a sociedade está inserida.
Ao trabalhar essas temáticas, a série possui a capacidade de ampliação do horizonte do público, uma vez que questiona as práticas predatórias e invasivas do turismo, as quais, muitas vezes, são maléficas a quem mora em locais muito visitados. Ao mesmo tempo em que a ideia de turistas enlatados é apresentada de forma cômica, enfatizando o absurdo da proposta ao público, ela é levada a sério pelos personagens, permitindo que haja a problematização e discussão a respeito das práticas turísticas. Nesse contexto, é interessante pontuar que, ao final da série, Rui (Frederico Serpa) cessa as atividades de Mr. Pauls (Isac Graça) e retoma seu empreendimento, parando a matança de turistas. No entanto, eles continuam a ser atraídos para posterior implantação de chips, de modo que possam ser controlados. Fica claro, portanto, que o turismo invasivo continua a ser um problema para os personagens, colocando a questão ainda mais em evidência. Além disso, conflitos éticos são apontados ao longo da narrativa, como quando Susana (Ana Valentim) argumenta com Lenita (Carolina Torres): “quem somos nós para decidir quem tem de viver e quem tem de morrer? Somos seres humanos, não nos cabe executar a função dos Deuses”. Por fim, Bad & Breakfast também aborda, embora com menor ênfase, as dificuldades de artistas sobreviverem apenas com o trabalho artístico.
A narrativa conta, ainda, com considerável diversidade de personagens, abrindo mão de estereótipos para a construção da história. A diversidade racial é um ponto de relevância, sendo vários personagens negros, incluindo a protagonista Susana (Ana Valentim). Além disso, há certa diversidade cultural, uma vez que turistas interagem com portugueses, com inúmeros diálogos também em inglês. É relevante pontuar, nesse contexto, que português e inglês são misturados a todo momento, sem que, contudo, haja dificuldades de comunicação ou interpretação. Mr. Pauls (Isac Graça), por exemplo, sempre fala inglês, mas é constantemente respondido em português, sem prejuízos ao entendimento entre os personagens. Essa troca cultural espelha um ambiente globalizado e cosmopolita, que pode ser relacionado, principalmente, a locais permeados pelo turismo.
Por fim, a originalidade/inovação da série se reflete em escolhas narrativas que não são tão comuns à ficção televisiva, como sequências oníricas frequentes, utilização de narrador-personagem, apresentação de trechos de animação e edição autoconsciente, por exemplo. Dessa forma, por fazer parte de um projeto voltado à experimentação e à publicação online, desamarrado de convenções bem delimitadas, Bad & Breakfast pôde trabalhar de forma criativa com a narrativa, apresentando modos de narrar que, embora não sejam totalmente novos, não são comumente vistos nas ficções veiculadas no ambiente televisivo.
*Todas as imagens são capturas de tela.
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