Observatório da Qualidade no Audiovisual

On C@ll

Por Luma Perobeli

On C@ll é uma série multiplataforma portuguesa criada por Ruben R. Gomes e desenvolvida pela RTP Lab, um laboratório que produz e ancora novas produções audiovisuais pensadas exclusivamente para o ambiente digital. Foi selecionada por meio do processo de candidatura realizado pelo projeto, e se apresenta em três plataformas: YouTube, Instagram e RTP Play. O conteúdo teve início em 30 de abril de 2019 nas redes sociais dos protagonistas, o canal de Suzana (Suzana com Z | Série On C@ll | RTP Lab) e o perfil do Tiago (@TRSVTELLES), através das fotos e vídeos que iam sendo disponibilizados de terça à sexta-feira para que os espectadores fossem conhecendo os personagens e se envolvendo com a trama. E nas segundas-feiras, com estreia em 6 de maio, a série era transmitida pela RTP Play através dos oito episódios de cerca de 10min cada, material que aqui tomaremos como o enfoque principal da análise.

A série conta a história de Suzana (Alexandra Pato) e Tiago (Rafael Costa), dois jovens de 24 anos que se tornam amigos virtuais depois de uma ligação que a mulher faz ao rapaz quando trabalhava numa empresa de call center. Enquanto ele é um programador tímido e inteligente, ela é uma influencer digital que mantém um canal no YouTube, e quer ser perfeita e famosa na internet. Apesar de bastante diferentes e de nunca terem se visto pessoalmente, a amizade dos dois se fortalece pelas chamadas de vídeo que fazem para ajudar um ao outro a ficarem com as pessoas que amam: Tiago ajuda Suzana a reconquistar Pitacho (Pedro Monteiro), e Suzana orienta Tiago sobre como falar com Rita (Sofia Vasconcellos e Sá).

No que se refere aos códigos visuais, do plano da expressão, a série utiliza diversos planos de câmera e iluminação, de acordo com o local das filmagens. Os principais cenários são a sala de estar de Suzana, o quarto de Tiago, e o setor de trabalho em que Tiago, Gui e Rita trabalham. Algumas externas também são presentes, como o estacionamento da empresa em que os jovens trabalham, um café, um restaurante, um jardim, e a entrada do prédio em que Suzana e Tiago moram. Quanto à iluminação, tem destaque os ambientes em que a luz que prevalece é a que vem dos aparelhos eletrônicos, como a da tela do computador, reforçando a presença dos ecrãs na vida dos jovens. 

Em On C@ll, guarda-roupa e maquiagem acompanham os momentos de cada personagem, segundo o estereótipo de cada um. Suzana, que é uma mulher sensual e provocante, usa roupas justas e curtas, que marcam seu corpo. Tiago, o jovem tímido e inteligente, usa óculos e camisa de botão, fechada até o pescoço, quando está no trabalho, e estampas com referências nerd quando está em casa, assim como o amigo Gui. Na maquiagem, também há coerência com cada perfil. Da mesma forma que Tiago fica suado e com a pele brilhosa quando está nervoso, Suzana está o tempo todo com a pele preparada e maquiada, seguindo a mulher que representa: uma jovem cuja imagem é importante para o trabalho e para os sonhos que mantém, como o de ser famosa. 

Ainda com relação aos códigos visuais, percebe-se que há qualidade técnica na imagem, mas que a preocupação com detalhes não é algo tão importante para os produtores da série. Ao final do episódio seis, por exemplo, a protagonista, que na trama é influencer digital, aparece de óculos espelhado gravando algo para o seu canal. No reflexo, vê-se tripés e pernas, provavelmente de pessoas dos bastidores da série, já que outros personagens não faziam parte daquele núcleo de gravação da casa de Suzana, somente ela e sua avó, Felismina, interpretada pela atriz Maria Vito. Outro exemplo está quando Tiago conversa com Suzana através da câmera do computador. Ele usa óculos de grau, e as lentes refletem telas brancas, e não a janela da conversa com a amiga.

Quanto aos códigos sonoros, no geral a qualidade técnica é boa, exceto pelos poucos momentos em que há alguma variação no áudio, quando o som fica ruim e não se ouve bem. Sobre os códigos sintáticos, a edição é linear e o ritmo do programa se dá de forma cronológica, porém com a inserção de situações passadas que surpreendem o espectador por elucidar algo que os protagonistas só descobrem na última cena do último episódio. Por serem bem demarcadas, essas situações colocadas não exigem grande esforço do público, que facilmente entende se tratar de outro espaço-tempo.

Nos códigos gráficos, a vinheta inicial de 15s é condizente com a proposta temática da série. Ela introduz a tecnologia e o amor através de caracteres verdes e emojis, numa espécie de painel eletrônico, para formar os nomes dos quatro personagens principais combinando com códigos e desenhos que sugerem a ideia de possíveis pares românticos. Ao final desta abertura, o título da produção aparece na tela, junto do subtítulo “os opostos conectam-se”. Na vinheta final, trechos dos vídeos do YouTube de Suzana encerram cada episódio.

No plano do conteúdo, destacamos a experiência do cotidiano trazida pela narrativa. O tema central gira em torno do banal e do comum da vida de duas pessoas hiperconectadas, que usam a tecnologia para trabalhar, fazer amigos, encontrar parceiros, ter prazeres sexuais, se divertir, e até fazer ciúmes no ex para tentar provar qualquer coisa. A produção faz referência ao modo de vida de pessoas que têm suas vidas mediadas pelas telas, como indica o fato dos dois personagens principais morarem no mesmo prédio e nunca terem se visto, pois estão sempre com os olhos para os celulares. Há aí uma metáfora da proximidade possibilitada pela internet, que muitas vezes conecta virtualmente, mas distancia pessoalmente.

A dramaturgia se constrói sobre as figuras antagônicas de uma personagem que busca reconquistar o ex-namorado, e de outro personagem que tenta ser notado pela amada. As buscas se traduzem em uma trama que se desenvolve em meio aos encontros e entrelaços dos personagens, que se ligam no meio dos conflitos e compõem um núcleo que utiliza elementos dramáticos para o envolvimento do público. Há um casal de personalidades opostas (Suzana e Tiago), um amigo bom e conselheiro (Gui, interpretado por Sergio Marcelino), um antigo namorado sensível e sincero (Pitacho), um atual bonitão e musculoso (Daniel / Salvador Telles), uma mocinha que se torna vilã (Rita), e vencedores e final feliz (quando os protagonistas se declaram um para o outro). Além disso, fraquezas são expostas, bem como medos, angústias, frustrações e alegrias, sentimentos que geram identificação em quem assiste, apesar dos personagens um tanto caricaturais.

Na encenação, o quê de burlesco atribuído aos protagonistas gera cenas e atitudes pouco verossímeis, que beiram o exagero. É o que acontece, por exemplo, no episódio seis, quando Rita exige que Daniel (André Lopes) lhe dê o endereço de Suzana e, para isso, começa a tirar da sua pequenina bolsa grandes ferramentas para ameaçar o ex-namorado, como uma luva de boxe, uma faca e um taco de baisebol. E é dessa representação que a produção explora o riso, dando a comicidade que deseja. É na colite que o protagonista tem toda vez que fica nervoso, por exemplo, que a timidez e personalidade do nerd que não tem coragem de falar com as mulheres, ganha força e é evidenciada para marcar essa dificuldade nas habilidades sociais do jovem.

Com relação aos parâmetros de qualidade do plano do conteúdo, a oportunidade se faz presente devido às temáticas abordadas por On C@ll, atuais e férteis na sociedade do século XXI. Emancipação feminina, tecnologia, paixões, amizade, relações sociais, culto ao corpo, e habilidades de expressão de sentimentos são alguns dos temas trazidos pela série. No que se refere à diversidade, não há destaque desse parâmetro em nenhum sentido, já que a representação de diferentes grupos sociais não é notável pela diversidade geográfica, política, socioeconômica, cultural, étnica, religiosa ou de pontos de vista.

No indicador estereótipo, é relevante o modo como os produtores fazem uso desse elemento na história. A série se empenha, na maior parte do tempo, em desconstruir estereótipos e estigmas enraizados na sociedade. O fato de a personagem principal trocar sexo por coisas do seu interesse, não é uma questão. Não há referências pejorativas a isso, nem com elementos relacionados a sexo, como um vibrador ou preservativo. O conflito inicial da trama, que se dá com o término do namoro de Suzana com Pitacho porque ele não aceitava o fato de que a mulher havia se envolvido com um homem em troca de um eyeliner (delineador), é o mote para a quebra de qualquer preconceito quanto a isso. E o ato sexual, inclusive, é tratado de forma natural, tanto que no episódio quatro Rita ensina Tiago a maneira correta de se colocar o preservativo, demonstrando com uma banana.

Outro exemplo do caráter da série de desconstrução de estereótipos está no terceiro vídeo do canal da Suzana, quando a personagem dá a entender que se ofendeu por a chamarem de “puta”, quando, na verdade, ela se ofendeu por terem errado o seu nome. Em dado momento, ela diz “é uma falta de respeito. Eu posso processar a empresa, não posso? Eu acho que posso. Tenho que preencher qualquer coisa, mas não interessa. Eu vou processá-los. Se me voltam a chamar de” quando é interrompida pela avó, que completa “fruta, para tu escolheres, maçã ou banana?”. A cena insinua para o espectador qual a palavra ofensiva que disseram para Suzana, mas depois quando ela diz que não aceita que a chamem de Cristiana, há aí uma quebra de expectativa.

Neste sentido, romper com pressupostos e preconceitos de uma sociedade conservadora é, automaticamente, ampliar o horizonte do público, as perspectivas e o senso comum dos espectadores. E para além do papel da série de expandir pensamentos, é relevante pensar sobre a originalidade/criatividade presente nela, demarcada pelo projeto da RTP Lab, que dá a oportunidade de novos nomes produzirem seus materiais e se inserirem no mercado do audiovisual, tendo a autonomia e a criatividade do criador preservadas, como afirma o próprio autor.

Na mensagem audiovisual, diálogo com/entre plataformas e solicitação da participação ativa do público são indicadores intrínsecos à produção, uma vez que ela tenha sido criada para atender a três plataformas (YouTube, Instagram e RTP Play). Sua intertextualidade dialoga com o público por mostrar ou citar lugares, marcas e pessoas da vida real, como Lisboa, Cintra, Ilha da Madeira, YouTube, cerveja Sagres, Renalt, Samsung, Angelina Jolie e Brad Pitt. Além disso, o diálogo direto dos episódios com as redes sociais também aproxima e solicita a participação do público. Ao final de cada vídeo exibido na RTP Play, por exemplo, trechos dos vídeos do canal de Suzana indicam que no YouTube há mais conteúdo para ser explorado. Além disso, o desfecho da história não é revelado na websérie. Ao final, há lettering na tela que indica que a continuação da trama acontece pelo Instagram, estimulando o espectador a participar mais ativamente e ir atrás dos conteúdos que estão nas outras plataformas.

* Todas as imagens usadas nesta análise são capturas de tela.

Observatório da Qualidade no Audiovisual

Comentar