Observatório da Qualidade no Audiovisual

Boca a Boca: análise dos processos de circulação

Após a análise dos processos de produção de Boca a Boca, com foco na forma e conteúdo da narrativa, agora será feita a análise dos processos de circulação da série, a partir das publicações nos perfis oficiais da Netflix no Facebook, Instagram, Youtube e Twitter. No total, foram levantadas 13 publicações referentes à obra. Pode-se adiantar que não foram elaborados conteúdos de expansão, ou seja, nenhuma das postagens tinha a intenção de trazer novas camadas ou informações pertinentes ao entendimento do universo ficcional ou de seus personagens. As ações tinham apenas o intuito de promover a série e gerar engajamento para sua estreia na plataforma.

No caso de Boca a Boca, é relevante destacar que a série foi lançada em 17 de julho de 2020, cerca de quatro meses após o início do isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19. Isso é pertinente, pois a doença presente na história e os impactos dela na cidade fictícia de Progresso têm muitos paralelos com os acontecimentos e medidas de segurança adotadas durante a quarentena no Brasil. Apesar disso, Esmir Filho, showrunner da produção, confirma que a série já estava sendo elaborada desde 2018, de forma que as semelhanças foram apenas coincidências.

“A ideia inicial era falarmos sobre descobertas, desejos, experimentações. Queríamos retratar o mundo jovem de hoje, que é povoado por telas. Esse é o tema, mas aí houve o coronavírus e o olhar sobre a série foi mudando. A epidemia virou ponto de partida e o que agora se vê pode ser outra coisa – como ficam as relações após a pandemia.”, afirma Esmir. Percebe-se, a partir da fala, que o contexto pandêmico trouxe novas camadas de interpretação para o enredo e, pela análise das publicações feitas, que tal contexto foi aproveitado numa reconfiguração da maneira como a série seria apresentada ao público. O showrunner ainda pontua  que a ideia surgiu de sua vontade de discutir sexualidade e que os acontecimentos da história partem de pensamentos sobre o preconceito gerado pela  epidemia de HIV com relação a alguns tipos de corpos

A narrativa, repleta de simbolismos e alegorias, traz uma união de alguns gêneros, como o drama adolescente, com atmosfera de thriller e ficção científica, ao mesmo tempo que flerta com alguns elementos fantásticos. Com apenas uma temporada, a divulgação de Boca a Boca foi iniciada algumas semanas antes do lançamento da série na plataforma, e encerrada menos de um mês após a estreia.

Youtube

No canal oficial da Netflix no Youtube, foram identificados apenas dois vídeos relacionados à série [Figura 1]. O primeiro foi publicado cerca de três semanas antes da estreia, e o segundo, uma semana depois de Boca a Boca ter chegado à plataforma de streaming, com seus seis episódios disponibilizados.

O vídeo postado antecipadamente à estreia da série, como pode se esperar, foi o trailer da temporada, publicado no dia 23 de junho de 2020. A publicação foi categorizada como conteúdo reformatado de antecipação da categoria Divulgação. Já o vídeo publicado uma semana após o lançamento de Boca a Boca era um conteúdo informativo promocional, pois trouxe informações adicionais sobre o contexto de produção da série, focando em elementos não diegéticos. Por ter o objetivo de revelar esse “por trás das câmeras” ao público, foi identificado como postagem da categoria Bastidores.

O vídeo com título “Porque você deveria assistir Boca a Boca” possui cerca de 5 minutos e recebeu uma vinheta de introdução, além de narração que destaca os mais variados pontos positivos da série, ilustrados com alguns recortes de cenas dos episódios [Figura 2]. Após uma breve explicação sobre a trama e seus principais pontos, contam um pouco do contexto de produção, justificam escolhas estéticas e ressaltam temas relevantes abordados a partir da narrativa. Uma informação importante, por exemplo, é a de que a série foi idealizada dois anos antes do lançamento, de modo que os paralelos entre a doença da trama e a pandemia de COVID-19 foram apenas uma coincidência. Apesar disso, a narração do vídeo diz que as dicas dadas pela atração ainda são válidas e a edição aproveita alguns trechos-chave, como o uso do álcool gel pela diretora da escola. Em Boca a Boca, entretanto, a cena não acontece como uma forma de prevenção à doença ou como alerta sobre o assunto, mas como forma de destacar a assepsia da personagem e construir sua identidade a partir das simbologias de controle e limpeza. 

Percebe-se, assim, que a Netflix aproveitou tais elementos para aproximar a série às vivências do momento pandêmico. Com as produções audiovisuais paralisadas durante a quarentena, Boca a Boca foi uma das primeiras produções que conseguiram incorporar esses elementos que se tornaram símbolos do período, como uso de máscaras e álcool, sem ter sido feitas com as limitações das obras concebidas e executadas durante o isolamento social. Além desse tópico, a narração cita que a obra trata de temas como “homossexulidade, homofobia, relações familiares, racismo, luto, desigualdade social, política”, trazendo também inspirações de maquiagem, destaque à trilha sonora com artistas conhecidos e à fotografia com cores neon e atmosfera psicodélica. 

Facebook

Foram feitas quatro publicações sobre Boca a Boca no Facebook [Figura 3], todas no intervalo de um mês antes a um mês depois do lançamento da série. Duas delas são os mesmos vídeos já mencionados na seção referente ao Youtube, correspondendo ao trailer da temporada e à edição com motivos para assistir à produção. Os outros dois foram conteúdos informativos, um promocional do tipo Crossover e um contextual de Divulgação, classificado também enquanto Meme. 

O post do tipo Crossover era uma foto com a capa da série como se estivesse na interface da Netflix, juntamente com outras três séries originais do catálogo que se assemelham com ela de alguma forma: Elite (2018), Sangue e Água (2020)  e Control Z (2020). A ideia era criar um fluxo de interesse entre os fãs das diversas séries para conhecer as outras obras, um pouco na lógica em que atua o próprio algoritmo de recomendação da plataforma (Furtuoso; Sigiliano; Borges, 2022). Percebe-se o foco num público mais jovem, a partir das produções sugeridas e da legenda que acompanhou a postagem.

A quarta publicação, do tipo Divulgação e secundariamente classificada como Meme, trazia uma notícia que relacionava o tema da série com a pandemia de COVID-19, com manchete “É “FAKE! Sapinho poderoso transmitido pela saliva é apenas a trama da nova série da Netflix”. A imagem brinca também com o contexto de notícias falsas que foram massivamente divulgadas no período e, com humor, acalma a população sobre a existência de uma suposta nova doença. A classificação enquanto meme se dá por ser subvertida, com um tom cômico, a estética de um site de notícias e a construção jornalística do texto para relacionar o universo ficcional com acontecimentos da realidade. 

Instagram

O Instagram da Netflix trouxe 3 publicações com menções à série. Não houve conteúdos reformatados, visto que nem o trailer foi publicado nesta rede social. Todas as postagens foram feitas apenas com fotos e são do tipo promocional, sendo uma da categoria Divulgação e duas da categoria Crossover.

Todas as postagens foram feitas no mês de julho, quando a série foi lançada. A primeira delas é uma publicação tradicional do Instagram da Netflix, com todas as estreias do mês. Do tipo Crossover, apenas cita a série e sua data de inserção no catálogo. Outra postagem do tipo Crossover foi feita no dia 18 de julho, um dia após seu lançamento. Ela foi um carrossel de imagens com fotos de cenas destacando alguns personagens, porém sem nomeá-los. A legenda trazia menções a outras séries, como Elite e Control Z, tentando associar seus públicos para gerar um fluxo de interesse. 

Já a publicação do tipo Divulgação trazia um ensaio fotográfico com o elenco da série, numa perspectiva mais artística e voltada ao público jovem [Figura 6]. Outro lado trabalhado pela divulgação da série, em contraposição à atmosfera de mistério causada pela doença, foi justamente esse apelo ao público jovem, com cenas dos personagens vestidos com cores neon, se beijando em festas de luzes coloridas e psicodélicas. Como mencionado na análise dos processos de criação audiovisual, há destaque para tons rosados e azulados. Essa roupagem foi trabalhada principalmente no Instagram e no Twitter, estando menos destacada no Youtube e Facebook.

Twitter

Assim como no Facebook, no Twitter foram feitas 4 publicações, sendo essas duas as redes sociais com maior número de peças divulgadas [Figura 7]. Todas as quatro foram conteúdos informativos promocionais, sendo três da categoria Divulgação e um da categoria Apresentação de personagem. Aqui também, similar ao que aconteceu no Instagram, as publicações foram todas baseadas em fotografias, em uso de vídeos, nem mesmo o trailer da temporada. 

A única postagem em todo processo de transmidiação que destacou ou introduziu algum personagem foi feita no Twitter, no dia 25 de julho. Eram quatro fotos de Fran, com a legenda elogiando seus cabelos e os penteados usados na série [Figura 8]. Por ser uma personagem negra, com cabelos crespos, a postagem articula ideias de diversidade e representatividade, com um teor político que está também presente dentro da trama.

As outras três publicações, todas de Divulgação, seguem o mesmo padrão desta última, sendo compostas por legenda e quatro fotos postadas juntas. Uma delas foi o mesmo ensaio fotográfico com apelo mais jovem mencionado na seção relativa ao Instagram. Outra destacava a elaboração estética da série com foco na paleta de cores, e a última trazia imagens dos personagens em luzes neon se beijando. Essas imagens de beijo foram acompanhadas de legenda que brincava que a série era um “gatilho nessa carentena”, brincando com o fato de as pessoas estarem há muito tempo sem poder frequentar festas e ter contato mais íntimo com outras pessoas. 

Parâmetros de qualidade da transmidiação

De modo geral, pode-se dizer que Boca a Boca não teve tanta dedicação por parte da Netflix numa divulgação em redes sociais quanto outras obras em seu catálogo. Não somente a série não ganhou perfil específico em nenhuma rede social, como também teve poucas peças produzidas e nenhuma delas esteve presente em todas as plataformas, havendo uma distinção entre o uso feito do Youtube e Facebook em contraponto com o Instagram e o Twitter.

Essa distinção, porém, não chega a ser um fator que permita atestar uma clareza da proposta comunicativa, pois a escassez de ações de transmidiação não pareceu configurar sequer uma proposta. Foi notado, por exemplo, que o trailer circulou apenas em duas redes sociais, o Facebook e o Youtube – as mesmas foram as únicas que tiveram publicações com uso de vídeos. Assim como o ensaio fotográfico com o elenco circulou apenas no Twitter e Instagram – ambientes nos quais só se usou o recurso de fotografias e imagens estáticas. Isso, de não usar vídeos em alguns perfis, não é algo comum, visto que conteúdos reformatados são frequentes nas divulgações da desenvolvedora, aproveitando trechos de cenas e episódios para antecipar ou retomar acontecimentos e personagens. 

O diálogo entre plataformas também esteve ausente da estratégia, com os pares de redes sociais funcionando quase como de forma isolada uns dos outros. Nenhuma publicação direcionava o interesse do telespectador interagente para outra plataforma. O que pode ser destacado, ao menos, é que foi possível identificar um apelo ao público jovem mais notável no Instagram e no Twitter, tanto na linguagem utilizada quanto nos conteúdos. 

A partir das peças levantadas, não foi identificada a expansão do universo ficcional nas ações de transmidiação. Isso porque todos os conteúdos postados foram de propagação, em sua maioria informativos, trazendo algumas informações contextuais sobre a série ou materiais promocionais mais tradicionais como trailers e fotografias do elenco. Não houve esforço ou intenção em apresentar os personagens ou o ambiente da trama de forma mais detalhada, com destaque para alguns protagonistas, por exemplo. O vídeo que apresenta motivos para assistir à obra até traz algumas informações, mas elas são breves e se sucedem de forma rápida e sem uma sequência lógica, de forma que ao falar de tudo num mesmo conteúdo, não se conseguiu dar destaque a nada. Isso foi um ponto bastante decepcionante, de certa forma, visto que a série trabalha o uso de redes sociais e tecnologia de forma bastante central e tem apelo explícito a uma audiência jovem, além de que a cidade fictícia de Progresso e alguns núcleos de personagens careciam de mais textura ou informações que complementassem seus arcos. 

Não sendo diferente dos outros parâmetros, chega-se ao último deles, a solicitação de participação ativa do público, constatando também a sua ausência. Algumas publicações comparavam a série a outras do catálogo, incentivando o público a conhecer outros títulos, mas não houve a demanda por um engajamento mais ativo na relação com o universo ficcional. No Facebook, onde foi postado um conteúdo cômico relacionando o tema da atração a notícias falsas em meio à pandemia, notou-se que parte do público fazia comentários dirigindo-se diretamente à Netflix, que respondia alguns deles. Entretanto, isso não chega a configurar uma ação consistente de participação, visto ainda que é prática comum do perfil da plataforma no Facebook responder a alguns comentários em suas postagens.

No geral, diante do potencial que trazia, tanto no que toca ao tema da série coincidir em inúmeros aspectos com o momento vivido pela população brasileira na época de seu lançamento, quanto na aposta de fazer uma série adolescente com uso massivo de redes sociais e aparelhos eletrônicos, percebemos que as possibilidades de transmidiação não foram bem aproveitadas como em outros títulos da produtora. Parece não ter havido uma intenção, por parte da Netflix, de expandir os temas e o universo de Boca a Boca para além do texto principal. As redes sociais foram usadas apenas para promover a série, e mesmo assim, de forma bastante tímida e breve, não havendo nenhuma publicação relacionada à ela menos de um mês após o lançamento. 

A próxima análise, que trata da conversação a partir dos comentários do público, irá complementar essa etapa, trazendo algumas pistas sobre a maneira como a série e as peças de divulgação foram recebidas pelos telespectadores interagentes e as possíveis relações de seus comentários e publicações com as escolhas tomadas pela Netflix. 

Referências

Furtuoso, G., Sigiliano, D., & Borges, G. (2022). Qualidade na ficção seriada: Análise das estratégias de transmidiação da Netflix no Brasil. Principia: Caminhos Da Iniciação Científica, 22. Disponível em: <https://doi.org/10.34019/2179-3700.2022.v22.37909>. Acesso em: 29 jan. 2024. 

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