Observatório da Qualidade no Audiovisual

Boca a Boca: análise da experiência estética

Por Gustavo Furtuoso e Daiana Sigiliano

Após a discussão dos processos de criação e circulação de Boca a Boca, chegamos à etapa final da análise que será focada nos comentários do público em resposta às publicações oficiais da série nas plataformas Facebook, Instagram, Twitter e Youtube. No Twitter também podem ser observadas publicações que os telespectador interagente fizeram de forma autônoma, não necessariamente em resposta a um tweet oficial da série, visto que sua arquitetura informacional e mecanismos de busca e extração de dados assim o permitem. Com isso, completamos o percurso comunicacional ao identificar as respostas do público aos estímulos e lacunas fomentados pela série, assim como às estratégias de divulgação desenvolvidas pela Netflix Brasil. 

A relação da quantidade de contextos encontrados em cada plataforma pode ser conferida na tabela abaixo [TABELA 1].

Para análise dos comentários, dois indicadores são usados: o conteúdo dos próprios comentários e sua relação com a publicação oficial da série, e aspectos que dizem respeito à arquitetura informacional de cada uma das plataformas. Alguns critérios são pertinentes a todas elas, como a simetria ou assimetria das conexões, a circulação de informações, a segmentação e a replicabilidade (BORGES et al, 2022). 

Outros, são particulares: nas redes Youtube, Facebook e Instagram, não temos acesso total as publicações dos telespectadores interagentes por critérios de assunto, com busca por termos mencionados ou hashtags de indexação, de forma que a análise se debruça exclusivamente nos comentários feitos pelo público nas próprias publicações da Netflix (as mesmas publicações categorizadas na análise da transmidiação da série). Já no Twitter, é possível ir além e mapear publicações independentes dos contextos fornecidos pelos canais oficiais da série, o que o torna um ambiente privilegiado de análise. 

Youtube

O Youtube conta com um sistema de hierarquização dos comentários: aqueles mais curtidos e/ou com mais respostas ficam posicionados com destaque e são exibidos acima dos demais. Aqui, como características específicas da arquitetura informacional, temos a possibilidade de marcação de tempo (a partir do reprodutor do vídeo), a menção ou transcrição de cenas e diálogos, o uso de elementos gráficos na composição das mensagens e a interação entre pelo menos dois interagentes. No total, foram levantados 9 contextos conversacionais relacionados à Boca a Boca na macro codificação, e 15 na micro codificação, nos quais o público interagia entre si e com a Netflix [FIGURA 1]. 

Dentre os comentários, a maior recorrência encontrada foi a de elogios a aspectos técnicos e criativos da série, em especial a representação de personagens e ambientes brasileiros menos comumente explorados pela produção nacional, seguidos de pedidos para renovação da série para uma segunda temporada – o que não aconteceu –  e, sobretudo, solicitações por uma divulgação mais ampla de Boca a Boca [FIGURA 2]. De fato, além do trailer postado semanas antes da estreia, a única outra publicação no Youtube relacionada à obra foi um vídeo intitulado “Porque você deveria assistir Boca a Boca”, que compilava cenas da série com uma narração explicativa. O vídeo tem quase cinco minutos e relaciona diversos assuntos, dos temas sociais inseridos na obra, até as escolhas técnicas e estéticas, comentando ainda sobre a coincidência dos temas abordados com a pandemia de COVID-19. Alguns telespectadores interagentes chegaram a destacar a possibilidade na participação de quadros que a Netflix criou em seu canal do Youtube justamente para dar visibilidade a suas produções e aos respectivos elencos, mas, por algum motivo, essas janelas não foram oferecidas à Boca a Boca [FIGURA 3].

Outros contextos conversacionais recorrentes envolviam a prática de binge watching, em que o público afirmava ter maratonado a série de uma só vez, comparações com outras obras como Euphoria (HBO) e Dark (Netflix), e comentários destacando que o nível artístico da produção se equiparava ao de obras internacionais, em tom elogioso. Como não houve destaque para nenhum personagem na divulgação proposta pela Netflix, apenas Chico recebeu comentários específicos, muitos deles relacionados ao desfecho de seu arco na atração, que termina com um gancho para a próxima temporada. Isso evidencia que boa parte dos comentários vinham de telespectadores interagentes que já tinham assistido a série e buscaram um espaço para manifestar suas opiniões. 

De modo geral, pode-se dizer que o Youtube foi utilizado como um ambiente para direcionar mensagens à própria Netflix, em sua maioria pedidos de renovação e divulgação. O vídeo de motivos para assistir a série também incentivou comentários que destacavam qualidades observadas na produção. Pode-se perceber então a relação presente entre o conteúdo da publicação e dos comentários. Muitos telespectadores interagentes interagiam entre si, principalmente endossando elogios e destacando aspectos técnicos e narrativos. Entretanto, é importante ressaltar que no Youtube, a Netflix não respondia ou curtia os comentários dos fãs. 

Facebook

O Facebook possibilita a escolha do critério de exibição dos comentários, sendo padronizada a opção de “mais relevantes”, que destacam aqueles com maior número de curtidas ou respostas. Aqui, há uma recorrência maior de marcações entre os telespectadores interagentes – no sentido de criarem um contexto particular de conversação e terem uma relação prévia, em oposição ao Youtube. Outro ponto importante é que neste caso a Netflix responde e interage com o público. No total, foram levantados 8 contextos conversacionais relacionados à série na macro codificação, e 9 na micro codificação [FIGURA 4]. 

No Facebook, os contextos conversacionais foram mais peculiares. Notou-se uma polarização bastante marcada entre pessoas que criticavam a série – desde o tema até aspectos técnicos – mesmo que de forma antecipada a seu lançamento, e de pessoas que defendiam a iniciativa da produção e destacavam qualidades. Por ter estreado em meio a um dos períodos mais graves da pandemia de COVID-19, poucos meses após o início do isolamento social e num momento em que ainda não se tinha perspectiva da vacinação, é possível identificar a migração da polarização política que acontecia na esfera pública para os comentários em publicações da Netflix. 

Principalmente a partir da publicação do trailer da série, a predominância de comentários negativos foi muito marcante no sentido de questionarem a qualidade da obra, ainda que a mesma nem tivesse sido lançada. As publicações ressalta pontos como o tema da série e seu teor crítico, sendo relacionados a uma “politicagem” da plataforma revestida de entretenimento [FIGURA 5]. As postagem também desmereciam o cinema nacional, de modo geral, enquanto exaltavam produções internacionais e faziam referências à obras clássicas da literatura brasileira que, supostamente, deveriam ser adaptadas no lugar de explorarem temas e propostas como as trabalhadas em Boca a Boca [FIGURA 6]. Também foram observados comentários feitos por telespectadores interagentes que assistiram ao menos alguns episódios e disseram não ter conseguido ir até o fim, pois acharam a série ruim.

Por outro lado, também houve comentários que defendiam a produção e a iniciativa da Netflix. Esses ressaltavam alguns aspectos específicos presentes na obra, de forma que parecem ter assistido aos episódios para tecer os comentários. Boa parte dessas interações se dava em resposta a comentários negativos, refutando seus argumentos e criticando sua hipocrisia, tanto de opinarem sem sequer terem assistido, quanto de falarem mal das produções nacionais e não apoiarem quando há uma proposta inovadora e numa janela de grande visibilidade [FIGURA 7]. Outros apenas faziam elogios diretos à Netflix, ressaltando as camadas interpretativas, os tópicos de diversidade e a qualidade técnica da série [FIGURA 8]. 

Além dessa discussão a respeito da qualidade da série ampliada para uma reflexão sobre a produção audiovisual nacional como um todo, outro ponto de destaque foi a interação entre os telespectadores interagentes e a própria Netflix, que no Facebook responde aos comentários a ela direcionados [FIGURA 9]. Uma publicação que trazia uma manchete de notícia esclarecendo, em tom de brincadeira, que uma suposta doença não se tratava de uma nova pandemia, mas sim da trama de sua nova série. Nos comentários, ela responde a um telespectador interagente dizendo que, diante do contexto, era importante tratar dos fatos, fazendo alusão a grande quantidade de fake news que circulavam durante a pandemia, falando sobre sintomas, tratamentos e novas variantes. Outros comentários que o perfil respondeu faziam elogios à série ou apenas piadas com o assunto da postagem original, na criação de uma relação próxima e descontraída. Esses comentários da Netflix foram repercutidos a partir de curtidas e reações, sendo notados não apenas pelas pessoas a quem ela responde, mas pelo público de modo geral. 

O que se pode observar no Facebook foi uma relação presente entre o conteúdo tratado pelo perfil e os comentários em resposta a eles.Deste modo, o diferente nesta rede social, foram os subtextos implícitos a partir desses comentários, que extrapolaram o próprio universo ficcional e se relacionavam com o contexto social e político do Brasil naquele momento peculiar. Também houve bastante interações entre os telespectadores interagentes, com marcações a amigos e respostas a outros comentários feitos, concordando ou discordando deles, e uso de emojis. Outros recursos, como imagens, vídeos e links, foram bem menos frequentes. 

 

Instagram

Na macro codificação, o Instagram trouxe 8 contextos conversacionais, enquanto na micro codificação foram identificados 6 contextos a partir de publicações que faziam referência à Boca a Boca [FIGURA 10]. Na rede social, os comentários não são exibidos a partir de uma hierarquia de destaque, de modo que não são formados contextos conversacionais com muitas curtidas e respostas de modo tão frequente como no Facebook. Os comentários são mais direcionados à plataforma em si ou a outros perfis de telespectadores interagentes, numa relação mais bilateral do que uma conversa coletiva ampla. Apesar das muitas interações diretas com ela, a Netflix não reagiu ou respondeu aos comentários diretos. 

O tópico mais recorrente no Instagram foi, nitidamente, o pedido por uma segunda temporada da série [FIGURA 11] . Eram muitos os comentários que pediam pela renovação da série, incluindo marcações do perfil da Netflix para chamar sua atenção e uso de emojis para transmitir uma ideia de amor pela série ou de que estavam observando os movimentos da Netflix em busca de um indício de que ela os notava. Os comentários eram bastante incisivos e demonstraram uma intenção de se fazer ouvir pela produtora, entendendo que a demanda do público era importante para a confirmação de uma nova temporada, tanto que também pediam por mais divulgação da série, para que ela pudesse atingir mais pessoas. 

De fato, o número de comentários pedindo pela segunda temporada foi bastante significativo frente aos demais, em especial nas duas publicações que tratavam especificamente de Boca a Boca. Uma terceira publicação também foi feita mencionando a série, porém juntamente a outros lançamentos do mês, num tipo de postagem já tradicional no perfil da Netflix [FIGURA 12]. Com relação a ela, pode-se perceber um tipo de comportamento do público em tentar tirar dúvidas pontuais sobre o catálogo ou pedir a disponibilização de novas obras.

Esse tipo de mensagem é até recorrente no Instagram, apesar de o perfil oficial não responder a nenhum telespectador interagente de forma direta. No entanto, é possível notar uma proximidade criada pela plataforma com seu público a partir das redes sociais, que já se acostumaram a trazer suas demandas para tais ambientes. Também nota-se, com essa publicação, que as pessoas que comentaram nas outras duas postagens, relativas à Boca a Boca somente, o fizeram de forma direcionada, ou seja, usaram o – pouco – espaço que a Netflix destinou à série para solicitar sua renovação e mais produtos de divulgação.

Twitter

O protocolo de abordagem de monitoramento, extração e codificação dos comentários publicados no X/Twitter abarcou a primeira semana de lançamento de Boca a Boca. Neste sentido, é importante ressaltar que a coleta dos metadados é pautada pelas interferências associadas a recolha de dados retroativos e a nova política de governança da rede social. A partir da definição das indexações e palavras-chaves (relacionadas ao universo ficcional da série e as ações de transmidiação da Netflix) e da extração dos tweets, foram codificados 21.391 publicações no Twitter, sendo identificados 9 contextos conversacionais na macrocodificação e 5 na microcodificação. 

Assim como observado em outras produções nacionais da Netflix, os telespectadores interagentes ressaltaram a importância da valorização das séries brasileiras. Os tweets reforçavam que em decorrência da pouca divulgação da trama pelo serviço de streaming era fundamental que o público se engajasse em torno da atração para mostrar à Netflix que o programa tinha uma base cativa de assinantes. Os telespectadores interagentes também tentaram formar comunidades momentâneas a partir de hashtags para discutirem o programa, as postagens repercutiam a baixa aderência do público em relação a trama. Alguns atores e atrizes que integram o elenco de Boca a Boca foram identificados pelo público, os tweets exploravam recursos multimodais tais como imagens e GIFs para correlacionar os trabalhos anteriores com a participação na trama da Netflix. O longa-metragem Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) e curta metragem Saliva (2007), conforme discutimos anteriormente, que apresentam uma estética semelhante a de Boca a Boca, foram lembrados na timeline. Neste sentido, os tweets pontuavam a inter-relação entre as produções audiovisuais de Esmir Filho. 

A qualidade da trama, abrangendo aspectos como, por exemplo, a fotografia, a ambientação e a montagem, foram ressaltados pelos telespectadores interagentes. Os tweets refletiam sobre as camadas interpretativas da atração e a função dos recursos na produção de sentido da série. Como pontuamos nas análises anteriores, a história e os elementos do metatexto de Boca a Boca apresentam uma correlação com a pandemia da Covid-19. Deste modo, o público pontuava as semelhanças e compartilhava as dificuldades do isolamento social. O repertório midiático dos telespectadores interagentes também foi observado a partir da discussão sobre as telenovelas e a série estadunidense Euphoria. Os tweets reconheciam a identidade visual da trama de Sam Levinson principalmente a partir da fotografia de Boca a Boca, além de reforçarem que a qualidade da produção era superior a dos folhetins da TV Globo. As ações de transmidiação e conteúdos compartilhados pela equipe criativa da série foram repercutidos no Twitter nas discussões referentes a atração. Na codificação dos contextos conversacionais foi possível observar a publicação de vídeos e imagens dos bastidores, os conteúdos serviam de base para os telespectadores interagentes refetirem sobre os detalhes do universo ficcional, tais como os efeitos especiais, a ambientação, etc. 

Além do uso de recursos multimodais, o público explorou outras características da arquitetura informacional como, por exemplo, a thread. O fio foi usado para aprofundar alguns temas abordados mesmo indiretamente no programa como o HIV, os tweets ampliavam as discussões do metatexto servindo como um guia narrativo para a série. Por fim, os memes publicados no Twitter ironizam pontos da trama, entre os contextos conversacionais identificados estão as versões do mapa do beijo. As postagens correlacionaram a vida real com o cânone da série. 

Dimensões da competência midiática

Passamos, então, a análise das dimensões da competência midiática em operação nos comentários feitos pelos telespectadores interagentes no Twitter ao comentar sobre a série. A dimensão ideologia e valores se fez presente em comentários que ressaltam a importância das temáticas abordadas pela série, como a crítica feita ao conservadorismo, especialmente no momento de crise sanitária, política e econômica vividos pelo país no momento do lançamento da série. Em 2020, a pandemia de COVID-19 fez vir à tona uma onda de negacionismo e polarização política que foram correlacionadas à trama de Boca a Boca.  Já as semelhanças apontadas entre a obra e outras séries dizem respeito à dimensão estética. O repertório audiovisual dos telespectadores interagentes é evidenciado ao identificar características como uso de cores, trilha sonora, fotografia e efeitos especiais presentes na atração na Netflix que também estão presentes em séries como Euphoria (HBO), que também trazem um protagonismo e perspectiva centrada em adolescentes.

Ao utilizar de maneira efetiva diversos recursos da arquitetura informacional da plataforma, como indexação, limitação de caracteres, possibilidade de anexar conteúdos multimídia e interação com outros usuários a partir de retuítes e comentários, um domínio da dimensão tecnologia pode ser observado nas publicações feitas por usuários do Twitter. A dimensão linguagem se faz notar a partir da maneira como os usuários do Twitter reverberaram conteúdos da série a partir da criação de novos significados, como a produção de memes.  Além disso, também notavam como a construção da série e suas escolhas afetam a criação de sentido proposta, por exemplo, na construção de uma visualidade com elementos que relacionam a representatividade queer à narrativa alegórica. 

Por fim, a dimensão processos de interação foi articulada em comentários que respondiam a postagens de outros perfis, como no caso de concordar com qualidades apontadas na série ou compartilhar a preocupação pela renovação de uma segunda temporada; enquanto a dimensão processos de produção e difusão pode ser notada na maneira com que esses perfis demandavam mais reconhecimento para a atração por parte da Netflix, pontuando que ela deveria ter tido uma estratégia de divulgação mais marcante para que tivesse um maior alcance e, consequentemente, mais chances de uma renovação. 

 

Observatório da Qualidade no Audiovisual

Comentar