Observatório da Qualidade no Audiovisual

Boca de Lobo

  • Artista: Criolo
  • Álbum: Single
  • Data de lançamento: 2018
  • Gênero: Hip-Hop/rap
  • Categorias: Indústria e Performance/Narrativa

Por Vinícius Guida

Criolo é um rapper nascido no bairro do Grajaú, periferia da cidade de São Paulo. Começou a participar da cultura do hip hop paulistano no final da década de 1980, quando outros grandes expoentes da cena emergiram, como os Racionais MC’s. Em 2006, lançou seu primeiro álbum intitulado “Ainda Há Tempo” (SkyBlue Music). Mas foi em 2011, com o disco “Nó na Orelha” (Oloko Records) que o artista ganhou projeção nacional, sendo um dos principais indicados em várias categorias a premiação Video Music Brasil 2011, da emissora MTV.

Goodwin (1992) e Holzbach (2016) ressaltam a importância de investigar o cenário cultural em que um videoclipe está inserido, compreendendo-o como um produto visual e sonoro, cujos sentidos são construídos no cruzamento desses dois elementos. Com composições de forte teor político, Criolo se tornou um dos principais artistas da cena rap nacional, combinando, também, outros ritmos de raízes periféricas às suas composições, como, por exemplo, o samba. 

“Boca de Lobo” (2018), foi lançado uma semana antes do primeiro turno das Eleições Gerais, uma das mais polarizadas das últimas décadas. Reunindo uma série de acontecimentos políticos recentes do país, a canção apresenta críticas contundentes a diversos episódios relacionados à corrupção ou às violências diárias sofridas por sujeitos minoritários. O videoclipe e outro single do cantor, “Etérea” (2019), foram indicados ao Grammy Latino no ano seguinte.

Com uma atmosfera caótica, foi dirigido por Denis Cisma e Pedro Inoue com produção executiva Beatriz Berjeaut e Kler Correa, que fazem parte da gravadora Oloko Records. O vídeo teve ampla repercussão na mídia nacional sendo como um retrato do “caos social e político” pela revista Marie Claire. O G1 destacou que “Criolo vocifera contra ‘indústria da desgraça’” e a Folha de S. Paulo comparou o clipe com a produção estadunidense “This is America”, de Childish Gambino. 

A ambientação do clipe reproduz um cenário distópico, caótico, tendo como palco central a cidade de São Paulo. Prédios em chama, explosões e fumaça, são intercaladas com as batalhas travadas entre a polícia, a população e animais gigantes que começam a surgir dos buracos abertos. Todos esses elementos se reúnem para criar um ambiente inóspito, escuro, que busca representar o cenário político nacional a partir da visão dos produtores.

Os efeitos sonoros tem volume alto e mesclam-se a melodia da música. Vários sons que emulam o caos retratado são adicionados, aumentando o impacto visual de explosões, gritos de desespero, tiroteios e sons dos animais aterrorizantes. A escolha de destacar o áudio da cena, em alguns momentos, sobrepondo a voz que entoa os versos, amplificam a sensação distópica pretendida no clipe.

Na fotografia predominam cores escuras com focos de luz bem marcados. Como a narrativa se passa à noite, a iluminação se dá através das chamas que se espalham pela cidade, dos aviões-bomba que sobrevoam a cidade, em contraponto com a luz urbana, dos prédios nos entornos da cenas e o brilho das telas dos celulares que registram as desgraças em alguns momentos. 

A edição do clipe é não-linear. As imagens intercaladas parecem exibir fragmentos de um mesmo acontecimento pelas ruas de São Paulo, mas não seguem uma lógica específica que evidencie o princípio e o final deste. Além disso, outras cenas são intercaladas que fazem referências a episódios específicos da política nacional, como, por exemplo, um frame que apresenta uma merenda escolar, relacionando-se ao escândalo de fraudes em licitações para compra de alimentos em escolas do estado de São Paulo durante o Governo de Geraldo Alckmin.

O tema da produção é o descontentamento político e indignação com as decisões tomadas por governantes que afetam, de modo geral, principalmente as populações mais vulneráveis. No crítico refrão, Criolo enumera possíveis razões para o desenrolar de ações corruptas amplamente exploradas no clipe: “um, por rancor; dois, por dinheiro; três, por dinheiro; quatro, por dinheiro, cinco, por ódio, seis, por desespero, sete, pra quebrar tua cabeça num bueiro”.

A intertextualidade do clipe foi amplamente discutida em portais especializados e por interagentes nas redes sociais. De modo geral, o clipe ficcionaliza e integra elementos que fazem referência a episódios recentes da política nacional daquele momento. O primeiro frame da produção, exibe um prédio em chamas, possível referência ao incêndio de um prédio no Largo do Paissandu, na zona central de São Paulo, em maio de 2018. Em das janelas, podemos perceber uma pessoa que segura uma panela, em referências aos protestos da classe média paulistana ao governo da ex-presidenta Dilma.

Em outro momento, um paramédico resgata um menino vestido com o uniforme das escolas municipais do Rio de Janeiro, referenciando a morte de Marcos Vinícius da Silva, carioca de 14 anos baleado a caminho do colégio. O uniforme do profissional é mostrado em destaque, em um corte rápido, em que se lê “PEC 55”. Conhecida popularmente como “PEC do Teto dos Gastos Públicos”, a emenda constitucional foi aprovada em 2016, durante o governo interino de Michel Temer, e bloqueou as possibilidades de revisão dos orçamentos públicos em saúde e educação por duas décadas. 

Os animais que são integrados a trama também tem funções importantes na narrativa. Ratos e cobras gigantes, possivelmente representando o descaso com o ambiente urbano e, em especial, com as áreas mais pobres da cidade, aterrorizam a população tanto quanto os ataques da polícia. Em outro momento, um porco, popularmente associado a polícia, mas também a abusos de poder, a partir do famoso romance A revolução dos bichos, de George Orwell, é visto chafurdando em cidade encoberta em lama. A cena faz referência ao desastre ambiental de Mariana (MG), em 2014, que viria a se repetir na cidade, também, mineira de Brumadinho, em 2019. Em outro momento, um tucano destrói um helicóptero lotado de pó branco que cai sobre as pessoas na cidade. O animal é símbolo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), do qual Aécio Neves faz parte, então senador e envolvido no escândalo da interceptação de um helicóptero, pertencente ao seu aliado político Zezé Perella, com 450kg de pasta base para produção de cocaína próximo a uma pista de pouso pertencente à sua família.

Em relação ao estereótipo, a produção faz uso da ironia para ressaltar alguns dos chavões da elite brasileira, ao mesmo tempo que expõe as crueldades a que estão sujeitas as camadas mais pobres da população. Em contraste, enquanto a elite se divertem fumando, bebendo, usando drogas e queimando dinheiro (literalmente, mas representado imageticamente a expressão ‘torrar dinheiro’), imaculados na segurança de seus prédios, a população minoritária, pretos e pobres, luta na rua contra todas as mazelas possíveis e imagináveis. Em uma das cenas, uma camiseta da grife italiana Gucci, que viralizou no vídeo “Quanto custa o outfit” naquele ano, é reformatada no clipe. “Bela, recatada e do lar” foi a manchete de um perfil da então primeira-dama, Marcela Temer, na revista Veja.

Em outro momento, enquanto Criolo canta “essa é a máquina de matar pobre!”, referenciado a máquina pública e os Três Poderes que compõem o modelo de estado brasileiro, uma mulher negra é exibida atônita, em meio ao caos e as chamas, enquanto todos correm e a deixam para trás, sem qualquer suporte ou ajuda.

O storyline do videoclipe se desenvolve nessa batalha entre polícia e população, com possível apoio da Força Aérea, enquanto as elites se mantém em relativa segurança. Conforme descrito animais são apresentados representando jargões populares, como um urubu que se instala em cima de uma unidade básica de saúde prestes a ser destruída. Ao final, um grande olho observa um homem esconder dinheiro em uma mala e, em seguida, um morcego nos leva a outro ambiente, a Praça dos Três Poderes, em que toda o cenário caótico da produção se conclui. O então Presidente Interino da República, Michel Temer, ficou conhecido na Internet como “Vampirão”, sendo o morcego uma alusão a sua figura. A conclusão do videoclipe em Brasília reforça o argumento desenvolvido ao longo da trama, de que grande parte dos problemas sociais advém de más administrações públicas.

Em relação à inovação, o videoclipe reúne diversas técnicas de produção audiovisual na construção da história. Além da filmagem, os animais são animados em 3D e se integram a diegese de maneira a amplificar a proposta distópica. Além disso, corte rápidos e câmeras tremendo conseguem trazer a sensação de uma gravação in loco, em um cenário de guerra.

A originalidade da produção está contida principalmente na forma como diversas referências e críticas são construídas ao longo da narrativa de maneira implícita. Ao elevar a carga dramática do cenário político nacional através de estratégias de ficcionalização, os episódios comuns à todos os jornais da época são retratados de forma que um olhar mais atento é necessário para buscar e compreender correlações. O próprio caos, clima predominante no videoclipe, confunde os sentidos do espectador tanto quanto as cortinas de fumaça que no clipe impregnam a visão e, na realidade, fazem cidadãos perderem os foco dos problemas ao redor.

Em relação à qualidade artística, todos os elementos propostos na produção, em conjunto, constroem os sentidos pretendidos. Com vacilações de foco propositais, reunidas às animações, o videoclipe, como grandes exemplos no cinema e na televisão, configura-se como uma obra que discute e retrata de maneira importante e desafiadora seu próprio tempo. 

Referências

GOODWIN, A. Dancing in the distraction factory: music television and popular music. Mineápolis: University of Minnesota, 1992.  

HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016.

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