Observatório da Qualidade no Audiovisual

Diaba

  • Artista: Urias
  • Álbum: Urias
  • Data de lançamento: 2019
  • Gênero: Pop/Alternativo
  • Categorias: Margem e Narrativa/Performance 

Por Paulo Medeiros

Um videoclipe é o resultado de uma música com a idealização e roteirização do artista com sua equipe, e geralmente possui a finalidade de divulgar o material em questão, seja ele um álbum ou apenas o single (SOARES, 2013). Trazendo diversos elementos do cinema e até da videoarte, a composição de um videoclipe depende também da direção de fotografia, direção de arte, roteiro, coreografia, entre diversos outros. 

Lançado em 2019, Diaba faz parte do EP homônimo de estreia de Urias, que tem produções de Gorky, Maffalda e Zebu. Além de composições em parceria com Hodari. O EP possui quatro faixas e um interlúdio (Diaba, Rasga, Interlúdio, Frita e Abracadabra), e atualmente apresenta dois videoclipes, um para Diaba e outro para Rasga, que ainda conta com o interlúdio no fim do vídeo. 

“Quis me empoderar do fato de que meu corpo é visto como a pior coisa que uma pessoa possa ser. Já que grande parte da sociedade me vê como uma coisa ruim, decidi ser a pior das coisas, a própria encarnação do mal com minha música”, afirma Urias em entrevista para Hugo Gloss

Diaba trouxe para Urias alguns prêmios, como o Music Video Festival Awards, de São Paulo pela direção e, recentemente, o vídeo desbancou Physical de Dua Lipa, Eve of Desfruction do The Chemical Brothers, IKAVA de Chisu, SLT de Suzane, Dynamate de ATFC & David Penn, GELD de Seeed, Chocolat de Roméo Elvis, Obsession de Joywave e Papillons bleus de David Assaraf, na categoria de Melhor Direção de Arte no Berlin Music Video Awards (BMVA), que é uma das premiações mais importantes do ramo. Ítalo Matos, que já trabalhou com Pabllo Vittar em Corpo Sensual, Glória Groove em Bumbum de Ouro e Luísa Sonza em Garupa, foi o responsável pela direção de arte do vídeo. Para o PapelPop, Ítalo ressalta: “Qualquer reconhecimento pelo meu trabalho é muito legal e fico muito feliz. Mas faz ainda mais sentido quando a temática do projeto envolve uma relevância artística inclusiva. E quando podemos destacar questões como a diversidade, por exemplo. ”.

Com direção de João Monteiro (Pabllo Vittar e Aretuza Lovi), o videoclipe é ambientado nas ruas de São Paulo, Urias representa uma espécie de ser místico, beirando a uma heroína com superpoderes, ela surge usando uma roupa feita de correntes douradas, em um beco com pichações na parede enquanto carrega um cachorro numa coleira, também dourada. “Muito prazer, eu sou o oitavo capital”, neste momento, logo na primeira frase da música, a artista começa a nos introduzir criticamente em sua realidade. Ao usar elementos dourados, que remetem ao ouro, em seu corpo, ela vai contra a realidade de travestis e transexuais que, geralmente, sobrevivem com o mínimo a margem da sociedade. 

“Sua lei me tornou ilegal, me chamaram de suja, louca e sem moral. Vão ter que me engolir por bem ou por mal, agora que eu atingi escala mundial. Navalha debaixo da língua, tô pronta pra briga”, canta Urias enquanto tira uma navalha debaixo da língua. Usar a navalha debaixo da língua é comum entre as travestis e transexuais, pois é uma forma delas se defenderem de ataques que podem sofrer diariamente nas ruas, levando em consideração que mais de 90% estão na prostituição e, consequentemente nas ruas, assim sendo alvo de violência. Ela canta também sobre as oportunidades e espaços que tem conquistado, visto que a indústria cultural e a sociedade, de uma forma geral, são compostas quase que exclusivamente por pessoas cisgênero. 

A música apresenta efeitos sonoros que contribuem no conceito final que a artista quer passar, como o som de uma arma disparando com a onomatopeia trá-trá, referências bíblicas (Our God’s gonna come down and rapture his people and take them up in the sky), o sample de um culto do líder e fundador do The Peoples Temple of the Disciples of Christ, de James Warren Jones (Somebody’s gonna have to tell the truth and I’m gonna tell it) e até mesmo uma referência ao cover que ela havia lançado de Meu Mundo é o Barro, do grupo O Rappa, cujo cover foi retirado de seu canal por causa de direitos autorais (Não sou nova aqui, não te peço licença, sua permissão, nunca fez diferença).

Ela se aproxima de um bar e as luzes começam a piscar, ao chegar no local, ela move a mesa branca sem ao menos tocá-la, assim todos passam a olhar para ela, principalmente o homem que estava na mesa branca, que a olha hipnotizado, arregalando os olhos. Reforçando esta ideia de a cantora ser uma pessoa diferente, uma “Diaba” que, metaforicamente, pode-se associar a como como as travestis e transexuais são tratadas na sociedade. 

Seguindo, todos os homens começam a olhar para ela e eles começam a brigar entre si, alguns querem atacar ela e outros estão a defendendo, como se ela tivesse de alguma forma hipnotizado os homens daquele ambiente. Ou, mais uma vez, retratando os ataques que ela, enquanto transexual sofre. É interessante analisar estas diversas vertentes e interpretações que o videoclipe pode ter.

A fotografia destaca o uso de cores e iluminação voltadas para tons escuros, além de abusar, de forma positiva, do contraste em diversos momentos, com o uso das opostas azul e amarelo, além de verde e tons de amarelo, como o dourado. No bar, por exemplo, a iluminação muda em diversas situações, quando ela chega está em tom azulado e conforme continua a piscar, ela intercala com tons de amarelo e verde.

Situada no centro do quadro e cantando “não sou nova aqui, não te peço licença, sua permissão nunca fez diferença”, a artista nos informa que ela está ali e sempre existiu, e mesmo a sociedade tentando a invisibilizar diariamente ela está conquistando seu espaço. Neste momento, todos os homens estão brigando enquanto tentam de alguma forma conseguir se aproximar dela para ataca-la. Além disso, um guitarrista sentado no canto do bar, tão misterioso quanto a cantora, toca um solo de guitarra que acompanha este momento do vídeo. 

No ato final do videoclipe Urias está de pé, na frente do bar com alguns dançarinos em volta. Quem assina a coreografia do vídeo é Flávio Verne, o mesmo coreógrafo de Pabllo Vittar. 

A edição do videoclipe é linear e constrói uma narrativa que está diretamente ligada as vivências de Urias enquanto uma mulher trans preta. Além disto, a mineira, que atualmente vive em São Paulo, traz como tema sua vivência enquanto uma mulher transexual, o clipe é repleto de simbolismos e metáforas que foram pensadas para tentar retratar seus sentimentos enquanto mulher trans no país em que a expectativa de vida de uma transexual é 35 anos

Encerrando o vídeo, vemos Urias vestida com uma roupa vermelha, que pode ser associado como uma intertextualidade a ideia de inferno/diabo, estampada com pele de cobra, cujo animal é conhecido por ser venenoso, traiçoeiro, é também uma referência que ela traz na capa do EP. 

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Capa do EP homônimo da cantora

Urias e sua equipe refletem também sobre o estereótipo da imagem de uma transexual. Que muitas vezes é subjugada, possui poucas oportunidades e é uma pessoa invisível para a sociedade. Nesta obra, seguindo o storyline, além de refletir sobre suas dores, ela fala também sobre o que conquistou e o que quer conquistar, como uma mensagem positiva e otimista para todas as pessoas, principalmente transexuais e travestis que estão assistindo. 

A inovação e a qualidade artística no videoclipe podem ser vistas na forma em que a artista e sua equipe conseguem passar uma mensagem, que pode ser também interpretada como um significado de raiva, devido a realidade da cantora. Reivindicando seu espaço na sociedade como mulher e como artista. A ideia, junto dos elementos de direção de arte, ritmo de edição, fotografia, contribuem na construção da narrativa que retrata a realidade de diversas travestis e transexuais no Brasil. 

Portanto, no âmbito da originalidade, ao trazer uma parte de sua história e vivência para o videoclipe de Diaba, e junto de diversos elementos recursos como as cores da iluminação, a roupa dourada e a navalha, por exemplo, Urias começa a construir sua trajetória na música mostrando suas referências e sua realidade. É interessante ressaltar também como a interação entre a música e vídeo edificam uma rica narrativa audiovisual, e nos apresenta um problema que sempre existiu em nossa sociedade, especialmente quando falamos da comunidade LGBTQIA+.

Referências

Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos, metade da média nacional. Especial Cidadania, Senado, Online, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2Ocl9Xd. Acesso em: 10 jul. 2020.

SOARES, T. A estética do videoclipe. João Pessoa: Editora Universitária, 2013.

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