Observatório da Qualidade no Audiovisual

Drag Race: a competência midiática nas produções e engajamento transmídia dos fãs

Por Lucas Vieira

Start your engines, and may the best franchise win!

Drag Race é uma franquia internacional de competição de drag queens atualmente produzida pela World of Wonder Productions, no entanto seu início data os anos 2009, com a versão mãe RuPaul’s Drag Race (Logo TV, 2009-2016; VH1, 2017-presente). Comandada por RuPaul Charles, apresentador, ator, cantor e uma das drag queens mais relevantes na história do mainstream nos Estados Unidos e no mundo, o reality tem a premissa de apresentar a America’s Next Drag Superstars através de games competitivos. Entre desafios de design, atuação, desfiles temáticos, o desafio pela sobrevivência no programa através do lip-sync, entre outros. Entre bordões e piadas do meio queer, quatro características são descritas como qualidades procuradas na vencedora: charisma (carisma), uniqueness (singularidade), nerve (nervo) e talent (talento), formando a palavra cunt em inglês.

Atualmente RPDR possui 14 temporadas, com renovação para a 15ª que data estreia para 2023 e diversos spin-offs nos Estados Unidos:

  • Drag U (Logo TV, 2010-2013): uma espécie de Drag University, cada episódio acompanhava uma pequena competição entre três mulheres cis que passavam por um drag makeover e aulas para acessar suas “divas interiores”. Os episódios contavam com participações de drag queensex-competidoras de RuPaul’s Drag Race.
  • RuPaul’s Drag Race: Untucked! (Logo TV, 2010-2014; WOW+, 2015-2017; VH1, 2018-presente): é uma série extra de RPDR, na qual acompanhamos momentos dos bastidores, enquanto os juízes deliberam os resultados do episódio. Os episódios são transmitidos logo após a exibição do episódio semanal de RuPaul’s Drag Race e acompanhamos os momentos que antecedem o lip sync e eliminação da semana. São cenas que ficam de fora do episódio integro porque não afetam a linearidade da temporada, mas permite o espectador em aprofundar nas relações entre as competidoras.
  • RuPaul’s Drag Race: All Stars (Logo TV, 2012-2016; VH1, 2018-2020; Paramount+, 2021-presente): nessa versão, queensex-competidoras de RPDR voltam para uma rudemption (redenção) na conquista de um lugar no Drag Race Hall of Fame como ganhadora. Ao longo de 7 temporadas, já foram apresentadas diversas variações de dinâmicas, como duplas, lipsync assassin e recentemente uma temporada em que apenas ganhadoras retornam para o título de queen of the queens. Nesse formato, as queens com menor pontuação no episódio estão sujeitas a eliminação (chamadas bottom), enquanto a queen vencedora do desafio pode escolher quem deixará o programa. Nas últimas temporadas, a eliminada pode ser votada pelas outras competidoras ou escolhida pela vencedora do episódio. A 7ª temporada ainda prevê o fim das eliminações no formato All Stars, dada através de polêmicas entre os fãs pela eliminação injusta entre competidoras promissoras. A dinâmica deverá acontecer através de um sistema de pontuações.
  • Werq the World Series (WOW Productions, 2019-2020): é uma série documental que apresenta os bastidores dos shows europeus que aconteceram durante a tour da franquia Werq the World Tour. Cada episódio acompanha uma integrante do elenco da tour.
  • RuPaul’s Celebrity Drag Race (VH1, 2020-presente): esse formato segue uma dinâmica semelhante a Drag U, mas dessa vez três celebridades estadunidenses competem a cada episódio, com queens ex-competidoras os instruindo para a construção de suas drags.
  • RuPaul’s Drag Race: Vegas Revue (VH1, 2020): foi uma série documental de seis episódios que acompanhou o dia a dia do elenco do espetáculo RuPaul’s Drag Race Live! que ocorreu em Las Vegas em 2020. A produção acompanhou os bastidores tanto do espetáculo quanto da vida pessoal do elenco, assim como o impacto da pandemia, que interrompeu o espetáculo e a série.
  • Outros especiais e webséries como Pit Stop, UHNhhh, Binge Queens e Gay Sex Ed são lançados no YouTube e na plataforma de streaming da produtora da franquia, WOW+, e retomam queens ex-competidoras para programas de comentários sobre a franquia e talk-shows direcionados para a internet.

Com a popularização da cultura drag no mainstream e uma rede de fãs engajadas ao redor do mundo — através do compartilhamento de memes, criação de legendas do programa para diferentes idiomas e pirataria —, posteriormente a compra pelos direitos de adaptação do programa foram adquiridas por diferentes produtoras ao redor do mundo. Atualmente, contabiliza-se 12 versões internacionais da franquia em produção ou hiatus.

A primeira versão internacional foi uma produção chilena, intitulada The Switch Drag Race (Mega, 2015-presente), atualmente a produção está pausada, sem anúncio oficial de cancelamento, e conta com duas temporadas. O formato se diverge da competição estadunidense em alguns pontos, como a presença do canto ao vivo no lugar do lip-sync e um formato característico da produção televisiva latino-americana, considerando a apresentação de personagens e a duração de temporada e episódios (aprox. 30 episódios de 1h40min em cada temporada).

A competição da primeira temporada possui o subtítulo de El Art del Transformismo (2015-2016), teve participação de drag queensdo Chile, Uruguai e Argentina, e a vencedora conquistou o título de Melhor Transformista do Chile. A segunda temporada teve o subtítulo Desafío Mundial (2017-2018), na qual competiram participantes da França, Estados Unidos, México, Argentina, Chile, Brasil, Porto Rico e Espanha, e a vencedora conquistou o título de Melhor Transformista Hispanohablante. Ambas as temporadas foram apresentadas por Karla Constant. Atualmente The Switch Drag Race encontra-se em hiatus.

A segunda versão internacional foi a Tailandesa (Line TV, 2018-presente) e seguiu um formato semelhante a versão estadunidense. Atualmente conta com duas temporadas lançadas, co-apresentadas por Art Arya e Pangina Heals, e a terceira temporada, que foi anunciada para lançamento em 2022, mas não possui maiores informações sobre a produção.

Apesar de um formato audiovisual semelhante à versão original, Drag Race Thailand se destaca porque, diferente de RPDR, a transmissão dos episódios iniciais possui período coincidente a produção dos episódios finais, distinguindo das demais versões em produção. A primeira temporada foi uma produção solo da Line TV, enquanto a segunda temporada foi coproduzida com a WOW Present Plus. Assim como a versão chilena, a segunda temporada de DRT foi aberta para drag queens de todo o mundo, mas apenas três participantes estrangeiras foram elencadas: Vanda Miss Joaquim, de Singapura; Genie, dos Estados Unidos; e Mocha Diva, de Hong Kong. O idioma principal da temporada permaneceu o tailandês, com disponibilização de legendas para os telespectadores e intérprete para as competidoras. Todas as versões internacionais posteriores à segunda temporada da versão tailandesa foram coproduzidas com a WOW Productions.

Em 2019 foi lançada a primeira versão internacional que possui RuPaul como apresentadora e jurada. RuPaul’s Drag Race UK (BBC, 2019-presente) é a terceira versão internacional e reúne queens do Reino Unido na competição (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte).

A quarta versão foi Canada’s Drag Race (Crave, 2020-presente), que possui Brooke Lynn Hytes, como apresentadora e jurada. A drag queen que comanda a versão é ex-competidora da 11ª temporada de RPDR e possui cidadania canadense. Posteriormente foi a vez de Drag Race Holland (Videoland, 2020-presente), representando a quinta versão internacional da franquia, com Fred van Leer como apresentadora e jurada. RuPaul’s Drag Race Down Under (2020- presente) foi a segunda versão internacional apresentada por RuPaul, e sexta versão da franquia, reunindo queens australianas e neozelandesas da competição, sendo transmitida pela Stan na Austrália e pela TVNZ On Demand na Nova Zelândia. Drag Race España (ATRESplayer Premium, 2021-presente) foi a sétima versão internacional da franquia, apresentada pela drag queenSupremme de Luxe, e se destaca por ter a melhor avaliação entre os títulos de Drag Race. Em seguida, foi a vez de Drag Race Italia (Discovery+, 2021-presente), apresentada pela drag queen local Priscilla.

Ainda não lançadas até o momento desse texto, já foram confirmadas outras versões internacionais da franquia.  Drag Race Phillipines (Discovery+, 2022-presente), a versão filipina terá como parte do juri fixo a ex-participante da 4ª temporada de RPDR e 6ª de All Stars, Jiggly Caliente; Drag Race France (France.tv Slash, 2022-presente) que será apresentado por Nicky Doll, cidadã francesa e ex-competidora da 12ª temporada de RDRP e terá como jurados a drag queen e as personalidades Daphné Bürki e Kiddy Smile; Drag Race Sweden (SVT, 2022-presente) e, até o momento, Drag Race Belgique,que foi confirmado pela World of Wonder Productions em abril de 2022, mas não possui informações de emissora, apresentação e jurados.

O mais recente spin-off da franquia Drag Race, é o formato Drag Race vs. The World, que promete ser uma olimpíada de competição drag, reunindo ex-competidoras de todas as franquias em um formato semelhante ao All Stars. O formato é favorecido pela produção compartilhada das produtoras locais com a WOW Present Plus, mas ainda pode enfrentar problemáticas como as diferentes legislações de broadcasting em cada país, visto para migração das queens, problemas de agendas, distribuições, entre outros.

A primeira temporada teve o Reino Unido como nação host, apresentada por RuPaul, que também fez parte do painel de jurados, o spin-off teve como título RuPaul’s Drag Race UK vs. The World (BBC Three, 2022). A produção foi gravada em 2020 e teve como parte do primeiro elenco as seguintes queens: Baga Chipz, Blu Hydrangea e Cheryl Hole (UK S1) representando RuPaul’s Drag Race UK, Jujubee (US S2, All Stars 1 e All Stars 5) e Mo Heart (US Season 10 e All Stars 4) representando RuPaul’s Drag Race, Jimbo e Lemon (Canada S1) representando Canada’s Drag Race, Janey Jacké (Holland S1) representando Drag Race Holland e Pangina Heals (Co-host Thailand S1 e S2) representando Drag Race Thailand. Rumores sugerem que a segunda versão do spin-off seja sediada pelo Canadá, mas ainda não há um anúncio oficial.

Uhh, fan… She done already done had herses!

Com fãs espalhados ao redor do mundo, as práticas de fãs online da franquia Drag Race se tornam ainda mais complexas, diversificadas e disseminadas em diferentes plataformas e núcleos de países. Monitoramentos, discussões e especulações que já aconteciam antes de inúmeras produções no universo da marca, se concentram através do crossover Drag Race vs. The World e as mobilizações demandam novas urgências, como representações, linguagens e referências culturais.

Para essa análise iremos focar em dois principais grupos Spoiled Drag Race (no Telegram e Reddit) e RuPaul’s Drag Race Wiki (no Fandom Wiki e Discord) e seus principais desdobramentos na criação de fãs e atividades online. Apesar de organizados por grupos diferentes e se concentrarem em plataformas diferentes, eles apresentam um processo retroalimentativos e demonstram distintas camadas de imersão no fandom.

O primeiro se trata do Spoiled Drag Race, um grupo de fãs que se concentra no Telegram e no Reddit e fazem monitorias e postagens de rumores e spoilers das produções da franquia, relatadas através de insiders. A concentração no Telegram se dá através de um grupo com aproximadamente 2.800 inscritos de todo o mundo. Lá ocorre a disseminação de informações exclusivas, vazamentos, rumores e spoilers de acontecimentos ainda não transmitidos. No Reddit, que contém cerca de 79 mil membros inscritos, essas informações são organizadas, formatadas e atualizadas recorrentemente, reunindo monitoramentos de diversos fãs da franquia e que acompanham postagens oficiais e atividades nos perfis de drag queens possíveis participantes de alguma versão da franquia. O formato do Reddit não favorece a troca instantânea de mensagens como acontece no Telegram, mas permite uma maior indexação de informações e discussões em fórum.

O segundo grupo é RuPaul’s Drag Race Wiki, hospedado na plataforma Fandom. Além da organização, administração e reunião enciclopédia em torno da franquia no site, ele também oferece páginas de fóruns e discussões. As informações discutidas ali, geralmente são retiradas do Reddit e grande parte dos fãs ativos não apresentam imersão maior na atividade de monitoramento da franquia. As principais categorias do fórum também categoriza Discussões Gerais sobre a franquia, demonstrando atividades de Social TV específicas e delimitadas; uma página de Spoilers e Especulações, que permite atividade semelhante aos fóruns e mensagens do Spoiled Drag Race, mas com conhecimentos mais superficiais ou genéricos quanto aos rumores; as Simulações e Enquetes, que apontam uma atividade de criação e preenchimento de lacunas pelos fãs; e por fim, as Fan Races, criações de fãs inspiradas no universo de Drag Race e que permitem que o fandom exerça atividades e conhecimentos criativos.

Sendo parte de um desdobrado de um desdobramento do Fandom Wiki, está o grupo Drag Race no Discord, vinculado no Fandom e com link-convite disponível em uma das abas da página. Em relação a tramitação de informações e conhecimento enciclopédico, os fãs presentes na plataforma possuem comportamento mais engajado e avançado em relação aos fãs gerais no fórum do site. Há também uma complexidade de informações, papéis hierárquicos e organização, possibilitando um sistema de discussões, interatividade e relações sociais maiores. Atualmente o grupo conta com aproximadamente 3.200 membros.

Imagem 1: Gráfico elaborado pelos autores (2022) através de monitoramento apresentando hierarquia de disseminação de informações a partir de rumores.

A antecipação de acontecimentos nas temporadas das franquias, seja real ou não, permite a especulação e discussões que colocam em prática o conhecimento enciclopédico do fã, assim como o preenchimento de lacunas deixadas pela obra principal e que motivam o desejo dos fãs por diferentes tipos de representações e/ou inserção nas dinâmicas através de desafios e atividades de entretenimento dentro do fandom.

Para delimitação da análise, iremos dissertar sobre as práticas de Wishlist/Fan-casts e Simulações, considerando também as mobilizações importantes que acontecem através das Fan-Races e outros tipos de fanarts envolvendo esses dois grupos. Nesse momento as Fan-Races foram reservadas porque, nos grupos observados, apesar de vinculados ao universo da franquia, elas não aprofundam no conhecimento enciclopédico e especulações geradas pelas discussões e monitoramentos feitos pelo fandom.

You got a Fancast!

Os fancasts são formas de fãs fabularem visualmente a adaptação de alguma obra elencando pessoas reais para representar personagens. A prática é comum na escrita de fanfics ou quando os fãs imaginam uma adaptação em live action, seja para livros ou animes.

No caso de Drag Race, o fancast ou wishlist — termo frequente utilizado no fandom — é a elencagem de possíveis participantes. Na prática, ambos os termos se referem a mesma coisa, mas durante o monitoramento, percebeu-se que o termo fancast é usado de forma mais frequente quando a discussão ocorre sem pensar necessariamente em uma produção real de uma temporada). Já wishlist é usado com mais frequência quando os fãs discutem rumores, podendo levar em consideração o favoritismo, especulações de rumores ou as possibilidades baseadas em algum tipo de fator. Na atividade, os fãs elencam queens que desejariam ver em um elenco, sejam da cena local para uma temporada regular da franquia ou, mais recorrente, de ex-competidoras retornando em formatos como o All Stars e o vs. The World. No entanto, os termos também podem se misturar, sem haver uma definição padrão.

Assim como o fancast elenca nomes desejáveis para um elenco, o fandom de Drag Race vai um pouco mais além através das simulações. Através de um gerador automático feito por codificação (Python e JavaScript), o user JustALittleKiller (GitHub e Reddit) criou um simulador da competição que permite que o fã elenque as queens desejadas de qualquer programa da franquia e simule as dinâmicas de Drag Race, formando uma trajetória de episódios com os desafios, eliminadas, ganhadoras do episódio, finalistas e vencedora da simulação. Após entrar em tempo indeterminado de hiatus e ficar desatualizado com o lançamento de novas dinâmicas e versões do programa, o usuário MyRainboww criou uma versão, dando continuidade ao simulador.

Na nova versão, o fã pode selecionar o número de drag queens participantes e selecionar quais nomes entre as competidoras catalogadas no sistema. Levando em consideração o repertório de cada uma em suas temporadas, elas são sistematizadas de acordo com as habilidades de atuação, comédia, dança, design, improviso, runway (vestuário e desfile)e lip-sync, em uma escala de 0 a 15. O fã também pode escolher o formato do episódio piloro (premiere), opção de retorno de um queen na mid-season, o formato da final e determinados twists. Todas as opções respeitam dinâmicas pré-estabelecidas em diferentes temporadas ou versões da franquia. Além disso, com a nova versão do simulador, é possível simular a competição com elencos pré-definidos de alguma temporada ou ainda customizar, adicionando manualmente alguma competidora para a simulação.

O desenvolvedor do simulador também mantém um grupo no Discord, no qual atualiza com novas opções em desenvolvimento para a ferramenta, sugestões para acrescentar ao sistema e um chat de convívio e discussões. No momento, MyRainboww e JustALittleKiller trabalham juntos nas atualizações do simulador e estão desenvolvendo uma opção que permite simular relações das competidoras no Untucked!.

Permeando as atividades de fancast e de simulações, também se destaca as atividades de especulações e discussões, que os fãs desenvolvem independentemente ou a partir dos fancastse simulações. Quando relacionado a essas duas atividades citadas anteriormente. Geralmente há um processo de primeiro repercutir especulações devido a um rumor; depois os fãs se sentem motivados a montar fancasts em torno dessa informação; a partir desse cast montado, são geradas simulações; com o resultado gerado, os fãs usam seus repertórios para discutir sobre o cast ou os resultados da simulação, considerando a trajetória queens durante suas temporadas, posicionamento de ex-competidoras em suas redes sociais, rumores de gravações e “sequestros” das queens (momento em que as participantes se isolam para a gravação da temporada).

Imagem 2: Mapeamento elaborado pelos autores (2022) através de monitoramento apresentando o raciocínio cronológico da atividade dos fãs.

As motivações do fandom giram ao redor do favoritismo ou de representações.

Todas essas práticas estão em diálogo com o estudo de fãs e de fanfics porque os fãs colocam em prática seus conhecimentos enciclopédicos sobre o universo da franquia e reconhecem lacunas nas decisões da produção — seja na elencagem da temporada, ou na decisão de eliminações.

The time has come for you… to analyze for your LIFE!

Dado o contexto dos objetos, essa análise tem como objetivo discutir como as práticas da cultura de fãs de Drag Race inter-relacionam com a competência midiática, considerando a cultura participativa e a construção coletiva no ambiente midiático. A metodologia proposta por Ferrés e Piscitelli (2015) possui como indicadores a linguagem, ideologia e valores, estética, tecnologia, processos de interação e de produção, e difusão. Para avaliar o desenvolvimento da competência midiática no fandom, delimitaremos as dimensões linguagem, ideologia e valores, e estética, apesar de compreendermos que todas as dimensões estão em operação na organização e atividades críticas e criativas do fandom.

Category is… linguagem, ideologia e valores e estética!

Segundo Ferrés e Piscitelli (2015), a linguagem é a capacidade de interpretar, avaliar, analisar, compreender e correlacionar diversos códigos, formatos e gêneros midiáticos. Essa dimensão também está relacionada com a habilidade do fã ao produzir e ressignificar os modos de representação e produção de sentidos a partir de suas atividades.

O fandom de Drag Race se localiza em múltiplas plataformas, das quais demandam diferentes culturas e regras que especificam e diferenciam os comportamentos e as práticas entre elas. Essa organização não surge apenas pela hierarquização de papeis entre os fãs, mas pelas funções que cada plataforma oferece ao fandom.

Por exemplo, o Discord tem um sistema de divisão de assuntos e atividades por salas dentro do grupo, que permite uma maior indexação e repercussão separadamente. Através desse sistema, um tipo de interação relacionada a um assunto off-topic, por exemplo, não se sobrepõe aos de spoilers, que por sua vez não vão se sobrepor aos de simulações. A troca de mensagens também permitem interações instantâneas, consequentemente, acabam sendo superadas mais rapidamente por novas interações.

O mesmo acontece no canal de Telegram do Spoiled Drag Race, à medida que novas informações chegam aos fãs, antigas interações vão sendo rapidamente superadas porque a plataforma estrutura as mensagens de forma cronológica. Sendo assim, em ambos os grupos as mensagens têm um período curto de repercussão dentro do grupo. Apesar da semelhança, o canal do Spoiled Drag Race se diferencia por sua funcionalidade, que objetiva em primeiro plano a disseminação de rumores e spoilers, e a interação entre os fãs são desencadeadas exclusivamente por essa informação.

O grupo no Discord coloca a convivência e compartilhamento interpessoal como funcionalidade do grupo, permitindo o uso, produção e ressignificação de bordões e referências da franquia como parte da socialização. Enquanto o canal no Telegram limita a subversão de referências, porque não existe um espaço para que elas sejam articuladas a fim de criar relações.

Nesse sentido, o fórum no Reddit e no Fandom Wiki possuem, na prática, funções similares um ao outro. As interações entre os fãs não possuem aberturas para aprofundamento interpessoal, mas o ambiente é construído ao redor de bordões, parafraseamento, referências e trocadilhos que fazem parte do universo da franquia.

Sendo assim, o ambiente sugere uma camada interpretativa muito maior e que coloca em prática tanto os conhecimentos dos fãs relacionados a Drag Race quanto a capacidade de analisar, compreender, correlacionar códigos, produzir e ressignificar conteúdo. A capacidade de reconhecer o ambiente inserido e as possibilidades que o formato permite demonstra o domínio da dimensão de linguagem pelos fãs e estão em práticas em como se comportam nos diferentes grupos e plataformas.

O simulador também aponta uma articulação importante no domínio da competência de linguagem. Uma vez que os fãs são introduzidos a um sistema de código/linguagem para a produção da ferramenta em paralelo aos elementos criativos da franquia. Durante a simulação acompanhamos uma narrativa baseada na estrutura episódica de Drag Race que os fãs são familiarizados e dominam: os tipos de dinâmicas, de desafios, de bordões temáticos e de outros elementos da cultura queer se fazem presentes e são construídos coletivamente com o fandom.

Imagem 3: Mapeamento elaborado pelos autores (2022) através de monitoramento apresentando a teia de informações, engajamentos e migrações transmídia nas redes pelo fandom de Drag Race.

Na dimensão de ideologia e valores, os fãs são motivados por seus ideais, e se comprometem socialmente ao avaliar e analisar seus consumos e produções. Dessa forma, o fandom considera seus recortes culturais e sociais de forma individual e coletiva.

Sendo parte de um ambiente totalmente queer e politizada (apesar de seu repertório múltiplo devido às diferentes nacionalidades e culturas de seus membros), todos os grupos repudiam interações que provoquem ou motivem preconceitos e outros tipos de violências. Permeado por administradores, moderadores e regras que regulem as interações e participações dentro do grupo, a organização é motivada ideologicamente.

Para além disso, suas capacidades críticas tensionam fronteiras com o narrativo. Segundo Jenkins (2012), o fã exerce a leitura crítica e criativa em uma obra porque é capaz de reconhecer a lacunas deixadas no texto (obra), como: pontas soltas; relações entre personagens que não são exploradas; quebras narrativas do universo (como uma atitude que o fã considera não fazer parte da construção de certo personagem); e até mesmo motivações pessoais e ideológicas do fã (como falta de representação ou posicionamentos políticos divergentes do autor da obra). Apesar de Drag Race se tratar de um reality show, as atividades de fancast e simulações incorporam a ficcionalidade e tendem seguir critérios que atendam valores morais, pessoais e políticos e que também questionam decisões “canônicas” que fizeram parte do programa.

Um dos exemplos mais recentes foi a repercussão gerada ao redor dos rumores que permeiam a produção do suposto Canada’s Drag Race vs. the World. Segundo a lista dos principais rumores considerados confiáveis e disseminados nesses grupos, a produção não incluiu no cast queens das franquias que não possuem inglês como primeira língua: Drag Race Thailand, Drag Race España, Drag Race Italia e Drag Race Holland — mesmo com ex-competidoras que possuem fluência no idioma e que por isso, seriam elegíveis para participação.

Os fãs reconhecem que as franquias anglófonas possuem prioridade e maior impulsionamento por parte da produção. No meio do fandom há posicionamentos críticos que apontam a não representação multicultural que a franquia vs. the World deveria se comprometer. A partir disso, são gerados e repercutidos fancasts e simulações com idealizações de um cast mais representativo e plural.

Um dos exemplos de como isso repercute através de fancast é a imaginação de um cenário no qual a versão seria sediada pela franquia espanhola, elaborada em um vídeo no YouTube pelo canal Drag Race Tea. Com a participação de diversas queens hispanohablantes e latinas, a wishlist repercute e posiciona um discurso de maior multiculturalidade e consideração de franquias como Drag Race España, Drag Race Italia e The Switch Drag Race. Além de demonstrar a dimensão de ideologia e valores, o vídeo criado por fã também leva em consideração seu repertório e conhecimento enciclopédico que justificam a probabilidade do elenco imaginado. Na curadoria do elenco são consideradas queens que através de suas redes sociais ou trajetória em suas temporadas, demonstram interesse em competir novamente, são favoritas pelos fãs e demonstraria potencial de audiência para a produção e que são hispanohablantes.

ESPAÑA vs THE WORLD ?! | Drag Race International All Stars Cast Wishlist & Predictions[1] 

Outra característica marcante do fandom quando se trata de suas ideologias e valores é a crítica, mobilização e ativismos que, entre outras pautas, discutem:

  • A ausência de drag queens negras e plus size nas versões internacionais;
  • O tratamento dado às queens latinas nas temporadas dos Estados Unidos;
  • A falta de representações de corpos da equipe Pit Crew (assistentes de palcos);
  • Reprodução de estereótipos da arte drag, que só é validada quando reforma a feminilidade.
  • Resistência em elenco mais plural, como participação de homens trans (Kade Gottlieb, com sua drag queen Gottmik, foi primeiro homem trans drag queen a competir, durante a 13ª temporada dos Estados Unidos, em 2021), mulheres cis (Emily Diapre, com sua drag queen Victoria Scone, foi a primeira mulher cis drag queen a participar da franquia, na 3ª temporada do Reino Unido, em 2021); e outras representações e tipos de drags, como drag kings e drag monsters. Destaca-se que, em relação a identidade de gênero, mulheres trans e pessoas não-binárias possuem uma maior recorrência no elendo da franquia, mas a busca por essas representações também está presente no fandom.
  • Não reconhecimento oficial do engajamento de fãs de certos países e de seu cenário drag/não demonstração de interesse em produzir versões nesses locais, sendo Brasil e México os países mais apontados pelos fãs.
  • Não reconhecimento de The Switch Drag Race, primeira versão internacional e primeira versão latina, como parte oficial da franquia.
  • Legendas das versões anglófonas disponibilizadas no streaming da produtora são geradas automaticamente e impedem a compreensão correta de falas e referências.
  • As traduções das legendas de versões internacionais também são geradas automaticamente.

 Imagem 4: Mapeamento elaborado pelos autores (2022) apresentando principais ativismos encontrados em discussões no fandom de Drag Race durante o período de monitoramento.

A dimensão estética abrange a capacidade de relacionar e identificar elementos e referências intertextuais, nas quais o fã desdobra novas camadas interpretativas e produzem conteúdos pautados na criatividade e originalidade.

No Discord, a organização de chats sistematiza grupos específicos que incentivam e propõem a produção de mídias relacionadas a franquia e ao grupo, produzindo novos sentidos e camadas de informações. Destacam-se cinco principais chats voltadas para o compartilhamento de mídias: #snapshots, voltada para o compartilhamento de conteúdo da cena drag queen local, permitindo também fotos de membros do grupo que fazem drag; #youtuber-feed, que concentra compartilhamento de links de vídeos ou podcasts que abordem conteúdo sobre Drag Race; #emotes para gerar emotes para o Discord a partir de frames estáticos ou gifs de momentos da franquia ou de ex-competidoras; #fan-arts para a postagem de ilustrações relacionadas ao universo de Drag Race; e #hall-of-fame na qual apenas administradores podem compartilhar momentos icônicos das interações entre os membros do grupo.

Já nas simulações, a capacidade narrativa inserindo músicas, imagens e organização sistemática das informações também são exemplos de como a dimensão está presente na prática dos fãs de Drag Race. A narrativa e as referências intertextuais criam camadas interpretativas que dialogam tanto com o repertório em comum dos fãs (como as músicas e outros elementos da cultura pop e queer) e da cultura criada na franquia do reality (bordões, roteiro dos episódios, estratégias de jogo, fotos promocionais oficiais e trajetória das queens em suas temporadas). Além disso, as imagens escolhidas no plano de fundo adquirem uma função narrativa que acompanha/localizam os acontecimentos simulados através de cenários já reconhecidos do programa, como o werk room (imagem 5) e o runway (imagem 6).

 Imagens 5 e 6: Capturas de tela de uma simulação do fancast de España vs. the World,criado pelo canal Drag Race Tea, gerada pelos autores (2022) no simulador desenvolvido por MyRainboww e JustALittleKiller.

No chat do Discord nomeado #simulators os fãs são permitidos compartilharem simulações feitas através de algum simulador (sendo mais comum a ferramenta desenvolvida e continuada por MyRainboww e JustALittleKiller), a prática conversacional também incorpora a narração dos acontecimentos para os outros membros do grupo, gerando uma experiência compartilhada, como os episódios do reality. Durante a atividade, são compartilhados memes, emotes, gifs e bordões que incorporam a dimensão. O uso de termos que incorporam a franquia para dar nomes a “papéis” e chats no Discord também indicam a habilidade em operação, porque resgatam referências de diversas camadas interpretativas do universo queer, de Drag Race e da cultura pop no geral, como Simuladies, All Stars, C3P-Hoes e Tuckahoe.

No Fórum Wiki, a prática pode ser encontrada em simulações compartilhadas e discutidas entre os membros, como também nas Fan-races, incorporando e desdobrando elementos visuais nas criações.

A produção de mídias voltadas ao assunto em comum, assim como seus desdobramentos como memes e produções de novos conteúdos como vídeos e podcasts apontam a dimensão estética em operação nas habilidades dos fãs. Assim como a identificação de bordões da franquia e seus desdobramentos no convívio interpessoal, criando camadas de significados nas relações.

Referências:

FERRÉS, J; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n, 1, p. 1-16, 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3PoMILp>. Acesso em: 16 mai. 2022.

JENKINS, H.. Lendo criticamente e lendo criativamente. Matrizes, v.9, n. 1, p. 11-24, 2012. Disponível em: <https://bit.ly/2JYoU30>. Acesso em: 16 mai. 2022.


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