Por Luma Perobeli
A pandemia da Covid-19 inseriu a nossa sociedade em um novo contexto, em que rotinas, relações e economia tiveram de ser reformuladas. As marcas comerciais, além de não ficarem de fora desse cenário, adaptaram sua comunicação à atual realidade. Foi o que fez a Nestlé no filme publicitário da NINHO de Dia das Mães, intitulado “Ela me faz tão bem”.
Maior corporação mundial de alimentos e bebidas, a Nestlé está presente em quase 200 países e faz parte do pequeno grupo de empresas que controla a comercialização de alimentos no Brasil e no mundo, através das mais de 2.000 marcas que possui, de acordo com o próprio site da companhia. Uma dessas marcas é a NINHO®. Comercializada no país desde 1944, ela é líder absoluta do mercado na categoria de leite em pó integral, que engloba também uma ampla linha de produtos, desde os leites (UHT e em pó), até iogurtes, leite fermentado e compostos lácteos.
Criação da Publicis Brasil e produção da Paranoid, o comercial para o Dia das Mães teve inspiração na campanha de engajamento do público feita pela NINHO em suas redes sociais. Pensada para a internet e para a TV, os objetivos da produção são emocionar o espectador através da associação que faz da linha de produtos da marca à proteção que toda mãe deseja dar ao seu filho, além de divulgar o site que contém todas as boas ações da Nestlé neste momento de pandemia.
Nesta análise, sob a perspectiva da literacia midiática, vamos refletir sobre os três indicadores que compõem nosso eixo principal de observação, linguagem, estética e ideologia e valores (FERRÉS; PISCITELLI, 2015), através das duas dimensões da peça: a fílmica, que passa pela intenção de sensibilizar o espectador; e a promocional, que está relacionada à venda concreta de um produto ou ideia (ANEAS, 2013).
A peça começa com a voz calma, doce e serena de uma criança, que anuncia: “Ela me faz tão bem…”. As imagens que se seguem são acompanhadas por uma canção emocionante e conhecida de muitos brasileiros: “Ela me faz tão bem… Ela demonstrou tanto prazer de estar em minha companhia. Eu experimentei uma sensação que até então não conhecia. Ela me faz tão bem, ela me faz tão bem… Que eu também quero fazer isso por ela”. A letra é da música “Tão bem”, de Lulu Santos, que foi ressignificada para dar o tom desejado à campanha, e é acompanhada pelas vozes e risadas que compõem o áudio original do filme.
No plano visual, há no início um fundo amarelo e contorno de coração – cor e forma guias na identidade visual da marca – que se abre até que surgem na tela vídeos de mães e filhos em suas rotinas: brincadeiras, sorrisos, abraços e atividades em conjunto. Em um deles, por exemplo, uma mãe e sua filha confeccionam máscaras; em outro, a mãe observa a filha tomando leite; e destacamos um em que a mãe, de máscara e jaleco, conversa com o filho por videochamada, fazendo referência a uma prática comum nesse contexto de distanciamento social, ao mesmo tempo em que enaltece as mães que trabalham na área da saúde neste momento.
Essas imagens são complementadas pelo lettering, frases inseridas em forma de texto na produção audiovisual, que aparecem na cor branca no meio da tela. É o que acontece, por exemplo, quando vemos “Um momento no trabalho. Um ensinamento para a vida” e, ao fundo, a imagem de uma mãe com sua filha no colo em frente ao computador, que também nos remete ao trabalho em casa, o tão falado home office nesta época.
Ao olhar para as personagens que compõem o filme, escolhidas para representar as mães brasileiras, é pertinente destacar que há uma certa preocupação com a diversidade das famílias e a inclusão. Isso pode ser percebido, por exemplo, pela presença de uma criança com deficiência nas mãos. No entanto, a representação ainda é muito desigual, afinal das 14 famílias mostradas, quatro são negras, números que não refletem a realidade da composição racial do Brasil.
Nossa reflexão não é ingênua, sabemos que o objetivo da publicidade não é espelhar a sociedade, mas “vender” ao público um padrão de vida idealizado da qual o seu produto é parte importante, para tanto recorre a estereótipos e apelos à perfeição e à felicidade. O comercial da marca NINHO não é diferente e reforça modelos de famílias e mães “exemplares”. Na peça, não há espaço para as angústias, sofrimentos e inseguranças comuns neste período de pandemia, todas as cenas são alegres e afetuosas, mesmo a da mãe que fala com o filho à distância, em uma romantização do papel das mães e do período em que estamos vivendo.
A homenagem às mães se dá de forma consoante ao período atual de quarentena, mesclando vídeos na vertical, que faz referência à captação de imagens por celular, e na horizontal, frequente dos comerciais nos meios de comunicação mais tradicionais, como a TV. Evidenciando o ambiente doméstico e essa comunicação através de telas, a peça reforça a indispensabilidade de “ficar em casa”. Com o uso desses dois recursos técnico-estéticos – principalmente do primeiro – somos levados a entender que se trata de famílias reais e que o comercial é integrado por produções amadoras, fato que se confirma no site da empresa, que diz ter ilustrado “histórias reais de colaboradores e de brandlovers”. Essa prática colaborativa na publicidade durante a pandemia, fortalecida pela postura participativa do público nas redes sociais, corrobora com o objetivo das marcas de gerar intimidade entre empresas e consumidores.
Em síntese, é possível afirmar que Ela me faz tão bem explora sua dimensão fílmica baseada nas três estratégias técnico-estéticas que nos apresenta: o apelo musical da canção entoada pela criança; o apelo visual das imagens de plataformas de conversa online pelo celular; e a mensagem que surge através das frases curtas na tela. O uso desses recursos aponta para a intenção da marca, que não apenas homenageia as mães, como também busca se aproximar da realidade de seus consumidores através da identificação que proporciona a eles, mesmo que esta representação seja idealizada.
A linguagem tem apelo emocional, ou seja, se dirige aos nossos sentimentos e busca persuadir pelas emoções, e a tipologia escolhida – sua estratégia discursiva – foi a poética, pois a preocupação com a qualidade e beleza estética foram fundamentais na construção do texto e para a transmissão da sua mensagem. Com isso, linguagem e estética traduziram ideologias e valores, outro indicador do nosso eixo de análise. Melodia, imagens e frases se combinaram para transmitir sensações de amor, afeto, proteção e segurança, sentimentos que mediam relações entre mães e filhos e traduzem princípios que a marca deseja associar a ela.
Já na dimensão promocional da peça – sua razão de existir está relacionada à venda de um produto ou ideia e à divulgação de seu nome – destacamos a intenção da marca de promover a linha de produtos NINHO e de anunciar o site que contém todas as boas ações da Nestlé neste momento. Ao final da publicidade, aparece junto da logo dos produtos o site para o espectador saber mais sobre a campanha e, nele, a máxima “se faz bem, a gente faz” convida o internauta a conhecer as “iniciativas da Nestlé para fazer o bem a quem mais precisa”.
Direcionado para o site da Nestlé, o consumidor que interagiu com a peça e foi buscar mensagens além dela pode ver que a marca, entre outras ações, doou mais de 500 toneladas de alimentos para instituições, ONGs e governo, além de mais de 480.000 máscaras cirúrgicas para hospitais e Ministério da Saúde. Ainda que essas informações não estejam diretamente na peça aqui analisada, é nela que começa a produção de sentido que a marca deseja transmitir: a ideia de que Nestlé e NINHO, assim como as mães, fazem bem às pessoas.
Este é um exemplo, portanto, da importância do desenvolvimento das competências midiáticas do público. A todo momento somos levados a completar as mensagens que visam à manipulação dos nossos sentimentos, sejam elas com objetivo comercial – como numa peça publicitária – ou informativo, como em uma notícia. Entender os processos envolvidos a partir dos elementos dados é fundamental para que essa experiência seja vivida da forma mais profunda e qualificada possível, sob uma postura crítica e consciente, sem que as atitudes, percepções e consumo do cidadão sejam permeados somente pelas emoções nele criadas.
Referências
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183/11521. Acesso em: 03 jul. 2020.
ANEAS, T. Premissas para aplicação de análise fílmica à publicidade audiovisual: um exercício analítico de Always a Woman. Cadernos de comunicação, v.17, n.18, jan-jun 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/ccomunicacao/article/view/10896. Acesso em: 03 jul. 2020.
* Todas as imagens da peça publicitária usadas nesta análise são capturas de tela.
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