Por Gustavo Furtuoso
Nesta terceira etapa da análise de Eu, a Vó e a Boi, completamos todos os âmbitos de comunicação que se relacionam com a série, ou seja, já tendo analisado a criação audiovisual a partir dos episódios assistidos e as ações de transmidiação a partir das publicações nas redes sociais, agora o foco é direcionado ao telespectador e seus entendimentos sobre o universo narrativo (Borges, Sigiliano, 2021). Para isso, verificamos os comentários feitos pelo público nas publicações oficiais do Globoplay no Youtube, Facebook, Instagram e Twitter. No caso do Twitter, também conseguimos observar as publicações feitas pelos usuários em suas próprias contas, quando mencionando a série ou uma hashtag relacionada.
Os indicadores usados para análise dos comentários são o conteúdo dos mesmos em relação com a publicação oficial da série e aspectos relacionados à arquitetura informacional de cada uma das plataformas. Alguns desses aspectos são pertinentes a todas elas, como a simetria ou assimetria das conexões, a circulação de informações, a segmentação e a replicabilidade (BORGES et al, 2022). Outros são específicos a apenas uma ou algumas delas. Youtube, Facebook e Instagram não permitem filtrar as publicações dos usuários por assunto. Já no Twitter, isso é possível, o que permite mapear publicações independentes dos contextos fornecidos pelos canais oficiais da série, ampliando o entendimento sobre como essas narrativas afetam seu público.
Youtube
No Youtube, foi identificado apenas um contexto de conversação [Figura 1]. A postagem que o propiciou foi o vídeo de divulgação do trailer da série, publicado no dia 29 de novembro de 2019, data em que a produção foi disponibilizada na plataforma de streaming.
Os comentários do Youtube são hierarquizados a partir de sua relevância, ou seja, aqueles que recebem mais curtidas e respostas aparecem no topo da página. O tópico mais recorrente foi a identificação da história original que motivou a criação da série [Figura 2]. Como já tratado nas etapas anteriores de análise, a obra foi inspirada em uma thread que o influenciador Eduardo Hanzo publicou em seu perfil no Twitter e que viralizou na época, ganhando repercussão e visibilidade. Dessa forma, muitos comentários foram feitos por pessoas que já tiveram contato com a thread e relataram estar surpreendidos com ela ter se tornado uma produção original do Globoplay. De modo geral, com relação à adaptação das personagens apresentadas no Twitter para uma série de comédia, o público se mostrou bastante positivo, com elogios à ideia e ao elenco reunido. Não foram todos, porém, que identificaram a história de Hanzo ou que sequer a conheciam. A partir de relatos comentando sobre a thread, algumas pessoas pediam informações para se situar no assunto, e outras respondiam, indicando o perfil do influenciador ou explicando de onde tudo aquilo surgiu.
Elogios foram feitos pelos telespectadores, falando principalmente sobre o elenco, a participação de Miguel Falabella na criação da série e alguns aspectos técnicos como narrativa e fotografia [Figura 3]. Tratando do elenco, o protagonismo de Arlete Sales e Vera Holtz foi destaque entre os telespectadores. A trilha sonora também foi bastante comentada, com muitas pessoas perguntando quem era o intérprete e outras identificando ou respondendo ser uma canção da banda The Kinks.
Como a única publicação feita sobre a série no Youtube no período do levantamento foi o trailer da série, muitos comentários foram feitos por pessoas que ainda não haviam assistido os episódios. Pelo mesmo motivo, a grande maioria dos comentários eram relacionados ao conteúdo exibido no vídeo, com poucos telespectadores interagentes tratando de outros assuntos, como foi mais recorrente nas outras redes sociais. As interações entre diferentes usuários eram, na maior parte das vezes, entre pessoas desconhecidas, que interagiam a partir do próprio contexto criado pela Globoplay. Além disso, a plataforma curte e responde comentários do público, com tom descontraído, criando certa intimidade e, geralmente reforçando os elogios feitos ou chamando para assistir ou maratonar os episódios da série.
No Facebook, foram identificados 4 contextos conversacionais na macro codificação e 8 na micro codificação [Figura 4]. Duas publicações foram feitas antes da estreia da série, buscando gerar antecipação no público. As demais foram publicadas após a disponibilização dos episódios na plataforma de streaming.
No Facebook, a visualização dos comentários pode ser feita a partir do critério de hierarquia por mais relevantes. O tópico mais recorrente entre os dez contextos de conversação foram críticas ao serviço da Globoplay, destacando principalmente travamentos, erros de login na plataforma e problemas na assinatura [Figura 5]. Em muitas das postagens, não é possível sequer saber se os comentários foram feitos por pessoas que assistiram a série, pois o perfil oficial da Globoplay no Facebook passou a ser visto pelo público como espaço para um diálogo mais direto, onde trazem dúvidas e reclamações sobre assuntos diversos relacionados à contratação do serviço. Apesar de responder a alguns dos comentários, os que trazem reclamações do tipo são ignorados. É válido destacar que muitas dessas críticas são feitas em tons exaltados e bastante insatisfeitos, usando algumas vezes palavras de baixo calão. Comentários longos narrando todo o problema que tiveram desde o início da assinatura e argumentando porque estão insatisfeitos com o serviço também são comuns.
Além das reclamações gerais à plataforma, os comentários também traziam elogios à produção e ao elenco, além da identificação da história ser inspirada na thread viral do Twitter. Diferentemente do Youtube, porém, muitos desses comentários eram feitos já mencionando outro usuário numa conversa mais bilateral do que aberta à interação de forma mais ampla [Figura 6]. Isso é resultado da própria arquitetura informacional do Facebook e dos usos que as pessoas fazem da rede social, que se baseia principalmente na relação com usuários a partir de vínculos já existentes no cotidiano social. Aqui também pode ser notado uma recepção bastante positiva com relação à premissa da série e ao fato de ser inspirada em algo trivial postado na internet.
No Facebook, foi encontrada uma quantidade bem maior de comentários alheios ao conteúdo trazido pela postagem. Isso foi causado, em grande parte, pelo fato de o público usar a rede social como canal de reclamações sobre o serviço contratado, apesar de a plataforma não responder esse tipo de comentário. Os elogios feitos à série eram, de certa forma, superficiais, destacando fatos que não demandam conhecimento algum sobre narrativa, como a presença de atrizes no elenco ou a identificação da thread que originou a série. Visto que a proposta da obra é fazer uma alegoria para a divisão política vivida pelo Brasil, incorporando essa ideia em aspectos formais e, inclusive, abrindo mão de um tom de comédia mais evidente, o público falhou em identificar essa crítica e relacioná-la à dinâmica dos personagens. As publicações também não exploravam muito o universo ficcional, com muitas publicações trazendo atores e atrizes despidos de seus personagens ao falar sobre a série.
Assim como no Facebook, no Instagram foram feitas 10 publicações pelo perfil oficial da Globoplay [Figura 7]. Dos 10 contextos de conversação, três foram gerados antes da estreia da série, e os demais após.
No Instagram, a maioria dos comentários estava relacionado a série, feito por pessoas que assistiram os episódios. Eram recorrentes pedidos por novos episódios e pela confirmação de uma nova temporada [Figura 8]. Os telespectadores interagentes marcaram o perfil da Globoplay (@globoplay) em mensagens com tais pedidos, referindo-se à plataforma de maneira intimista e bem humorada, como por exemplo utilizando o termo “Dona” antes da marcação do perfil oficial. Muitos interagentes também marcaram amigos, muitos em comentários sem nenhum texto, na intenção apenas de que a outra pessoa verificasse o conteúdo da publicação feita.
Apesar do tom próximo e descontraído com o qual os fãs dirigiam-se à desenvolvedora, comentários com pedidos, reclamações ou críticas não costumam ser respondidos pelo perfil. Por outro lado, mensagens que destacam qualidades da produção, do elenco ou da equipe de produção frequentemente foram curtidas e receberam resposta. Numa publicação que destacava as personagens de Alessandra Maestrini em duas obras de Miguel Falabella (Toma Lá Dá Cá e Eu, a Vó e a Boi), por exemplo, um fã cita o bordão da empregada doméstica Bozena, ao qual o perfil oficial responde ter lido no sotaque sulista da personagem, acrescentado de um emoji [Figura 9]. De modo geral, as respostas costumam concordar com o que foi dito e reforçar a afirmação ou chamar para maratonar a série na plataforma de streaming.
Outros tópicos foram elogios ao desempenho de atores e atrizes do elenco, à trilha sonora, além da identificação da thread que originou a série e de menções a outras produções de Falabella, em especial porque parte do elenco já trabalhou com o autor em outras obras de sucesso. Comentários relacionados à prática de binge watching também foram identificados, assim como uso recorrente de emojis, geralmente de forma elogiosa.
Assim como no Facebook, pode ser identificado um grande número de interações entre diferentes usuários da rede social, marcando amigos ou dirigindo-se à própria plataforma. No Instagram, porém, eram menos frequentes reclamações e críticas ao serviço, e mais comuns comentários a respeito das séries promovidas pelas publicações. O perfil oficial da Globoplay engaja com alguns dos comentários, num tom próximo do coloquial, porém seleciona aqueles a quem vai responder, incentivando opiniões que dizem respeito à série ou ao universo de produções do Grupo Globo.
O protocolo de abordagem de monitoramento, extração e codificação dos comentários publicados no X/Twitter abarcou a primeira semana de lançamento de Eu, a vó e a Boi. Neste sentido, é importante ressaltar que a coleta dos metadados é pautada pelas interferências associadas a recolha de dados retroativos e a nova política de governança da rede social. A partir da definição das indexações e palavras-chaves (relacionadas ao universo ficcional da série e as ações de transmidiação do Globoplay) e da extração dos tweets, foram codificados 6.211 publicações no Twitter, sendo identificados 7 contextos conversacionais na macrocodificação.
Os contextos conversacionais codificados no Twitter ressaltavam, de modo geral, as inter-relações entre a thread de Eduardo Hanzo e a adaptação de Miguel Falabella para o serviço de streaming do Grupo Globo. Nesse sentido, na macrocodificação identificação foram observadas publicações que resgatavam trechos da postagem original de Hanzo. Os tweets repercutiam como era interessante ter um conteúdo do Twitter sendo adaptado para o audiovisual, reforçando as comunidades momentâneas formadas na rede social.
Os telespectadores interagentes também correlacionaram a trama do Globoplay com outras obras da cultura pop como, por exemplo, Chaves. Os tweets ironizavam pontos importantes da história, principalmente a conturbada relação entre as vizinhas que protagonizam a atração. A participação do ator Daniel Rangel, que interpreta Roblou, foi comentada pelo público a partir do uso de recursos multimodais, destacando trechos de Eu, a Vó e a Boi.
Apesar da repercussão em torno da adaptação e da empolgação do público pela obra, parte de um conteúdo publicado no Twitter, os telespectadores criticaram a produção do Globoplay. Os tweets pontuavam as diferenças entre a thread e a trama da plataforma, afirmando que a qualidade teria caído.
Por fim, a autoria de Miguel Falabella foi discutida pelos telespectadores interagentes, além de reconhecerem elementos e recursos característicos de seus programas como, por exemplo, a escalação das atrizes Arlete Salles, Alessandra Maestrini e Danielle Winits. O público ressaltou o modo como o machismo foi explorado na atração, principalmente a partir da explicação da adoção do termo “boi” e não “vaca” pela protagonista. Nesse contexto, os tweets reforçavam a importância deste plot – que integra a thread de Eduardo Hanzo – ter sido mantido por Falabella.
Dimensões da competência midiática e conclusões
Agora faremos a análise das dimensões da competência midiática (Ferrés, Piscitelli, 2015) em operação nos comentários feitos pelos telespectadores interagentes que comentaram sobre a série no Twitter.
A dimensão tecnologia pode ser observado nas publicações feitas por usuários que compreendiam e dominavam o uso da plataforma tanto como um canal em que podiam interagir uns com os outros numa temporalidade always on paralela à disponibilização dos episódios no streaming, quanto como um ambiente em que conseguiam se apropriar e remixar imagens, textos e vídeos, por exemplos, para serem incorporados em seus posts a partir de seus pontos de vista. Também nesses usos, a dimensão linguagem se faz notar a partir da forma como os telespectadores interagentes comentavam o desenvolvimento da narrativa, evidenciando conhecimentos relacionados à linguagem audiovisual, e também se apropriaram dela, ressaltando a habilidade de compreender e se inserir na linguagem multimodal da internet com suas próprias publicações. Além disso, também subverteram o sentido original desses conteúdos remixados em memes com teor cômico.
Com relação à dimensão estética, alguns telespectadores apontaram a discrepância entre o tom cômico da thread que deu origem à trama e o tom pesado e mais repleto de drama adotado pela série. Eles apontaram, a partir de seu repertório midiático e do conhecimento de produções anteriores com características, que a articulação dos recursos audiovisuais empregados em Eu, a Vó e a Boi criaram uma quebra de expectativa – com relação ao humor – que os desmotivou a acompanhar a temporada até seu fim. A construção alegórica para representar a polarização política vivida pela sociedade brasileira foi a causa desse tom mais pesado identificado pelo público. Em 2020, com a pandemia de COVID-19 e o negacionismo com relação à vacina, embates políticos tornaram-se frequentes e movimentaram também opiniões e comentários nas redes sociais. Essa camada da trama se relaciona com a dimensão ideologia e valores, a partir da qual telespectadores interagentes identificaram essa crítica tecida pelo texto da série – e que só se torna evidente no último plano da série – e também afirmaram que há uma intenção da desenvolvedora em se apropriar de tais temas.
Processos de interação é a dimensão que diz respeito à capacidade de estabelecer uma atuação colaborativa e interagir com pessoas e grupos diversos em ambientes plurais e diversos. Tal aspecto pode ser percebido em discussões a partir de diferentes produções – tanto do canal Globo quanto da plataforma Globoplay – e como o tom de humor praticado em décadas anteriores seria visto de forma diferentes na atualidade, com algumas piadas sendo inaceitáveis e preconceituosas. Por fim, a dimensão processos de produção e difusão foi identificada a partir da maneira como os comentários tratavam do selo de produções do Globoplay, comparando formas de produção de diferentes obras, assim como o modo de produção televisivo de obras anteriores de Miguel Falabella.
Como conclusão, pode-se apontar que algumas redes sociais despertam mais comentários direcionados ao conteúdo postado que outras, que são mais vistas como canais de diálogo com a produtora. Por parte da Globoplay, apenas alguns tipos de comentários são respondidos ou curtidos, incentivando algumas práticas – como elogios à série – mais que outras – como críticas ao serviço prestado. Com relação à relação entre o que era apontado pelo público e o conteúdo trazido pelas publicações, notou-se que a falta de uma exploração maior do universo narrativo e dos personagens de Eu, a Vó e a Boi resultou numa experiência menos rica que o que poderia ter sido fomentado, visto que poucas pessoas elogiaram ou sequer notaram a camada crítica que a obra possui com relação ao momento político do país. Com isso, a thread que inspirou a série foi o tópico mais recorrente em que fãs interagiam uns com os outros, trazendo novos fatos ou contextos àqueles que os desconheciam.
Referências
BORGES, G. et al. A qualidade e a competência midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal. Coimbra: Grácio Editor, 2022.
Comentar