Por Júlia Garcia
Boys Over Flowers é um k-drama de 25 episódios, exibido originalmente em 2009 e baseado no mangá japonês Hana Yori Dango. A história acompanha a humilde estudante Geum Jan-di, que acaba ganhando uma bolsa de estudos em uma das melhores e mais caras escolas do país. A escola, no entanto, é dominada por um grupo de garotos ricos e mimados conhecidos como F4, ou Flower Four. Ao enfrentar o líder do grupo, Go Jun Pyo, Jan-Di é marcada com a “tarja vermelha” e começa a ser infernizada pelo F4. Entretanto, o confronto faz despertar alguns sentimentos românticos entre a menina e dois desses garotos.
A fanfiction Flower Four – The Way é inspirada no k-drama e apresenta, em capítulo único (one-shot), trechos do que teria acontecido algum tempo após o final de Boys Over Flowers. Com 72 visualizações e 11 inserções em favoritos, a história foi escrita pelo usuário SanYuRa e publicada em 2018 na plataforma Spirit Fanfics. SanYuRa, que se apresenta como Alessandra Fernandes, é membro do site desde 2017 e possui 4 histórias publicadas: três delas baseadas em k-dramas e uma inspirada no grupo musical sul-coreano Got7. Albuquerque e Cortez (2015) destacam que a onda coreana, que alcançou o auge em 2002 com a exportação do drama Winter Sonata, “consiste na popularidade alcançada pelo pop sul-coreano e seus produtos relacionados – dramas televisivos (k-dramas), música pop (k-pop) e ídolos pop (k-idols)”. Pode-se inferir, portanto, que o usuário está inserido no fandom de produções sul-coreanas, que variam de séries à música.
A fic está contida na categoria “Boys Before Flowers (Boys Over Flowers)” e possui classificação etária livre. A categorização das histórias a partir do produto nos quais se inspiram e a divisão delas em faixa-etária permitem que os usuários encontrem mais facilmente as fanfictions que lhes interessam e avaliem se o conteúdo é adequado ao que procuram. Nesse contexto, é interessante notar que, já que o k-drama é frequentemente referenciado por duas traduções diferentes – Boys Before Flowers e Boys Over Flowers – a plataforma Spirit insere ambas nomenclaturas na categorização, de modo que seja ainda mais fácil encontrar as fanfics relacionadas à produção, seja qual for o termo utilizado na busca. Nesse sentido, pode-se observar certa proficiência dos organizadores da plataforma em relação à dimensão “tecnologia” proposta por Ferrés e Piscitelli (2015) em estudos sobre competência midiática, uma vez que tal dimensão se refere à capacidade de manusear e adaptar as ferramentas tecnológicas de acordo com os objetivos comunicacionais.
Para Jenkins (2012), há dois tipos de leitura: crítica e criativa. Enquanto a primeira se relaciona à resposta crítica em relação a determinado conteúdo, a segunda abrange a ressignificação e criação de novos textos. Nesse contexto, as fanfics representam ambas as leituras, onde é possível tanto alterar elementos da obra original que não satisfizeram os fãs, quanto criar elementos que continuem a história após o final da obra-fonte. Jenkins (2012) ainda elenca cinco elementos que estimulariam a criação dos fãs: sementes, buracos, contradições, silêncios e potenciais.
Flower Four – The Way utiliza, principalmente, os potenciais, já que aborda os acontecimentos pós-narrativa, ou seja, o que ocorre em seguida. A história é contada sob três perspectivas diferentes: a de Jan-Di, de Yi Jung e de Jun Pyo. Sob a perspectiva de Jan-Di é apresentado um panorama geral do que ocorreu com os personagens alguns anos após o final da obra original. A moça se prepara, com o marido Jun Pyo, para o casamento da melhor amiga, Chu Ga Eul, e Yi Jung, um dos membros do F4. A fic sugere, portanto, que o casal principal da trama segue apaixonado e em um relacionamento feliz. Já a cerimônia de casamento é narrada brevemente por Yi Jung, durante a qual é possível perceber que o relacionamento entre ele e Chu Ga Eul, que se concretiza ao final da obra-fonte, realmente deu certo. Da mesma forma, a autora da história também fornece um vislumbre da relação entre os membros do F4, que parecem continuar amigos e manter a proximidade, mesmo tendo seguido caminhos e profissões diferentes.
Por fim, sob a perspectiva de Jun Pyo, a fanfic apresenta um encontro entre ele e a esposa, organizado em um local já visitado pelo casal durante os acontecimentos de Boys Over Flowers. Jenkins (2012, p.20) afirma que “uma boa história de fã referencia eventos-chave ou pedaços de diálogo como evidência para suportar sua interpretação particular dos motivos e ações dos personagens” e que detalhes da narrativa são utilizados como forma de sugerir que os acontecimentos da fic fossem realmente passíveis de ocorrer na obra original. Desse modo, ao utilizar tal local na narrativa, a autora não somente evidencia um espaço que já é significativo para o casal e que será reconhecido pelos fãs, mas também se aproxima de modo verossimilhante à obra-fonte. Isso também pode ser observado na construção do personagem Jun Pyo, que se mantém in of character, ou seja, apresenta as características marcantes que compõem o personagem da narrativa original.
Ferrés e Piscitelli (2015) pontuam que a dimensão “linguagem” da competência midiática se relaciona à capacidade de analisar, avaliar e ressignificar mensagens, compreendendo as estruturas narrativas e fluxos de informação por diferentes plataformas. Nesse sentido, a própria criação de fanfics já representa um mecanismo intimamente ligado a essa dimensão, já que há a criação de novos conteúdos a partir de obras já existentes, ressignificando-as em um novo contexto. Além disso, a autora de Flower Four – The Way propõe uma narrativa one-shot, ou seja, em capítulo único, na qual há a apresentação de acontecimentos distintos, mas interligados, sob a perspectiva de três personagens diferentes. Dito isso, a história segue essa proposta de maneira bem-estruturada e adequada à plataforma e ao público. A mudança de perspectiva é assinalada por um parágrafo com o nome do narrador da vez centralizado e em negrito, deixando clara a estrutura narrativa.
Embora as situações narradas sejam diferentes, elas se complementam e se unem cronologicamente, de modo a fornecer um panorama diverso sobre o destino dos personagens e os sentimentos de cada um. Como exemplo tem-se a preparação para o casamento de Ga Eul e Yi Jung, contada por Jan-Di. Enquanto narra a manhã antes da cerimônia, Jan-Di cita brevemente ter enjoos, embora não conte o motivo de tê-los. Apenas no encontro na praia da terceira e última parte da fanfic, dessa vez contada por Jun Pyo, é que se descobre o motivo do mal-estar: Jan-Di está grávida do marido. Ao mesmo tempo em que a mudança de perspectiva mostra sentimentos e pensamentos que apenas aquele narrador poderia revelar – já que a narração da fic é totalmente em primeira pessoa – tal mudança também é feita de modo a complementar informações anteriores e aprofundar a compreensão do leitor acerca do que ocorreu com os personagens. A autora apresentou, portanto, a capacidade de “se expressar mediante uma ampla gama de sistemas de representação e significados” e de “escolher entre diferentes sistemas de representação e estilos em razão da situação comunicativa, do tipo de conteúdo a ser transmitido e do tipo de interlocutor”, o que revela habilidades do usuário relativas à dimensão da linguagem (FERRÉS E, PISCITELLI, 2015, p.9).
Figura 1: Mudança de perspectiva é evidenciada por parágrafo com o nome do novo narrador
Dentre as capacidades esperadas no âmbito da dimensão “ideologia e valores” da competência midiática, Ferrés e Piscitelli (2015, p.13) pontuam a “atitude ética na hora de baixar produtos úteis para consulta, documentação ou visualização de entretenimento”. Nesse sentido, além de a plataforma Spirit permitir a disponibilização de um aviso legal por parte dos autores, que afirmam não possuírem propriedade intelectual sobre os personagens não-originais da narrativa, o usuário SanYuRa reafirmou nas notas do autor que aquela história se tratava de conteúdo feito de fã para fã. Dessa forma, é explicitado um compromisso ético da comunidade de fãs com as obras originais e seus respectivos criadores.
Além disso, ao longo da narrativa, a autora utiliza algumas expressões coreanas, como aishi e sunbae, remetendo ao idioma e à cultura da obra-fonte. Isso não só permite que o fã faça conexões com o produto original, mas também revela certo conhecimento da autora acerca de outras manifestações culturais e estimula a troca e a valorização de elementos extranacionais, contribuindo para a diversidade.
Ainda nessa dimensão, Ferrés e Piscitelli (2015, p.13) destacam a capacidade de gerir emoções e reconhecer os processos de identificação emocional com a narrativa e personagens como uma “oportunidade para conhecer a nós mesmos e para nos abrir a outras experiências”. Nesse contexto, a produção e consumo de fanfics de modo geral oferecem ao fã, que já possui uma conexão emocional com a obra-fonte, novas situações em que possa ocorrer tal identificação, capaz de despertar questionamentos e favorecer o autoconhecimento.
A dimensão “estética” se relaciona à capacidade de transformar produções artísticas e produzir novas mensagens que possam contribuir para a incrementação da criatividade, inovação, experimentação e sensibilidade estética (FERRÉS E PISCITELLI, 2015, p.13-14). Dessa forma, a própria escrita de fanfics se relaciona à dimensão por estimular a criatividade e a experimentação a partir da modificação de produtos existentes. Nesse sentido, SanYuRa apresentou uma história que amplia o universo ficcional original, transposta para uma estrutura narrativa que se difere da obra-fonte (enquanto Boys Over Flowers é um produto audiovisual, a fic é uma narrativa textual one-shot). Além disso, a narrativa foi construída de modo distinto da produção original, a partir de diferentes narradores e diferentes perspectivas sobre três acontecimentos complementares.
Referências
ALBURQUERQUE, Afonso; CORTEZ, Krystal. Cultura Pop e Política na Nova Ordem Global: lições do Extremo Oriente. In: CARREIRO, Rodrigo; FERRARAZ, Rogério; SÁ, Simone Pereira de (Org). Cultura Pop. Salvador: Edufba, 2015.
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. In Lumina, Juiz de Fora, v. 9, n. 1, p.1-16, jun. 2015. Disponível em: <https://lumina.ufjf.emnuvens.com.br/lumina/article/view/436>. Acesso em: 15 jun. 2020.
JENKINS, H. Lendo criticamente e lendo criativamente. In Matrizes, v.9, n.1, p. 11-24, 2012. Disponível em: < https://bit.ly/2I9TWnn>. Acesso em: 15 jun. 2020
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