Observatório da Qualidade no Audiovisual

Contexto Familiar

Por Júlia Garcia

A fanfic Contexto Familiar é uma história one-shot publicada em fevereiro de 2010 na plataforma Nyah! Fanfiction. Escrita pelo usuário just_faith, a narrativa é baseada no drama coreano Boys Over Flowers (2009), que conta a história da humilde Jan Di, cuja vida é infernizada pelo grupo de meninos populares e ricos F4 – ou Flower Four – após uma confusão envolvendo a garota e o líder do grupo, Goo Jun Pyo. A série é uma adaptação do mangá Hana Yori Dango, que deu origem, também, a outras produções, como uma série de animê, doramas e c-dramas.

A história foi desenvolvida em capítulo único e conta com cerca de 2.500 palavras, cinco comentários e quatro inserções em favoritos. Embora a autora, just_faith, seja membro do site desde 2006, o perfil de usuário está atualmente inativo, sendo que não há informações como nome, foto e descrição. Apesar de não apresentar dados pessoais no perfil, é possível inferir que a autora se identifica com o gênero feminino, devido aos pronomes utilizados nas notas da fanfic. Além disso, é possível acessar as demais fics escritas pelo usuário, que, além de Contexto Familiar, divulgou outras duas histórias. As outras narrativas, contudo, não estão relacionadas a Boys Over Flowers, e sim à banda de punk-rock estadunidense My Chemical Romance. 

Ainda que seja baseada no k-drama – o que pode ser inferido pela utilização dos nomes dos personagens da versão coreana, que são diferentes da japonesa – a fanfic se insere na categoria Hana Yori Dango, que dá nome ao mangá, animê e drama japonês. Entretanto, a plataforma disponibiliza a categoria Boys Before Flowers, em referência à produção da Coreia do Sul. Frequentemente, pode-se encontrar histórias que utilizam ambas as tags, de modo a atingir um público maior. Como partem de uma mesma obra – o mangá – tais versões possuem muitas similaridades e, mesmo que tenha assistido a apenas uma das produções, é possível que o fã consuma e aproveite fanfics inspiradas tanto no dorama quanto no k-drama. 

Em relação à narrativa, a história divide-se em duas partes: durante a primeira, Jun Pyo lê um jornal enquanto recebe a notícia de que será pai com sua esposa Jan Di, que está grávida de uma menina; já na segunda, alguns anos após o nascimento da criança, Jun Pyo vê as estrelas com a filha. Nesse contexto, a fã se aproveita das sementes e potenciais da obra-fonte para desenvolver a fic (JENKINS, 2012). 

Ao imaginar os eventos após o final de Boys Over Flowers, a autora utiliza os potenciais, ou seja, “projeções sobre o que poderia ter acontecido além dos limites da narrativa” (JENKINS, 2012, p.18). Esse recurso está bem evidente na primeira parte da fanfic, enquanto Jun Pyo lê um jornal. As notícias são utilizadas como um modo de apresentar a atual situação do próprio Jun Pyo e do amigo Jin Hoo sem que haja um diálogo expositivo, característico do que Johnson (2012) denomina “setas chamativas”. Desse modo, os títulos das matérias – “Grupo Shinhwa aumenta expectativa com nova proposta do diretor geral Goo Jun Pyo” e “Yoon Jin Hoo, defensor da Tese de Mutação Genética Transmissível, ganha prêmio pela Academia Especial de Medicina” – dão uma ideia ao leitor sobre o destino dos personagens. Da mesma forma, os pensamentos de Jun Pyo ao ler as notícias, explicitados por um narrador onisciente, em terceira pessoa, também acrescem informações à história. 

Já na segunda parte da narrativa, percebe-se, mais evidentemente, a utilização de sementes. Na obra-fonte, as sementes se apresentam como “pedaços de informação introduzidos na narrativa para indicar um mundo maior que não é completamente desenvolvido na própria história” (JENKINS, 2012, p.16). Durante os acontecimentos de Boys Over Flowers é trabalhada a complicada situação familiar de Jun Pyo, embora o romance com Jan Di acabe por tomar o lugar central da narrativa. Em Contexto Familiar, explora-se as marcas que essas relações familiares deixaram em Jun Pyo, enquanto evidencia-se o modo como o homem trabalha essas questões na relação com a própria filha. 

Pode-se perceber, portanto, como as fanfics evidenciam a leitura crítica e criativa dos fãs, que podem tanto ansiar por mais da obra-fonte, quanto expandir, reescrever ou modificar elementos que não os satisfizeram completamente (JENKINS, 2012). Através das notas da história, é possível inferir que esse seja o caso do usuário just_faith, que afirma “e sim, ainda estou inconformada que BFF acabou daquela maneira”. Pela utilização de sementes e potenciais, que ampliam o universo de Boys Over Flowers, sem, contudo, mudar os rumos indicados ao final da história, pode-se entender que o descontentamento da autora talvez esteja mais relacionado à falta de aprofundamento em certas questões relativas ao destino dos personagens do que às escolhas narrativas da obra-fonte.

Figura 1: Autora se comunica com os leitores através das notas da história e notas finais do capítulo

Em relação à dimensão linguagem da competência midiática, proposta por Ferrés e Piscitelli (2015), a escrita de fanfics em si representa um mecanismo através do qual é possível trabalhar questões referentes a essa dimensão. O modo como a autora estruturou a narrativa, contudo, indica não somente a capacidade de ressignificar produtos já existentes – uma vez que a história se baseia em Boys Over Flowers – mas também a habilidade de trabalhar a linguagem de forma expressiva e criativa. 

Além de utilizar recursos como as notícias do jornal para fornecer um panorama dos personagens sem a necessidade de diálogos expositivos óbvios, a autora utiliza fontes em itálico para indicar cortes espaciais e temporais. Em uma narrativa audiovisual, tais cortes seriam claros, mas, em um texto em prosa, é necessário inseri-los de modo coerente ao leitor. Ao invés de indicar esses cortes através de intertítulos, como “enquanto isso, na casa de Jan Di” ou “há três anos, na empresa de Jun Pyo”, que seriam formas explícitas e extremamente didáticas de escrita, a autora escolhe a utilização dos itálicos para essa indicação, o que se mostra um recurso mais interessante e estimulante, revelando a capacidade de expressão e representação de just_faith

Nesse contexto, é válido pontuar que tal recurso é usado, inclusive, para a inserção de um flashback. Enquanto observa as estrelas com a filha, Jun Pyo se lembra de um episódio com a esposa Jan Di, onde o executivo diz que não quer fazer promessas que não possa cumprir. O flashback é importante, nesse momento, para indicar o quão chateado Jun Pyo está por não cumprir o que havia prometido à filha. Assim como em outros momentos, o corte e a mudança temporal são indicados apenas pela fonte em itálico. De forma positiva, essa escolha de estrutura narrativa requer, por parte do público, uma leitura mais atenta e engajada, o que pode, ainda, estimular o desenvolvimento de habilidades relacionadas à competência midiática. 

Figura 2: Texto em itálico é utilizado para indicar cortes espaciais e temporais

A utilização de tais recursos de linguagem também remete à dimensão estética, referente, no plano da expressão, à capacidade de transformar produções artísticas, estimulando a experimentação e inovação, e de “produzir mensagens elementares que sejam compreensíveis e que contribuam para incrementar os níveis pessoais ou coletivos de criatividade, originalidade e sensibilidade” (FERRÉS E PISCITELLI, 2015, p.14). No caso da inserção do flashback, é possível encontrar, no modo como tal inserção foi feita, um diálogo com a linguagem audiovisual, que muito utiliza esse recurso. Nesse sentido, Contexto Familiar não só apresenta uma história que amplia e incrementa o universo ficcional, mas o faz de forma expressiva, capaz de estimular a linguagem e criatividade do leitor. Além disso, nas notas finais do capítulo, a autora deixa sugestões musicais para os fãs, com canções da trilha sonora de Boys Over Flowers que inspiraram a escrita da fanfic. O usuário estimula, portanto, o consumo de outras produções culturais, o que pode, por exemplo, impulsionar o desenvolvimento, por parte do leitor, da “capacidade de relacionar as produções midiáticas com outras manifestações artísticas, detectando influências mútuas” (FERRÉS E PISCITELLI, 2015, p.14).

Já em relação à dimensão ideologia e valores proposta por Ferrés e Piscitelli (2015), é possível ver o compromisso ético da autora da fic com os criadores das obras originais. Nas notas da história, just_faith explicita que “os personagens não me pertencem, apesar de querer muito…”, em respeito à propriedade intelectual. Além disso, ao abordar as consequências das relações familiares complicadas de Jun Pyo e o modo como ele trabalha essas questões no relacionamento com a filha, buscando estabelecer uma conexão saudável e evitar os erros de seus pais, a autora apresenta a “capacidade de aproveitar as novas ferramentas comunicativas para transmitir valores” (FERRÉS, PISCITELLI, 2015, p.14). Nesse sentido, especialmente a nível pessoal, a fanfic pode estimular o leitor a propor questionamentos relevantes à sua realidade, mediante uma leitura crítica e identificação emocional, abrindo oportunidades para, como pontuam Ferrés e Piscitelli (2015, p.13), “conhecer a nós mesmos e para nos abrir a outras experiências”.

Referências

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. In Lumina, Juiz de Fora, v. 9, n. 1, p.1-16, jun. 2015. Disponível em: https://lumina.ufjf.emnuvens.com.br/lumina/article/view/436. Acesso em: 15 jun. 2020.

JENKINS, H. Lendo criticamente e lendo criativamente. In Matrizes, v.9, n.1, p. 11-24, 2012. Disponível em: https://bit.ly/2I9TWnn. Acesso em: 15 jun. 2020

JOHNSON, Steve. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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