Observatório da Qualidade no Audiovisual

Gameboys Level-Up Edition

Por Lucas Vieira

Gameboys é um drama seriado filipino do gênero boys love, dirigido por Ivan Andrew Payawal e escrito por Ash M. Malanum. O drama foi produzido e distribuído pela The IdeaFirst Company, no canal do YouTube, onde recebeu legendas para outros idiomas. A primeira temporada da web-série foi lançada em 2020 e já conta com um spin-off do gênero girls love (Pearl Next Door), um filme que será lançado ao final de julho de 2021, uma segunda temporada já produzida com lançamento programado ainda para o ano de 2021 e uma versão reeditada chamada Gameboys Level-Up Edition que foi disponibilizada na Netflix, junto a um episódio extra chamado Alt Gameboys, com uma espécie de epílogo para um personagem secundário. 

A websérie filipina retrata o período de isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus nas Filipinas. Na trama, acompanhamos Cairo (Elijah Canlas), um jovem streamer que, durante a quarentena, faz transmissões de suas partidas online até que é derrotado por um outro jogador, Gav (Kokoy de Santos). Após se sentir inconformado com a derrota, o streamer se aproxima do adversário disposto a marcar uma revanche, mas Gav faz uma exigência: caso ganhe, terá passe livre para flertar com Cairo. 

A série traz uma proposta imersiva que permeia os três planos analisados e que faz parte da metodologia de análise da qualidade no audiovisual, sendo elas o plano da expressão, plano do conteúdo e a mensagem audiovisual. A maior parte da narrativa é contada através de telas, como se acompanhássemos as transmissões online, chamadas de vídeo, mensagens e navegações pela internet.

No que diz respeito aos códigos visuais, dentro do plano da expressão, os cenários são bem limitados, com sequências que se restringem aos quartos dos personagens em um mesmo enquadramento, que está relacionado à posição de seus computadores. Outros ambientes surgem ao longo da história, referentes aos cômodos das casas ou situações específicas, mas não acrescentam impactos narrativos, uma vez que o objetivo é retratar o período de quarentena e isolamento social. Desse modo, os enquadramentos majoritários também são os mesmos, plano fechado ou primeiro plano, focando no rosto dos atores, ou meio primeiro plano, enquadrando da cintura para cima por exemplo; mas tudo é variável de acordo com a aproximação ou distanciamento do personagem em relação a câmera e sua interação com o ambiente, já que a câmera na maioria das vezes também é fixa.

O formato da tela também alterna, nos inserindo em diferentes tipos de espaços e formatos virtuais, como sites e dispositivos. Existem cenas no formato 16:9 que nos dão a ideia de tela desktop, mas também há momentos em que acompanhamos telas verticais, que simulam a ambiência de celulares. Também há momentos em que a tela é divida ao meio e acompanhamos, sincronicamente, informações diferentes em cada imagem.

No que se refere ao tratamento de imagem, ela é completamente natural e possui intenção de passar a ideia de ambientes e realidades virtuais do cotidiano, se aproximando da realidade vivida pelos espectadores durante a quarentena. Imagens mais escuras em determinado momento, imagens mais claras em outros; toda essa irregularidade incorpora os sentidos narrativos impressos na trama.

Os figurinos possuem um papel importante na construção das personagens. Cairo é apresentado como um personagem mais introvertido, tímido e prático; suas roupas são simples, com camisas, calças ou bermudas. O cenário de seu quarto, onde acontece a transmissão de suas lives, possui elementos que indicam um personagem nerd, com objetos decorativos que constroem a personalidade e seus gostos culturais: peças de lego, funkos e luminária de plasma, por exemplo. As informações são acrescentadas no contraste de sua personalidade e construção com o de Gav, um personagem que se apresenta mais esportivo, carismático, sarcástico e relaxado, com frequência usa regatas, aparece em cenas sem camisa, tem um cabelo mais despojado e usa alargadores. A construção dos ambientes frequentados por Gav, no entanto, possui menos detalhes visuais que ajudam a construir a persona, sendo focado mais nas atitudes, humor e objetos que interage eventualmente.

Outro detalhe que nos ajuda a coletar mais informações sobre a construção de personagens é através de “anúncios” que aparecem em espaços das redes sociais que os personagens trafegam nos episódios, mostrando produtos recentemente visualizados pelo personagem.

Os códigos sonoros nos ajudam a imergir nos ambientes virtuais utilizados pelos personagens. Nem sempre a qualidade de som é boa, mas esse aspecto é utilizado como um recurso narrativo que nos aproxima da experiência de videochamadas, com áudios mais abafados, ruídos e irregularidades – que variam de cena para cena também de acordo com o contexto narrativo. Os sons das redes sociais e ambientes virtuais que os personagens frequentam também compõem a experiência audiovisual, com efeitos sonoros de chamadas, notificações de mensagens, sons de teclas quando há algo sendo digitado, de mensagens enviadas, reactions nas plataformas virtuais, entre outros.

Em relação aos códigos sintáticos, os episódios podem parecer mais lentos e parados, devido às poucas mudanças de cenário e câmera majoritariamente estática, havendo poucos cortes e trocas de planos durante uma cena. Mas a trama segue um ritmo dinâmico com as trocas de telas, grafismos e imersão narrativa nessa “arquitetura” virtual. Cenas em que as telas aparecem simultaneamente, navegações de telas e mudanças abruptas de stories apontam a dinamicidade no ritmo da trama. Aponta-se, também, que a narrativa acontece de forma linear, portanto não há recursos que quebrem a cronologia através de flashbacks, desconstrução narrativa ou saltos temporais.

Com maior destaque, os códigos gráficos apresentam funções importantes para o desenvolver da história. Eles são responsáveis tanto para estabelecer o formato que a história será narrada quanto para apresentar informações importantes através de textos, postagens, vídeos e plataformas visuais. É através desse recurso que compreendemos, em um primeiro momento, em que contexto a história acontece, além de apontar informações sobre políticas sanitárias, gravidade da pandemia no mundo, e cuidados que devem ser tomados para evitar contrair a COVID-19. Até mesmo os pequenos detalhes colocados em tela (como os botões de uma videochamada) dão contexto e novos sentidos para os ritmos, posições e justificativas técnicas como câmeras, iluminação, sons e atuação.

A organização de informações visuais nesse recurso de simulação de tela também nos aponta o tráfego entre redes sociais através de interações que ora acontecem em uma rede social que faz referência ao Facebook, ora em rede social que faz referência ao Instagram. Esses momentos são importantes na narrativa e na construção de relações entre as personagens e acontecem através de postagens nas redes sociais, comentários, stories e chats em cada rede. Também há momentos de pesquisas em um site que simula o Google. Contudo, destaca-se que esses elementos e interações existem apenas na história e não fazem parte de um recurso transmídia. 

O grafismo também está presente na introdução da série, que acontece de forma rápida e discreta, com fundo branco e letras coloridas ao início dos episódios, intercalando com cenas ou interações virtuais do personagem que variam de episódio para episódio. A vinheta termina com o título da websérie se formando na tela.

Para o plano do conteúdo, utiliza-se três pontos norteadores presentes, principalmente, no episódio piloto, que são as formas de apresentar a história, introduzir a estrutura narrativa e fidelizar o telespectador (BERLIM, apud BORGES; SIGILIANO, 2021). O episódio piloto do drama apresenta em sua essência a sinopse da websérie. Começamos assistindo as reações de Cairo em sua live, enquanto ele joga uma partida de algum e-game contra um usuário chamado Angel2000. Ao lado esquerdo e direito, acompanhamos as reactions deixadas por usuários que assistem a transmissão ao vivo e os comentários que desencadeiam reações nos personagens e direciona ao que está acontecendo. Na parte superior esquerda também há o número de visualizações da live, nos indicando a relação e até mesmo o “porte” que o personagem tem no meio streamer. Logo na primeira cena, Cairo perde a partida, e então descobrimos que a perspectiva da tela é de Gav, porque ele ameaça comentar na transmissão e logo em seguida curte os comentários que pergunta quem é Angel2000.

A perspectiva muda logo em seguida, alternando para a tela de Cairo. Nela conseguimos ver, primeiro, um post sobre a pandemia do coronavírus, anunciando alerta de casos confirmados nas Filipinas. Ao lado direito, há anúncios de produtos que o personagem olhou recentemente e se destaca pacote com máscaras de tecido, um tênis, um headphone e um keyboard. Na parte superior, na aba da rede social, surge uma notificação de solicitação de amizade e se trata de Gavreel, com o subnick logo abaixo, anunciando Angel2000. Cairo então stalkeia o personagem, e essa é a primeira apresentação que temos de quem é Gav, observando fotos e posts passados. Quando Cairo aceita a solicitação, começa a primeira interação entre os dois, que logo termina em uma videochamada na qual Cairo propõe a revanche. No entanto, percebe que o outro personagem não possui o interesse apenas de ganhar a partida, mas de chamar a sua atenção. Nesse mesmo contexto, existe uma interação através da rede social com outro personagem, o irmão de Cairo, e embora a informação não seja entregue de imediato no primeiro episódio, percebemos certo distanciamento e algo fora do usual.

Depois somos introduzidos a novos formatos de telas e arquitetura, enquanto tanto Cairo quanto Gav stalkeiam a rede social do outro através do celular, em um formato que se assemelha ao Instagram. Nesse momento o espectador é inserido ao formato narrativo da série, assim como seu ritmo e dinamicidade.

O episódio termina com os dois personagens firmando a aposta. Cairo é motivado pela vontade de recuperar sua “dignidade” perdida na derrota da primeira partida, enquanto Gav quer ter uma chance com o outro personagem. Caso Gav ganhe, ele tem a permissão de flertar com Cairo, e caso perca, deve deixá-lo em paz.

É uma trama relativamente simples, que ganha volume e forma através do formato narrado. Ao longo dos episódios acompanhamos o pico de infecções pelo coronavírus, restrições e relaxamento de medidas sanitárias e o desenvolvimento pessoal de cada personagem. Um dos plots da série é que o pai de Cairo está infectado e internado no hospital; enquanto o plot de Gavreel é em relação às suas seguranças e relacionamentos passados. Existe um cuidado na abordagem de como os personagens se encontram pessoalmente, através do afastamento, uso de máscaras e testagem negativa ao vírus. Novos personagens também são apresentados no formato de videochamadas, como a Pearl, ex-namorada e agora amiga de Gavreel e que ganha uma própria série spin-off na qual é abordada sua bissexualidade, temas como bifobia e seu envolvimento com duas outras garotas; o primeiro ex-namorado de Gav, Terrence, que surge como uma ameaça à relação de Cairo e Gav; e um antigo amigo de Cairo, Wesley, que mora em sua cidade natal e possui gostos semelhantes ao personagem. No episódio extra intitulado Alt Gameboys (Episode 13.5), temos o enredo focado em Terrence, e aponta para um desdobramento do personagem para a segunda temporada da série, após sua redenção na primeira temporada.

Ao final da série há uma evolução dos personagens; Cairo é um personagem mais extrovertido e aberto às brincadeiras e provocações de Gav, suas inseguranças são trabalhadas ao longo dos episódios assim como o luto, e também há a presença de cenas que não ocorrem através de telas. Isso de deve ao fato de que, após a morte do pai de Cairo, sua família retorna à cidade natal, e o protagonista passa algumas semanas com Gav antes de também partir. Gavreel, por sua vez, se mostra um personagem mais bem resolvido quanto às suas inseguranças e somos mostrados a um lado mais “humanizado” e menos superficial dele, em comparação aos primeiros episódios. As interações entre os dois personagens acontecem de forma mais fluída. Os dois personagens têm suas tramas resolvidas, mas apresentam ganchos tanto no longa metragem quanto para a segunda temporada do drama.

Na primeira temporada de Gameboys, em relação à mensagem audiovisual, o parâmetro de oportunidade está junto com o de originalidade/criatividade, através do contexto explorado na narrativa. O primeiro episódio foi ao ar no dia 20 de maio de 2020, dois meses após decretado o estado de pandemia. Explorando tanto a relação emocional e pessoal do isolamento social – as pressões e a solidão – quanto os efeitos da pandemia no mundo ao redor afetando diretamente as pessoas, a narrativa consegue usar com responsabilidade o cenário e abordar direta e indiretamente questões importantes em relação a pandemia. O formato é inovador e consegue imergir o espectador ainda mais no universo que os personagens vivem e intensificar toda a questão da quarentena e isolamento social, na qual nossas relações se tornaram ainda mais virtuais. A narrativa consegue explorar o espaço e as relações virtuais intensificadas nesse período e aprofundar em estética e conteúdo seus sentidos e mensagens passadas.

Ainda no parâmetro de oportunidade, o drama explorou um gênero crescente nos países do leste asiático e que tem tomado dimensões comerciais abrangentes na internet a partir da cultura de fãs, o boys love, categorizado por relações homoafetivas entre dois homens. Gameboys se enquadra entre as primeiras produções do gênero no país, sendo antecedido por Oh Mando!, primeiro drama filipino descrito como BL e que também é protagonizado por Kokoy de Santos. Apesar disso, destaca-se que existem outras produções com temática LGBQIA+ e relacionamentos homoafetivos que os antecedem, como Mga Batang Poz (iWant TFC, 2019), mas não eram categorizadas no gênero boys love por não ter como foco narrativo as relações afetivas ou sexuais.

Assim como o parâmetro de oportunidade, a ampliação do horizonte do público se reforma pela discussão dos riscos e cuidados que devem ser tomados em relação a pandemia. É refletida nas ações e comportamentos dos personagens e no medo que Cairo carrega, após a infeção e internação do pai por conta do vírus. É uma produção que se agilizou para abordar o assunto, tratando-o logo no início da pandemia, mas que ainda tem uma abordagem atual e que consegue dialogar com realidades internacionais. Toda a questão da saúde mental, do emocional e dos cuidados sanitários refletem o período que o mundo passou e ainda está passando, e também refletiu aspectos políticos e de administração sanitária de regiões das Filipinas.

No parâmetro de diversidade, temos uma boa representação de personagens queers e se inova com o destaque de uma mulher não-hétero em uma produção BL (e que, futuramente, se torna pioneira filipina no gênero girls love com sua própria série). Destaca-se também que um dos atores, que já protagonizou outras produções LGBTQIA+ e boys love, é assumidamente bissexual, e acolhido pelo fandom, uma vez que tornar a sexualidade pública ainda é um ponto delicado e polêmico nas produções BL.

Por fim, a primeira temporada não recorre a estereótipos pejorativos, mas sim de arquétipos que auxiliam na construção da personalidade dos personagens, consolidando características opostas como extrovertido e introvertido, energético e discreto, entre outros, mas não os reforçam a papeis heteronormativos.

Gameboys é um destaque no início de produções no drama pinoy e apresenta um panorama inovador no gênero boys love e nas webséries. Esse legado é continuado no spin-off Pearl Next Door, que traz novas pautas através do mesmo recurso narrativo – e contexto social/sanitário. A promessa de um longa – que não deve seguir o mesmo formato – apresenta riscos narrativos, mas também oportunidades para desdobramento e novas perspectivas dos personagens que conhecemos por tela. Ainda é desconhecido o formato que será continuada a temporada que tem estreia marcada ainda para esse ano.

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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