Observatório da Qualidade no Audiovisual

“Já que nada vai ser igual, que seja melhor”: a campanha publicitária de oBoticário para o Dia dos Pais

No segundo domingo do mês de agosto é celebrado no Brasil o Dia dos Pais. Em 2020, a data ainda foi comemorada no contexto da pandemia do novo coronavírus, o que evidentemente refletiu nas campanhas publicitárias em homenagem a eles. Entretanto, diferente da conjuntura do Dia da Mães, em agosto vários estados e municípios já tinham flexibilizado suas medidas e muitas atividades já foram retomadas, apesar de ainda estarmos vivendo em pleno período pandêmico. Seja em feriados ou aos fins de semana, por exemplo, muitas praias voltaram a receber banhistas em todo o litoral do Brasil, se igualando as visitas que os locais recebem no verão. Shoppings, bares, estádios de futebol também são setores que de alguma forma voltaram ao funcionamento. Também assistimos nos últimos meses, em alguns países, manifestações massivas, especialmente ligadas a protestos contra o racismo e antifascistas.

Assim, como a publicidade busca ser o reflexo do presente, algumas marcas optaram por abordar a pandemia de forma secundária em seus comerciais. Foi o caso, por exemplo, da Natura e do Bradesco, como podem conferir nas duas primeiras análises realizadas pelo nosso grupo de pesquisa sobre as campanhas para o Dia dos Pais. Já oBoticário, marca que será estudada neste texto, ainda trouxe a pandemia como parte fundamental na relação entre pai e filha neste momento. Dentro dessa perspectiva, fazer publicidade se tornou um desafio para as empresas. Como abordar essa data que envolve afeto, carinho e amor, agora que estamos todos distantes uns dos outros e envolvidos pelo medo? Desta forma, a campanha aqui analisada acionou alguns recursos criativos, estéticos e de linguagem para que a situação como um todo fosse representada de forma mais leve e menos solitária, transmitindo mensagens de esperança, conforto e proteção.

Há mais de 40 anos no mercado e presente em 15 países, oBoticário pertence ao grupo O Boticário. A marca possui mais de 900 franqueados, está presente em cerca de 1.700 cidades brasileiras e tem mais 3.500 pontos de venda, com portfólio que vai de itens de maquiagem e perfumaria, até itens de cuidado pessoal. 

No Dia dos Pais, a marca fez sua homenagem de duas formas distintas. Ambas divulgadas nas redes sociais de oBoticário, mas somente a primeira vinculada a TV. A primeira foi através de um filme publicitário que conta a história do relacionamento entre pai e filha em tempos de isolamento social. Esta foi a peça principal. A segunda, traz uma cliente falando sobre a relação de seu pai, já falecido, com o perfume Quasar, que é um dos mais famosos da marca. 

Criado pela agência AlmapBBDO, o primeiro vídeo postado pela marca procura refletir sobre a presença do pai em casa neste período de pandemia. No filme, a garota nos conta em off como seu pai se tornou a melhor companhia para atividades e brincadeiras diárias. Durante a maior parte do comercial, a filha brinca com o pai que é personificado por um monstro de pelúcia em tamanho humano. A partir de 50 segundos, já quase no fim, o pai se transforma em gente após receber um presente da marca – o perfume Botica 214 – da filha e assim conhecemos suas verdadeiras feições.

Sob a perspectiva da literacia mediática, estaremos observando os indicadores de linguagem, estética e ideologia e valores (FERRÉS; PISCITELLI, 2015), a fim de entender melhor as estratégias do vídeo publicitário. Essas dimensões são fundamentais neste estudo, visto que os conteúdos publicitários colaboram para a construção de moldes idealizados de sociedade e sentimentos. Assim elas fornecem subsídios para uma compreensão crítica acerca dessas mensagens. “A ideologia se revela nas escolhas de linguagem, naquilo que as “máscaras” da publicidade revestem, silenciam, esvaziam e ressemantizam.” (CASAQUI, Vander. 2005, p. 121). 

O comercial, que traz a assinatura “Já que nada vai ser igual, que seja melhor”, nos faz refletir sobre a relação entre o pai e a sua filha, ainda que no fim da peça exista um apelo comercial para um dos perfumes da marca. Enquanto diversas brincadeiras (pique esconde, fantoches, entre outros) são exploradas pelos dois, a garota nos apresenta o pai: “Esse é meu melhor amigo” e diz também que “de uns tempos pra cá, ele não sai mais de casa”. Desse modo, nos informa sobre o nível de proximidade dos dois em tempos de isolamento social e nos faz intuir que o pai está trabalhando em home office. Sendo assim, apesar de todas as adversidades que a pandemia causou em todos os ciclos, sejam eles familiares ou não, na visão da criança são tempos de geração de memórias afetivas positivas e de poder ficar mais próxima a seu pai.

Não obstante ser uma homenagem ao Dia dos Pais, é possível ver uma mulher em poucos instantes do vídeo, que nos faz deduzir que é a mãe. Assim como a filha, a figura materna é representada por uma mulher negra. Portanto, pode-se dizer que novamente a marca se preocupou com a presença de maior diversidade em sua publicidade, já que em 2018, o comercial de Dia dos Pais também é interpretado por uma família negra. Assim, normaliza a população negra também como protagonista de suas campanhas em nível nacional, buscando atender aos anseios da sociedade por representações mais igualitárias.

Na peça, o ambiente doméstico é evidenciando, reforçando a necessidade de permanecer em casa e com isso aproveitar a situação para pensar em novas formas de vivência e convivência, como bem explicita a descrição do vídeo no Facebook “…Uma homenagem do Boti aos pais que estão se reinventando neste momento. E para marcar essa data cheia de amor, presente é O Boticário 💚 #diadospais”. Já no YouTube, a descrição da peça é um pouco reduzida, mas sintetiza bem o discurso proposto pela marca “Já que nada vai ser igual, que seja melhor. Homenagem do Boticário aos pais que se reinventaram nos últimos meses. ”. 

Contudo, é possível perceber que o vídeo foi gravado com uma equipe de forma presencial nos moldes tradicionais de produção audiovisual, recorrendo a recursos bastante diferentes do que foi explorado no Dia das Mães de 2020 pela marca, por exemplo. No Dia das Mães o uso da estética de videochamadas, da tela vertical que simula um celular, automaticamente nos diz que a peça pode ter sido gravada de forma remota. Já na peça agora analisada, o uso de atores, iluminação, cenários, nos indica que o setor voltou a funcionar normalmente. 

O comercial tem claro apelo emocional, especialmente ressaltado na sobreposição da música aos depoimentos da filha, visando a sensibilização do  espectador. A peça é construída através da tipologia de linguagem narrativa. A filha conta sob o seu ponto de vista a sua relação atual com o pai. Ele é então apresentado como  uma espécie de herói que a protege de toda a negatividade do momento que vivemos, inserindo-a em um conto infantil de fantasia. O que também é uma referência a ideia de paternidade ideal.

A criança finaliza a história entregando o presente de Dia dos Pais para o seu pai. Quando o presente chega em suas mãos, ele “se transforma” realmente numa pessoa, sem a fantasia de monstro que usou durante todo vídeo. “Ele sabe tudo de mim, e eu, tudo dele. Até o nome, claro. Mas prefiro chamar de papai! ”, é a sequência final de falas da menina até entregar o presente.

Nas redes sociais, o comercial gerou discussões acerca do modo em que a figura paterna é representada em quase todo o anúncio. O fato do pai ser caracterizado por uma espécie de monstro verde e grande, provocou diversas interpretações nos espectadores, principalmente do público masculino que se sentiu ofendido com a comparação do pai com um monstro “fofinho”, no melhor estilo Monstros S.A.

Comentários retirados do YouTube da marca

Comentários retirados do Facebook da página

A marca não se pronunciou em nenhum sentido sobre a polêmica levantada nos comentários do YouTube. Já no Facebook, mesmo com a reação de raiva estando entre as três mais usadas pelos seguidores para engajar o post, o Boticário procurou estar mais próximo de seu público, respondendo alguns comentários e reforçando o laço de ser uma marca amiga e próxima do cliente. 

Percebemos, pelos comentários, que a revolta de parte do público masculino foi principalmente com a “quebra da virilidade” dos homens, pois eles se sentiram retratados como frágeis e ridículos. Não é possível saber se o pai estava se fantasiando ou se era apenas a forma que sua filha o enxergava com a aparência divertida, o que também não importa. Mas no momento que o presente é entregue ao pai, ele se transforma em humano novamente aos olhos da filha, afinal o produto ofertado é para homens. 

O outro vídeo usado pela marca em 2020 foi uma publicação veiculada exatamente no Dia dos Pais, ao contrário do primeiro, que foi exibido a partir do dia 20 de julho. Nesse segundo, a criação também foi baseada no apelo emocional e a tipologia da linguagem escolhida foi a testemunhal. A peça consiste no depoimento de uma seguidora (@chaborrenata) e o som de um piano ao fundo. No depoimento, também em off, assim como o primeiro comercial – mas desta vez com o apoio de fotografias e ilustrações – Renata conta aos espectadores qual a relação de seu pai com um dos perfumes mais conhecidos da marca, o Quasar. 

“Eu sou uma daquelas pessoas que tem uma memória afetiva e olfativa”, é como ela inicia seu texto, enquanto no vídeo está escrito “Esta é a história de amor da Renata com o pai dela. ”. Aparentemente a peça foi toda produzida de forma virtual, usando ferramentas e softwares voltados para o design e um maior desenvolvimento e referencial artístico. Desta forma, é importante destacar que a marca deu “voz” a uma cliente, colocando ela como protagonista da peça, podendo trazer maior identificação do público com a marca e o produto. 

Captura de tela do vídeo no Facebook

Com 30 segundos, o vídeo chega ao final com a marca evidenciando o uso da hashtag #MarcaDoAmor, mais uma vez com o discurso de ser uma marca amiga, amorosa e que se encaixa em qualquer ocasião, seja ela qual for. 

Comentário retirado do Facebook da marca

Entretanto, ainda foi possível ver certo descontentamento de alguns seguidores que provavelmente se sentiram ofendidos com o filme publicitário principal da campanha  da marca para o Dia dos Pais. É como se eles agora estivessem se sentido contemplados com a representação da figura paterna e com a história contada, ainda que, num primeiro momento, eles não tenham se sentido representados pela marca. A interação possibilitada nas redes sociais nos permite expandir a análise dos produtos publicitários, englobando os processos de interação e compreendendo melhor a dinâmica entre público e marcas. Com isso, acreditamos, teremos mais subsídios para a discussão e proposição de ações formativas voltadas a área da comunicação mercadológica. 

Referências

CASAQUI, V. Publicidade, marcas e análise de ethos. Comunicação, Mídia e Consumo, v. 2, n. 4, (2005). Disponível em: https://bit.ly/343SKdr

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://bit.ly/36ikXzZ

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