Observatório da Qualidade no Audiovisual

Justiça: O Teatro Cruel da Vida Real

Em um corredor pouco iluminado, um policial empurra um jovem negro na cadeira de rodas. O jovem tem a perna direita e parte do pé esquerdo amputados. Eles entram em uma sala. Corte. Na imagem seguinte, o jovem aparece diante de um juiz, o qual se encontra sentado em uma tribuna mais elevada. Ao começar o diálogo, o juiz pergunta se a acusação é verdadeira. O jovem nega. O juiz pede que ele detalhe a sua prisão. Ele conta que foi acusado de arrombar uma casa e pular o muro para fugir, alegando que sua condição física jamais permitiria. O jovem pede para ser transferido da penitenciária para o hospital devido ao seu estado de saúde. O juiz nega e diz “isso é assunto médico”. E completa: “A defensora pública vai analisar a sua situação e pedir os direitos que ela acha que você merece”. Corte para uma tela preta. Em seguida, vem o letreiro: JUSTIÇA.

Este é o nome do documentário produzido por Maria Augusta Ramos, obra filmada em 2003 e lançada em 2004. O filme, de 1h47 minutos, retrata a rotina do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e  do Setor de Custódia da Polinter (Delegacia Especial de Polícia Interestadual). Além de registrar as audiências, sempre com a câmera estática e sem nenhuma intervenção, Maria Augusta acompanha os jovens acusados na cadeia, as rotinas de vida de seus familiares e de alguns funcionários do Tribunal.

Montagem e roteiro

A montagem do filme é feita em 3 blocos: “Carlos Eduardo”, “Geraldo”, “Ignez”, sendo o primeiro nome o de um acusado, o segundo, de um juiz, e o terceiro, de uma defensora pública. Na primeira parte, é mostrada a audiência de Carlos Eduardo, acusado de reincidência no roubo de carros. Sua esposa está grávida e a mãe acompanha tudo, com um semblante de desesperança. O jovem nega participação no crime diante da juíza, que se mantém fria durante toda a audiência, tecendo, por vezes, comentários com um  tom de sarcasmo. Ao encontrar com a defensora em particular, Carlos assume que sabia que o carro que usava era roubado.

Nos blocos seguintes, o juiz Geraldo aparece lecionando em uma sala de aula sobre “provas criminais” e depois interroga um jovem de 18 anos, Alan, que mais se parece um menino de 10, dado a sua baixa estatura. Ele é acusado de envolvimento no tráfico. Alan tem atrofia muscular decorrente de asma e a tia explica que cuida dele porque ele perdeu o pai e a mãe muito cedo. Também é revelada a rotina do juiz em casa com os filhos, assim como da defensora Maria Ignez, buscando a filha na escola e colocando-a para dormir, jantando com a família e discutindo sobre as falhas da Justiça brasileira e do sistema carcerário.

O filme não parece seguir um roteiro prévio, sendo a escolha das cenas conduzidas pelo desenrolar das histórias de cada personagem. Maria Augusta opta por acompanhar a rotina da família do réu Carlos Eduardo, do juiz Geraldo e da defensora Ignez de modo a mostrar os vários ângulos da questão tematizada. Ao fazer isso, acaba revelando problemas existentes na própria estrutura social brasileira, os quais reverberam na Justiça: do lado dos réus, jovens oriundos de favelas e comunidades, sem uma estrutura adequada ou base familiar; acima deles os juízes, que, na maior parte das cenas demonstram frieza ou preferem ignorar a realidade; e, nesse meio, a defensora pública enquanto parte do grupo que enxerga a raiz do problema, mas que se sente impotente para transformá-lo. Desse modo, Justiça acaba revelando as mazelas de uma sociedade como um todo e mostrando a urgência de mudanças no sistema de Justiça brasileiro.

Voz, som e imagem

O documentário não usa entrevistas e nem narração em off. Quem conta a história são os próprios personagens, mas eles não olham para a câmera e não desabafam com o espectador. Tudo é narrado pelo registro da vivência de cada personagem. Algo interessante é a fotografia do filme, que opta por tons mais escuros ou azulados, transmitindo o clima de frieza dos tribunais. Também não são usadas trilhas sonoras, trazendo ainda mais realismo para os registros, todos com o som direto. Essas escolhas acabam por imprimir nos afetos que chegam ao espectador um tom de agonia. É como se ele também estivesse ali, como se o seu olhar fosse o da câmera, que permanece imóvel nas audiências, sem uso de plano e contra plano. Interessante notar que, desde o início do filme, há a sensação de se assistir a uma peça encenada, como se todos estivessem atuando. É o teatro da vida real e do jogo de poderes se revelando da maneira mais crua.

Por levar às telas um universo ao qual a maioria das pessoas não têm acesso (muita gente nunca pisou em um Tribunal ou acompanhou uma audiência) e, principalmente, por não interromper nas gravações, deixando perceptíveis as diversas falhas no sistema, pode-se dizer que se trata de uma obra contra hegemônica. Ainda que não se tenha uma narração condutora da história ou entrevistas que expressem uma ou outra opinião, é possível perceber que a escolha de Maria Augusta por acompanhar essas audiências tinha um propósito: levar o espectador a refletir sobre a nossa Justiça e o nosso sistema social. É o documentário explorando sua potência de mostrar a realidade por um ângulo não conhecido.

Personagens e identificação

Cada personagem do documentário tem a sua peculiaridade. O juiz Geraldo é frio nas audiências e mais afável em casa, embora também demonstre certo tom de inquiridor com a sua filha. Já a juíza Fátima, que depois se torna desembargadora, é acompanhada somente em suas atividades profissionais, revelando quase que o tempo todo uma dureza e até apatia pelos réus. A defensora Ignez tenta ajudar os acusados, mas demonstra-se desacreditada com o sistema e o seu papel. Os réus aparecem quase que sempre cabisbaixos, recusam-se a recorrer das sentenças e demonstram certa impassibilidade diante do destino de suas vidas. A esposa de Carlos Eduardo, mesmo grávida, parece perdida e revela uma indiferença que pode ser oriunda da própria vida difícil que leva. Quem mais expressa seus sentimentos é a mãe de Carlos, que chora em várias cenas, visita o filho na cadeia, vai à igreja e reza fervorosamente, acompanha as audiências na espera da boa notícia que não chega. Nesse sentido, há uma variedade de perfis que podem gerar identificação, porém o apelo dramático maior está na personagem da mãe.

A força do documentário

Um dos momentos mais emblemáticos de Justiça é a sequência de cenas gravadas na igreja que a mãe de Carlos frequenta, quando o pastor clama pelo “Basta” na vida das pessoas que sofrem e ela repete várias vezes a palavra, expressando profundo abatimento. Em seguida, há um corte para as imagens da posse de Fátima como desembargadora e o discurso do “Basta” proferido por um colega que elogia a sua coragem e profissionalismo: “basta do medo em nossas casas, basta da submissão ao poder dos criminosos, basta de chorar nossos mortos”. Ali, nesse paralelismo de duas cenas em contextos totalmente distintos, têm-se a noção da grande distância que separa os poderosos dos fracos em uma sociedade que acostumou a mascarar suas falhas e mazelas como o caminho mais fácil.
Assista ao documentário: https://www.youtube.com/watch?v=qUWZHNWcj7U&feature=youtu.be

Por Tatiana Vieira

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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