“Mudaram as estações, nada mudou?”, uma análise da campanha de Natal da Renner

Por Paulo Medeiros

O Brasil passou e vem passando por muitos momentos ruins em decorrência do COVID-19, em um cenário pandêmico que persiste e aflige. Após as eleições municipais de novembro, o aumento nos casos foi significativo em várias regiões do país, então a esperança que a doença estava arrefecendo e que 2021 chegaria com melhores expectativas não se confirmou. Com esse cenário perturbador, a publicidade enfrentou diversos desafios para falar com o público no Natal, a data mais importante para o comércio brasileiro e cheia de significados emocionais e culturais. Como conseguir transmitir uma mensagem de amor e carinho em um momento em que diversas famílias estão a meses sem se ver?

Desde o início do isolamento social, mas em especial nas datas comemorativas – como podemos perceber nas análises do nosso grupo de pesquisa sobre o Dia das Mães -, a publicidade buscou refletir o momento atual e conectar-se emocionalmente com os consumidores diante de suas angústias. No entanto, sempre buscou trazer uma mensagem positiva, de esperança aos espectadores. O dilema das marcas agora era o que comunicar ao público na reta final de um ano tão difícil, com expectativas, porém muitas incertezas para 2021, em uma data tão simbólica. 

A campanha analisada neste texto, assim como ocorreu na publicidade de outras marcas, tentou trazer uma mensagem de carinho, afeto e, claro, amor para o Natal 2020. Para isso, recursos estéticos, criativos e de linguagem foram acionados para que o comercial pudesse transmitir o espírito de Natal já enraizado em nosso imaginário, mas adaptado ao momento tão complicado vivido por todo o país. 

O objeto desta análise é a campanha de Natal de 2020 das Lojas Renner. Buscamos compreender quais estratégias e métodos foram utilizados para levar ao público o conceito proposto pela marca para a data. A loja é uma das principais de departamento no Brasil, teve suas portas abertas em 1922, e pertencia ao grupo ‘Grupo A.J.’, como era chamada na época. Isto, devido ao nome do fundador, o gaúcho Antônio Jacob Renner. Somente em meados de 1965, quando se desvinculou do grupo, a marca realmente começou a se aproximar do que conhecemos atualmente como Renner. Hoje em dia a empresa conta com diversos outros negócios, como a Youcom, que foi uma forma de se aproximar de um público mais jovem, e a Camicado, no ramo de casa e decoração.

Como de costume, a empresa preparou sua campanha especial para o Natal, porém em 2020 a celebração precisou ser diferente e a marca pensou em seu discurso de forma que pudesse estar em sintonia com a vivência de seu público e, consequentemente, se aproximando mais do mesmo. Para isso, ela contou com a agência Paim Comunicação e a participação da cantora Iza, que usou sua voz para ecoar os versos da canção “Mudaram as Estações”, de Cássia Eller. 

O filme conta a história do Natal de uma família em que a avó é o centro da narrativa. Apesar de ser uma representação estereotipada, compreendemos que em muitos lares brasileiros ela é um símbolo de união familiar. A idosa prepara a ceia e sai com sua neta na garupa de uma lambreta para deixar os pratos na porta de outras casas. Somos levados a concluir que ela costumava preparar esse momento quando a família podia estar reunida. No final do comercial, a avó também é surpreendida: todos estão em uma chamada de vídeo a esperando para fazer a ceia, comemorando assim o Natal juntos, mesmo que à distância.

Pensando sob o prisma da literacia midiática, iremos focar nas dimensões linguagem, estética, ideologia e valores, processos de produção e processos de interação (FERRÉS, PISCITELLI, 2015), para análise do material. 

Como já ressaltamos, a peça traz a relação entre a matriarca e a família de acordo com o clichê da figura da avó, que prepara a ceia para a família e reúne os netos, reforçando assim valores atribuídos à família tradicional brasileira. O texto final da neta evidencia esse discurso “Você conseguiu reunir todo mundo, vó! Como Sempre.” O vídeo termina com a assinatura “Celebre o Natal no seu estilo” associando a marca a esses valores, mesmo que o slogan busque transmitir diversidade, e nos lembra que a Renner é uma marca de roupas e acessórios. No trajeto da vó e neta para entregar os pratos, a sequência nos leva a várias residências e conhecemos os outros parentes. É uma família branca, de classe média. Há poucos componentes estéticos e narrativos indicando alguma diversidade, especialmente no núcleo principal, fazendo com que o comercial acabe reforçando a imagem da família feliz padronizada pela publicidade. Visto que muitas marcas se preocupam somente em viabilizar e reforçar discursos que, por vezes, pecam na presença de pluralidade. 

As escolhas dos elementos para a construção da mensagem revelam que, além de buscar identificação com o drama vivido por seus consumidores, a marca se preocupou em estar ligada a comportamentos responsáveis perante a pandemia da Covid-19. Podemos observar isso através do apelo ao que denominamos Estética do Isolamento, como a cena do jantar à distância por vídeo chamada, as pessoas usando máscaras, as ruas claramente vazias, entre outras referências ao atual contexto histórico. Porém, apesar do discurso, os processos de produção da peça foram normais, sem apelar para estratégias de isolamento como ocorreu em relação às campanhas para o Dias da Mães, por exemplo. É possível notar que o vídeo teve equipe de produção presencial, os detalhes como a iluminação, cores, o próprio uso de atores e cenários reforçam esta pontuação. 

O filme, construído através da tipologia de linguagem narrativa, reforça a sobreposição de emoções do espectador, de forma que os versos cantados por Iza, “Mudaram as estações, nada mudou”, desperte a sensibilidade de quem está assistindo à peça. Além de, novamente, transmitir certo otimismo ao dizer “nada mudou”, pois, no caso do vídeo, a família conseguiu se reunir, mesmo que digitalmente. O forte apelo emotivo dá a tônica da mensagem e busca tocar os sentimentos mais profundos e conflituosos dos consumidores sobre comemorar o Natal em meio a uma pandemia.  

Como parte da elaboração da análise, em relação à dimensão Processos de Interação, observamos a interação dos consumidores nas redes sociais. Nosso estudo se concentrou no perfil da marca no Instagram e no canal do YouTube, onde o comercial foi publicado. Os comentários gerados, colhidos após o Natal, foram diversos. Muitos gostaram do conteúdo, porém, outros usaram o espaço dos comentários da peça para fazer uma reclamação sobre algum produto, atrasos nas entregas e afins. 

A escolha da cantora Iza como intérprete da música que predomina no áudio do filme foi fundamental para que ele atingisse um outro público que, talvez, fosse diferente do espectador comum da marca. Isto fez com que muitas pessoas engajassem com vídeo no YouTube, uma vez que a artista é uma das mais conhecidas no Brasil atualmente, atuando inclusive como jurada em um dos programas com maior audiência no país, o The Voice. Assim, o apelo à cultura popular, estratégia comum em produções publicitárias, demonstra mais uma vez ser eficiente. Como podemos observar nos comentários a seguir, colhidos na plataforma.

Comentários retirados do canal no YouTube da marca (Janeiro, 2021)

No Instagram é onde foi possível observar que os clientes usaram o espaço para reclamar dos problemas que tinham com a marca. Seja com atrasos ou produtos enviados errados, a maioria dos comentários mostravam o descontentamento dos consumidores com a loja de departamento. O comercial em si praticamente ficou esquecido. Desse modo, é importante salientar que a dinâmica entre público e anunciante é diversa nas diferentes redes sociais, o que obrigatoriamente precisa ser levado em conta quando abordamos a dimensão Processos de Interação.

Comentários retirados do Instagram da marca (Janeiro, 2021)

É importante ressaltar também que a Renner fez outros vídeos de Natal para o Instagram (https://www.instagram.com/p/CJOR96SBgqf/ e https://www.instagram.com/p/CJOuGnjhnbC/). Estes também fazem parte da campanha como um todo. Porém, ao contrário do filme principal, em ambos os vídeos é notável a presença de diversidade. O primeiro é protagonizado por uma família composta por pessoas pretas montando sua árvore de Natal, aqui também a avó está no centro da narrativa, mas com uma abordagem bem diferenciada, inclusive em relação à iluminação que é bastante dura, em contraposição ao filme principal que possui uma luz muito suave. No segundo, um casal homoafetivo aparece abraçado e, em alguns momentos, brincando com seus cachorros. Portanto, diferente da primeira peça analisada, estas outras duas, veiculadas pelas redes sociais somente, buscaram ampliar o público que pode não ter se sentido contemplado com a anterior. Elas também, mesmo que secundárias, fornecem sentido ao slogan da campanha, como citado “Celebre o Natal no seu estilo”.

Referências

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://bit.ly/36ikXzZ.