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Notícias de uma guerra particular: um marco no documentário brasileiro

O cinema brasileiro, do final dos anos 1990 e no início do século XXI, caracterizou-se pela expansão do documentário e por sua inserção no mercado cinematográfico. Nessa expansão, um conjunto significativo de filmes voltou sua atenção para a violência urbana. É o caso do documentário Notícias de uma guerra particular (1999), que influenciou gerações de cineastas e é considerado um dos marcos do cinema contemporâneo. Dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund, com a colaboração de Walter Salles, Notícias buscou estabelecer uma percepção sobre o estado da violência urbana no Brasil no final da década de 1990. O cenário é o Morro de Santa Marta, bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, e os personagens são policiais, traficantes e moradores de favelas que se veem envolvidos numa guerra diária ligada ao narcotráfico. As pesquisas e filmagens foram feitas entre 1997 e 1998.

Tema e montagem

A determinação de um contexto particular, vivenciado no estado do Rio de Janeiro à época, fez de Notícias “um filme de urgência”, como resumiu o diretor, em material anexado ao DVD. (NOTÍCIAS, 2005). Kátia Lund lembra que a ideia de fazer um filme no morro Santa Marta foi de Walter Salles, em 1996, e surgiu da polêmica em torno da gravação de um clipe do cantor Michael Jackson, dirigido por Spike Lee. Lund fez parte da produção, num momento marcado pela prisão do traficante Marcinho do Santa Marta, o “dono do morro”. O projeto inicial era relacionado a um grupo de dança, mas transformou-se pelo contato dos diretores com a “nova” realidade. O filme foi concebido inicialmente como um programa para televisão; parte de seu financiamento veio de uma emissora francesa, interessada num documentário sobre a violência na cidade do Rio de Janeiro. Inclusive por exigência contratual, os diretores tiveram que filmar em película super-16mm.

O momento de expansão do tráfico de drogas havia criado uma verdadeira guerra civil nos morros cariocas por disputa de controle, e isso nos é informado logo na abertura do filme, em texto que é acompanhado por uma locução em off e relaciona a expansão do tráfico, a partir da metade da década de 1980, ao crescimento vertiginoso do número de homicídios no Rio de Janeiro. O texto nos apresenta estatísticas, como: “uma pessoa morre a cada meia hora no Rio, 90% delas atingidas por balas de grosso calibre.” Ou: “A Polícia Federal estima que hoje o comércio de drogas empregue 100 mil pessoas no Rio, ou seja, o mesmo número de funcionários da prefeitura da cidade”. Ao final dessa introdução ressalta que “apesar de nem todas essas pessoas morarem em favelas, é lá, exclusivamente, que a repressão se concentra”.

Antes de tudo é preciso lembrar que politicamente, o ano de 1997 no estado do Rio de Janeiro foi marcado por um momento crítico do governo do PSDB de Marcelo Alencar (1994-1998), que adotou uma política de enfrentamento ao narcotráfico, comandada pelo chefe da Secretaria de Segurança Pública, General Nilton Cerqueira, que acreditava numa solução bélica para a guerra de traficantes nos morros cariocas. As operações de confronto resultaram na prisão e morte das principais lideranças do tráfico, e na morte de vários policiais em ação. Paradoxalmente, do outro lado, o chefe geral da Polícia Civil, Hélio Luz – que exerceu o cargo de 1995 a 1997 –, pretendia mostrar como a polícia estava agindo e como esta só fazia política de controle, de repressão. Em seu depoimento ao filme, diz que “a polícia foi criada para ser corrupta e violenta, para fazer a segurança da elite que se protege recrutando moradores de periferia” (NOTÍCIAS, 2005). Também enfatiza o caráter político da polícia: “se a cidade é injusta, garantimos a sociedade injusta. O excluído fica sob controle.” O tráfico é, segundo ele, é apenas um “espaço de exclusão”. E aponta a violência da miséria: “Para o miserável é emprego, não opção, trocar R$112,00 por mês por R$300,00 por semana. A miséria é violenta” (Ibid.).

Este é o cenário de guerra apresentado pelo filme também pelos moradores de favelas, como Paulo Lins – em sua primeira aparição para a televisão, antes da publicação do livro Cidade de Deus –, o casal Janete e Adão Xalebaradã, e o líder comunitário Itamar Silva, que enfatizam as mudanças provocadas na ação dos policiais e na vida das próprias comunidades com a expansão do tráfico, especialmente após a entrada de cocaína e armas nas favelas;

Em relação à montagem pode-se analisar que aproxima-se dos princípios de uma edição jornalística: cortes secos e cartelas de informação. O filme se apresenta como reportagem já no título, numa proximidade reconhecida pelo próprio diretor. A sequência inicial, com a narração do texto informando sobre dados estatísticos relacionados à violência urbana também remete ao jornalismo, especialmente pela locução escolhida. A própria organização dos depoimentos no filme parece próxima à reportagem. Salles dividiu o filme em oito capítulos: (1) O policial; (2) O traficante; (3) O morador; (4) O início 1950-1980; (5) O combate; (6) A repressão; (7) As armas; (8) A desorganização; (9) O caos; e (10) Cansaço.

As cartelas que identificam o universo das personagens são apresentadas por “blocos” em que se alternam os depoimentos de moradores de favelas, traficantes e policiais, reforçando a identidade com o jornalismo e o cinema direto, pois que remete diretamente aos filmes de Frederic Wiseman, como enfatizado pelo próprio diretor (Ibid.).

Personagens e relação com o diretor

O papel de Hélio Luz em Notícias é determinante, não só por seu depoimento, que contribui para contextualizar as informações de outros “personagens”, como por possibilitar à equipe de filmagem o acesso às informações. Se não fosse pelo cargo ocupado por ele o filme não teria conseguido apresentar muitas imagens, como o depósito de armas e o depoimento dos meninos na instituição Padre Severino.

O “encontro inesperado” de Salles com Rodrigo Pimentel, e as gravações feitas logo após o primeiro contato, fazem surgir o depoimento que dá nome ao filme. Para o diretor, foi “ato de filmagem”, portanto carregado da intensidade do instante da tomada, pois que o entrevistado revelou-se totalmente diante da câmera, algo que pareceu inesperado até para o próprio, pela honestidade com que avalia sua ação diante da câmera. “É ato de filmagem, não teria acontecido se não estivesse sendo filmado”, diz Salles (Ibid.). Saberemos depois que Pimentel também tem formação em cinema, tendo atuado como co-produtor em Ônibus 174, no qual também tem ação decisiva para explicar os acontecimentos. Sua trajetória transformou desde então: de capitão do BOPE a inspiração para protagonista de ficção (capitão Nascimento, de Tropa de elite), e especialista em segurança pública chamado a opinar nas coberturas da área da Rede Globo de Televisão.

Outro aspecto a considerar a partir de Notícias é a recorrente ausência de referências à classe média, consumidora e motora do tráfico. Moreira Salles admitiu que não houve mesmo uma preocupação de ouvir a classe média, mas porque seu foco era a violência, não as drogas: “O consumidor é importante, mas ele se mantém longe dos tiros e das mortes”. O diretor avalia que o consumidor é o grande “sujeito oculto do filme”. (Apud COLOMBO, 2006)

Voz do documentário

Notícias nos mostra as falas dos três setores envolvidos – a polícia, os moradores e os traficantes – e portanto também uma preocupação dos diretores em dar um mesmo tratamento aos depoentes de diferentes lados dessa guerra, até no número de depoimentos utilizados. Algumas vozes se mostram convergentes em alguns aspectos, e o “quem diz” assume particular relevância. O policial, capitão Pimentel, por exemplo, dá título ao documentário. Perguntado se gostaria de participar de uma guerra, o capitão diz que já participa, “mas não é uma guerra civil, é uma guerra particular” (NOTÍCIAS, 2005). O depoimento de Pimentel se aproxima do de Hélio Luz na contestação às formas oficiais de lidar com a violência, e seriam comuns se não fossem proferidos exatamente por eles, no exercício de seus cargos.

O filme assume um desencanto e um ceticismo em relação à maneira como o problema da violência é enfrentado no Brasil. Segundo os diretores, o foco final na morte era uma certeza, a ponto de a produção esperar notícias de um policial morto em ação – já que a morte de alguém envolvido no tráfico acontecia praticamente todos os dias – para finalizar as filmagens. O final do filme, além da morte de um policial e de um morador, dá ênfase ao crescimento da violência: na tela inscrições mortuárias aparecem ocupando todo o espaço, numa lápide que ao final está completamente tomada pelos nomes que não são mais legíveis, restando somente a tela preta. João Moreira Salles informa que os nomes não foram inventados, nem quando não havia mais nenhuma possibilidade de o espectador identificá-los (Ibid.). Foram mortes reais, que a produção do filme contabilizou!

Referências:

COLOMBO, Sylvia. Ladainhas das seis da tarde. Folha de São Paulo. São Paulo, 26 mar. 2006. Caderno Mais. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2603200610.htm> Acesso em: 25 mai. 2006.

NOTICIAS de uma guerra particular. Direção: João Moreira Salles e Kátia Lund. Produção: Intérpretes: Hélio Luz; Rodrigo Pimentel; Paulo Lins; Adão Xalebaradã e outros. Roteiro: João Moreira Salles; Kátia Lund; Walter Salles. [S.I]: VideoFilmes, 2005, 2 DVDs (56 min), son., color, DVD.

*Texto extraído de:

COLUCCI, Maria Beatriz. Violência urbana e documentário brasileiro contemporâneo. Campinas,  SP: [s.n.], 2007. Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/document/?code=000400906>.

Assista ao documentário:  https://www.youtube.com/watch?v=EAMIhC0klRo

 Por Maria Beatriz Colucci

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