Observatório da Qualidade no Audiovisual

Crítica e riso: Filomena e “Rio Doce – 60 Dias Depois”

Os rejeitos advindos dos processos de extração de minério de ferro pela mineradora Samarco, localizada em Mariana-MG, eram concentrados em um dique que se rompeu no dia 05 de novembro de 2015, fazendo com que cerca de 32,6 milhões de m³ desse material escapassem do reservatório. Os sedimentos cobriram os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. A tragédia provocou a morte de 19 pessoas, derrubou grande parte das infraestruturas dos locais e inundou casas e propriedades rurais, atingindo cerca de 2,2 mil hectares.

O material fluiu até Barra Longa-MG, no distrito de Gesteira, onde atingiu o Rio Doce. Em uma extensão de 113 km, os detritos prejudicaram a pesca, a fauna e flora típica dos locais e o abastecimento de água potável em todo o percurso das águas do rio, de Minas Gerais até o Espírito Santo.

Dois meses após a tragédia, o documentário “Rio Doce – 60 dias depois – a atriz Gorete Milagres e o Fotógrafo Domenico Pugliese na rota da lama” foi ao ar na página da atriz em seu canal no YouTube. No vídeo, a atriz volta a encarnar a personagem Filomena / Filó para percorrer os principais locais aonde os detritos causaram maior impacto, conversando com moradores e expondo as principais dificuldades do cotidiano dos atingidos. O documentário nasce, como salienta Comolli (2008), a partir de um encontro: o do documentarista com a fragilidade do momento em que se depara com o caos ali instaurado.

O documentário, que mescla a atuação e a construção de uma personagem fictícia em meio a um cenário real, transgride os dois espaços principais do cinema: o da ficção e o da não ficção. No entanto as próprias distinções entre ficção e não ficção são diluídas nos estudos cinematográficos desde os primórdios do cinema, quando o hibridismo midiático e as referências extratextuais já começavam a se notar presentes nas produções audiovisuais.

Os limites entre a realidade e a ficção também tangem outra problemática: a inserção do grotesco em produções humorísticas e vice-versa. Segundo Sodré (2002), o grotesco é marcado pela figura do rebaixamento (bathos) em uma junção de elementos heterogêneos, nos quais os sentidos são postos em deslocamentos escandalosos e em situações absurdas.

O produto documental dialoga com a literacia fílmica, marcada pela capacidade do sujeito contemporâneo de analisar e avaliar o poder de imagens, sons e mensagens que o confrontam. A partir do encontro entre o documentarista, a personagem e a população com a fragilidade no momento do caos, a estratégia pôde ser utilizada na produção de um discurso capaz de acometer o espectador em afetos necessários para trabalhar em prol da população atingida.

Por Iago Rezende

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