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Religiosidade e fé em Santo Forte

O documentário Santo Forte (1999) dirigido por Eduardo Coutinho bate num ponto há muito tempo discutido pelo cinema, e, de uma forma geral, também pela sociedade brasileira: o que é a fé? É este o tema central do longa-metragem do cineasta, que aborda uma pequena comunidade carente do Rio de Janeiro para explorar os preceitos das mais diversas crenças. Santo Forte não é um filme sobre religião, mas sim sobre a religiosidade.

Aproveitando a visita do papa João Paulo II ao Brasil, Coutinho se dirige à favela Parque da Cidade, localizada na Gávea, Zona Sul do Rio a fim de abordar o efeito de tal comoção e a relação entre as diversas religiões que coabitam aquele espaço, além de investigar como estas crenças construíram uma nova forma das crenças locais.  Para tal, Coutinho recorre à entrevista como estilo, fazendo uso dos diálogos como narrativa condutora a uma visão de mundo diferente daquela contextualizada pela sociedade ocidental cristã brasileira. Assim, revela-se uma parte de um Brasil misto, com santos, orixás e espíritos convivendo em harmonia, num lugar onde religiões africanas e cristãs se fundem numa só. Santo Forte colhe depoimentos de diferentes pessoas e histórias de vida que transcendem a fé e que buscam força para vencer à pobreza e as dificuldades impostas naquela comunidade.

Os habitantes da favela Parque da Cidade são pessoas humildes e simples, mas com experiências de vida profundas que jamais seriam apreendidas em qualquer ambiente acadêmico. São pessoas que sofreram muito, mas que encontram alento no catolicismo e nas religiões evangélicas, enquanto seguem também a doutrina dos orixás. Inclusive, o diálogo da fé cristã com as religiões de matriz africana perpassa todo Santo Forte.

No decorrer do documentário, observamos uma narrativa comum aos entrevistados. Quase todos se proclamam católicos ou evangélicos, sendo esta a sua religião “oficial”, mas que flertam com a umbanda ou o candomblé. É curioso notar que as palavras umbanda e candomblé só aparecem quando o diretor pergunta se eles frequentam tais religiões. Eles apenas se intitulam de espíritas. Isso pode ser revelador no sentido de sentiram que as religiões afro-brasileiras são objeto de preconceito e violência histórica, portanto, essa negação, surge do medo de pré-julgamentos. Coutinho nada faz além de querer entender como ocorre esse sincretismo, escutando as pessoas sem qualquer juízo de valor.

Uma das explicações para o sincretismo brasileiro, segundo o professor e pesquisador Robert Stam (2008), é que, uma vez proibidos de expressarem sua fé, os escravos fingiam adorar o Deus cristão e os santos católicos enquanto, na verdade, estavam secretamente rezando para suas entidades espirituais, os orixás.

O sincretismo, nesse sentido, pode ser visto como um exercício popular de religião comparada, uma busca de afinidades e correlações sobre as quais basear uma prática religiosa aceitável. (…) Em todo caso, através da religião os afro-brasileiros conservaram os traços de uma cosmovisão africana; encontraram uma alternativa para os sistemas hegemônicos que negavam dignidade aos negros e um modo de reconstruir sua identidade nas Américas. Se os quilombos foram uma forma de resistência política, as religiões afro-brasileiras foram uma forma de resistência cultural” (STAM, 2008, p.302).

Vinte anos após o lançamento do filme, o Brasil de hoje é mais intransigente que o revelado por Coutinho. Isso lança um outro olhar sobre o longa-metragem, uma vez que o Brasil atualmente vive uma explosão de casos de intolerância religiosa, principalmente contra as religiões de matrizes africanas[1]. Com a ascensão e estabelecimento de políticos fundamentalistas no Congresso, a chamada bancada evangélica, o discurso de ódio contra outras religiões, especialmente as afro-brasileiras, se tornou alvo de manifestações virulentas oriundas das assembleias de pastores raivosos pregando contra estas crenças, exaltando recompensas aos fies que acabarem com tais doutrinas.

Stam afirma que a grande mídia transmite “a visão eurocêntrica das religiões espirituais africanas como cultos supersticiosos, quase demoníacos, ao invés de sistemas de crença legítimos” (STAM, 2008, p. 298), contribuindo para um maior preconceito em relação a estes cultos. Para Stam, a expressão “religiões africanas” situa-se num nível de designação imprópria que dá a entender que todas as crenças encontradas na África são uma só. Além disso, algumas características próprias dessas religiões funcionam como um descrédito por parte da sociedade, como por exemplo a tradição oral, a falta de um “livro sagrado”; o politeísmo; a dança e o canto excessivos; o sacrifício animal literal, em detrimento do sacrifício simbólico ou comemorativo e o transe, incorporado como um elemento rústico.

O ideal cristão da visio intellectualis foge horrorizado dos transes e visões plurais das religiões espirituais da África e de muitos povos indígenas. Em resumo, o hábito ocidental de hierarquizar as religiões em religião ‘real’ do livro e ‘cultos’ falsos e ‘fetiches’ falsos é muito enganadora e perniciosa (STAM, 2008, p. 308).

Essa dicotomia cristianismo versus religiões africanas está presente no audiovisual brasileiro, deixando estigmas nessas crenças, marginalizando-as ainda mais dentro do contexto sociocultural do país. Nas religiões da África ocidental, os orixás se manifestam no comportamento corporal dos crentes, fato que foi bem explorado por Coutinho, ao entrevistar pessoas que recebem os orixás e divindades. Uma delas, dona Thereza, afirma que estamos sempre cercados de espíritos, apenas não temos a clarividência para vê-los.

Dona Thereza

Muitas das mulheres entrevistadas têm uma vida em comum. Além de moradoras da comunidade, carregam consigo o peso de serem as chefes de família, criando filhos e netos sozinhas, sem a presença de um companheiro. A maioria atribuiu ao marido qualidades ruins, oriundas dos orixás que de alguma maneira, provocavam o mal. Mas que de alguma forma, encontram ânimo e conforto nos guias espirituais, que as ajudam a superar obstáculos antes intransponíveis.

A maneira como Coutinho conduz as entrevistas é outro ponto forte do filme. Podemos dizer que aqui, a protagonista é a palavra. A escolha do diretor de um plano fixo, uma única locação e focalização nas conversas em ao invés de um trabalho mais elaborado com a imagem transmite uma imagem de um filme mais minimalista. Sempre vemos as pessoas muito próximas de Coutinho, pois, segundo o cineasta, não é possível ter um diálogo com alguém a mais de 1 metro de distância. Sem isso, fica falso e o personagem torna-se rígido.

Firmando como temática as trajetórias religiosas daquelas pessoas, Coutinho nos transmite a sensação de adentrar num universo no qual não falta matéria narrativa. Com histórias repletas de significados, os personagens nos lançam a um mundo de diversas oportunidades, até então desconhecidas para nós. O jogo então, é estabelecido entre a tela preenchida com o entrevistado, alternando-se para o quadro com a estatueta do espírito narrado ou a cena do espaço vazio. Este procedimento de filmagem corporifica o que está sendo anunciado pelos personagens, deixando o julgamento a cargo do telespectador.

Como já é habitual dos documentários do Eduardo Coutinho, o diretor expõe o processo de seu filme, mostrando entrevistados assinando os termos de concessão de imagem, deixa a câmera aparecer, revela o pagamento feito aos entrevistados, ou seja, anula aquilo que nos separa do que assistimos, aproximando-nos, assim, do cotidiano alheio, sem traços de invasão. Ele utiliza as imagens da equipe como uma forma de mostrar que o interlocutor está sendo provocado, questionado, uma vez que o documentário com o som direto proporciona exatamente esse diálogo entre o diretor e o entrevistado. As perguntas são elementos essenciais de uma voz que vem fora de campo provocando um confronto, em que, de alguma forma, irá proporcionar uma troca. Estamos assistindo a um filme que não capta a verdade, mas sim visões de mundo, singularidade, ou como diria o próprio diretor, um documentário não é a filmagem da verdade, mas sim a verdade da filmagem.

A câmera por detrás do documentário de Coutinho.

 

Por Felipe Gasparete

Referências:

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

STAM, Robert. Multiculturalismo Tropical. São Paulo: Edusp, 2008.

SILVA, Adriana Gonçalves da. Santo Forte e o documentário ‘ficcional’ de Eduardo Coutinho. Revista Temática, 2016. Disponível em http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica.

[1] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/12/12/aumenta-em-51-o-numero-de-casos-de-intolerancia-religiosa-no-rj.ghtml.

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