Observatório da Qualidade no Audiovisual

A Entrevista: o cinema de autoria feminina e de cunho político

A Entrevista: o cinema de autoria feminina e de cunho político

O protagonismo feminino transcende as telas. O cinema de autoria feminina é essencial para a quebra de paradigmas, já que em boa parte da história as mulheres foram representadas apenas através do olhar masculino, conforme aponta Simone de Beauvoir (1970, p. 10) “a mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela (…) o homem é o sujeito, ela é o Outro”.

Dentro desse contexto, a cineasta Helena Solberg, única diretora do Cinema Novo, surge com A Entrevista (1966), curta-documental que indaga o lugar pertencente à mulher de classe média na sociedade. Abordando questões como casamento, sexualidade e profissão, a partir da perspectiva feminina, o filme é considerado um dos pioneiros a tratar desses temas na linguagem documental.

Com uma ideia na cabeça e um gravador na mão, Helena entrevistou mulheres de 19 a 27 anos da elite carioca, criadas sob um código moral rígido, assim como ela. O filme é construído a partir de trechos selecionados das entrevistas em voz over enquanto se vê em cena, uma mulher se arrumando para o dia de seu casamento. De acordo com a diretora, a palavra destruía a imagem (Solberg, 2010), isso porque enquanto ouvimos depoimentos bem progressistas sobre a liberdade das mulheres, vemos na imagem uma noiva cuidando de sua aparência, seguindo os padrões estéticos impostos às mulheres.

Mais do que apenas créditos

A abertura de A Entrevista ensaia alguns pressupostos e operações formais do filme (MAIA, 2015, p.162). Nos créditos iniciais aparecem imagens de mães entrelaçadas a  seus bebês, enquanto ouvimos uma reza católica e um “parabéns para você”. Além disso, pôde-se observar diversas fotos de crianças com suas babás, o que remete às relações de classe. Em seguida, a montagem ganha ritmo quando mescla a imagem de uma menina cercadas por várias bonecas, com retratos familiares típicos e fotos de “garotas comportadas” em colégios de freiras, que implícita docilidade e disciplinamento. Importante destacar que durante séculos, mulheres que não se encaixavam no padrão de docilidade foram diagnosticadas com uma condição chamada histeria feminina (Coletivo Não Me Khalo, 2016, p.20).

 

Depoimentos

“A mulher deve ser socialmente perfeita, precisa ler muito, ter uma cultura muito grande, mas não precisa se dedicar a alguma coisa (…) não precisa se dedicar a um trabalho. ” O primeiro depoimento que ouvimos reflete o pensamento patriarcal de que a mulher não deve ir além das ocupações tradicionalmente ditas como femininas. Ela deve ser bonita, inteligente, culta, mas apenas dentro de casa. “Tudo isso está́ ligado a todo um complexo cultural, desde a atividade econômica até́ a maneira de educar as crianças, a mãe em nossa sociedade é a figura gratificante, o pai é figura autoritativa”. Nesse outro depoimento percebe-se como as características associadas à figura da mãe são vistas como virtudes das mulheres, mas não lhe conferem nenhum status ou poder.

“Eu acho que se eu não tivesse casada estaria eternamente infeliz, não satisfeita comigo mesma, estaria sempre querendo me casar, porque acho que a mulher só é realizada quando se casa”, a voz anônima vinculada com a imagem em cena, da mulher se arrumando de noiva, demonstra como o casamento é considerado um ritual e objetivo de vida para boa parte das mulheres. Porém, em boa parte do filme, as diferentes vozes constroem um discurso contraditório, o que demonstra certa dificuldade de formular uma pensamento feminista, por causa do contexto histórico da época, mas também  demonstra que as mulheres não tem um pensamento homogêneo. O filme torna-se rico a partir desse desacordo de vozes (HOLANDA, 2018, p.46) e da desconexão entre imagem e som, exemplo disso é o depoimento progressista “Eu gosto muito de liberdade, a qual eu não teria em um casamento. Eu tenho horror de ser dominada por um homem”, enquanto assistimos a noiva se arrumando.

A última parte do filme é uma entrevista filmada em som direto com Glória Solberg, cunhada da diretora à época (a mulher que víamos durante as vozes over). Glória desconstrói as certezas, as regras e as verdades pessoais apresentadas até então (MAIA, 2015, p. 158), quando declara sua “lucidez diante da própria incoerência, da própria ambiguidade”. Além disso, nessa parte Helena está em cena, dialogando diretamente com Glória, desmanchando assim, a distância entre entrevistada e diretora. A entrevista filmada, oferece uma quebra de expectativa, uma vez que a Glória expõe as “incoerências” e “ambiguidades” que desfazem a ideia de uma essência feminina, constante nos depoimentos em off (MAIA, 2015, p. 159).

Em seguida, o áudio da entrevista é cortado pelas cenas da “Marcha da Família com Deus pela liberdade”, em março de 1964, conduzida por homens e mulheres conservadores da classe média que foram às ruas apoiar o Golpe de 1964, o que nos remete aos dias atuais, visto as manifestações da extrema direita em defesa de uma nova intervenção militar. A palavra  “Liberdade” que os manifestantes tanto pregam, confere um novo significado ao que é dito no decorrer do filme, uma vez que os depoimentos das mulheres revelam justamente a falta de liberdade que orienta suas escolhas, mesmo sendo tão privilegiadas (MAIA, 2015, p.159). Lembrando que a segunda onda feminista no Brasil, começou nos anos 1970, então além de lutar pela valorização do trabalho, contra a violência sexual, as mulheres também formaram uma frente ampla em oposição ao regime.

A Entrevista não é apenas mais um filme dentre outros (HOLANDA, 2018 p.46), além de ser inovador em sua linguagem, traz a público temas importantes às mulheres daquela época. O filme nos mostra como mulheres, mesmo sendo de um mesmo grupo social, pensam tão diferente umas das outras. O cinema de autoria feminina, feminista e de cunho político se faz necessário para a quebra da narrativa única, para que mulheres demonstrem suas diferentes perspectivas, falem de suas realidades e sejam sujeito de suas histórias.

Por Rebeca Telles

 

Referências

HOLANDA, Karla. Catálogo da Retrospectiva Helena Solberg. 2018, p. 43-47

MARTINS, Carla. Sob o risco do gênero: Clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres. Belo Horizonte. UFMF, 2015. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUBD-AB6EQP/tese_carlamaia_2015.pdf?sequence=1

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo: fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.

Coletivo Não Me Khalo. #Meuamigosecreto: feminismo além das redes. Edições de Janeiro, 2016.

SOLBERG, Helena. Entrevista concedida a Ana Maria Veiga. Rio de Janeiro, 12.05.2010.

Observatório da Qualidade no Audiovisual

Comentar